segunda-feira, julho 30, 2012

Estado, Mercado e a Indústria Farmacêutica


Ano 7, No. 41, Julho 2012


Nesta edição o blog Monitor da Saúde traz um  artigo de Mônica Baumgarten de Bolle sobre um tema de grande relevância contemporânea: a contribuição da Indústria Farmacêutica ao prolongamento da vida de bilhões de pessoas ao longo dos últimos dois séculos e a necessidade de manter uma relação estável entre a regulação e os incentivos necessários para manter sua capacidade de inovação. Este tema é particularmente importante, especialmente nos dias de hoje, onde a referida indústria passa por uma fase de grandes mudanças em sua base produtiva, dado que o padrão biotecnológico passa progressivamente a substituir ou complementar a base química da produção de fármacos. 

A indústria farmacêutica desperta sentimentos ambivalentes. Por um lado, muitos olham para ela como a solução para resgatar a vida humana das doenças infecciosas ou crônicas que comprometem a qualidade de vida e reduzem sua extenção. Por outro, muitos a olham como um fardo sobre a economia, embora menos de um quarto dos reajustes nos prêmios dos seguros de saúde, em países como os Estados Unidos por exemplo, estejam a associados aos incrementos nos preços dos medicamentos. Muitos encaram a indústria farmacêutica como um tubarão atrás de lucros injutificados, enquanto outros a vêm como um setor que, por exercer funções que beneficiam toda a sociedade, deveria ser puramente estatal. 


Mas poucos esquecem que a principal vantagem deste setor – seu potencial de inovação – reside no fato de que ele é preponderantemente dirigido pela livre iniciativa e que as patentes são uma forma de proteção de uma indústria cujo custo da inovação é elevado. Também vale assinalar, por outro lado, que os subsídios diretos e indiretos a esta indústria, através de compras públicas de seus produtos, fazem parte a uma estratégia para extender o acesso generalizado, socializando seus efeitos positivos. 

Que poderia passar com essa indústria de fronteira tecnológica, sem os incentivos de mercado ou os subsídios públicos associados às estratégias de universalização de cobertura, especialmente nos países mais pobres, com ou sem a ajuda internacional?

Estes temas são tratados de forma bastante elucidativa no artigo abaixo. Monica Baumgarten de Bolle é economista, professora da PUC-RJ, e Diretora do IEPE - Casa das Garças, no Rio de Janeiro. Com vocês, as palavras de Mônica.

Vidas Manipuladas pelo Lucro?
Monica Baumgarten de Bolle, 25/07/2012

Enaltecer o papel do capitalismo e do lucro usando a indústria farmacêutica como exemplo é uma estratégia, no mínimo, arriscada. Afinal, as grandes empresas e laboratórios que produzem medicamentos de baixa, média e alta complexidade são frequentemente retratados de forma pejorativa em filmes e documentários, expondo um lado vil, mesquinho, marcado por práticas duvidosas, em busca de lucros cada vez maiores. Quem não se lembra do filme de 2005, baseado no romance de John Le Carré, “O Jardineiro Fiel”, em que uma investigação sobre uma droga miraculosa para curar a tuberculose resistente aos antibióticos tradicionais revela a imoralidade das pesquisas conduzidas para aprová-la? E os inúmeros documentários sobre os “lucros insalubres” da indústria farmacêutica americana? Basta uma breve pesquisa no Google para encontrar milhares de curtametragens, alguns mais sensacionalistas do que outros, sobre o lado funesto da indústria de fármacos. Por mais que se tente desqualificá-los, é difícil escapar da velha máxima de que “onde há fumaça, há fogo”.

É claro que a indústria farmacêutica e sua intensa atividade de R&D (Research and Development ou Pesquisa e Desenvolvimento) têm sido extremamente benéficas  para a humanidade. As descobertas de medicamentos capazes de erradicar doenças devastadoras, como a poliomielite nos anos 60, são avanços dignos do refrão de campanha publicitária de cartão de crédito – priceless ou “sem preço”.

Mas, por que mesmo “sem preço”? E seria o valor incalculável dos benefícios de certas descobertas a justificativa incontestável para os lucros exorbitantes das empresas farmacêuticas? Seria isto um aval para que nos manipulem e bombardeiem com anúncios de drogas miraculosas que, muitas vezes, são retiradas do mercado depois dos custos de determinados milagres serem revelados? Lembrem-se da devastação da Talidomida, um anti-inflamatório poderoso, capaz de gerar deformações atrozes nos fetos de mulheres grávidas. Ou na droga Avastin, um agente monoclonal capaz de obstruir os mecanismos de proliferação de células malignas, antes usada no tratamento do câncer de mama, cujo uso para este fim foi revogado pelo Food and Drug Administration, a agência reguladora americana, devido aos danos irreversíveis provocados no organismo de certas pacientes.

Os fármacos e as pesquisas que os desenvolvem são especiais. Medicamentos são bens cujo consumo individual não pode ser isolado, isto é, são bens cujo consumo privado afeta a sociedade como um todo. Pensem nas vacinas infantis contra as doenças infectocontagiosas. Crianças vacinadas protegem não só a si próprias, como a todas as outras com quem entram em contato. Se o consumo de fármacos gera este tipo de “externalidade”, ele não pode ser completamente discriminado pelo mecanismo de preços. Ou seja, de que adianta, do ponto de vista do bem-estar social, cobrar uma quantia elevada pela aquisição de certo remédio se apenas poucas pessoas serão capazer de desfrutar de seus benefícios? Esta é a lógica econômica dos genéricos. Sobretudo nos medicamentos para o controle da Aids, área em que o governo brasileiro foi pioneiro na década de 90.

A maior acessibilidade aos remédios que previnem epidemias, a “humanização” da medicina e da pesquisa farmacológica, foram expostas de modo brilhante e inspirador pelo atual Presidente do Banco Mundial, Dr. Jim Yong Kim, em várias de suas aulas quando ainda era Presidente do prestigiado Dartmouth College. O Dr. Kim, como escrevi em um artigo recente para O Globo a Mais (“Dilma e Jim”) sabe do que fala. Afinal, coordenou programas de erradicação da tuberculose resistente e de controle da Aids no Haiti e no Peru, programas que foram posteriormente elogiados e replicados pela Organização Mundial de Saúde.

Por outro lado, sem patentes, a indústria não inova, ou inova pouco, o que é, evidentemente, prejudicial para a sociedade. Estudos clássicos de Economia Industrial mostram que dentre os segmentos industriais cuja atividade de pesquisa e desenvolvimento é mais afetada pela existência de patentes e de uma boa legislação de proteção intelectual, a indústria farmacêutica lidera qualquer ranking. Portanto, a proteção da propriedade intelectual, um sólido arcabouço institucional para regular as atividades de pesquisa dos laboratórios e empresas, protegendo a sociedade dos malefícios de um bem público mal concebido, e políticas públicas que garantam a fabricação de determinados medicamentos de forma barata e acessível aos consumidores quando isto for inequivocamente benéfico para todos, são essenciais.

A diferença entre a droga e o veneno é a dose. A toxicidade da defesa imponderada do capitalismo, também.

terça-feira, julho 24, 2012

Impactos Econômicos da Epidemia de Câncer


Ano 7, No. 40, Julho 2012


André Cezar Medici
Kaizo Iwakami Beltrão

 
Introdução

Em artigo postado neste blog em 28 de fevereiro deste ano, iniciamos com Kaizô Beltrão, uma análise de aspectos sociais, demográficos e econômicos do câncer, começando com uma avaliação da epidemiologia e distribuição do câncer, ao nível mundial, com ênfase na América Latina. Representando em 2004 cerca de 13% das mortes anuais, o câncer respondia por 15% dos anos de vida saudáveis perdidos (AVISA) nos países ricos e 6% dos AVISA nos países da América Latina e Caribe (ALC). 

Mas quanto custam estes anos de vida perdidos para a sociedade mundial? É muito difícil saber, dado que as informações existentes são precárias e existem muitos aspectos a considerar. Podemos dizer que os custos associados ao câncer tem efeitos: a) na economia; b) nos sistemas de saúde e c) na vida das famílias e nos indivíduos.

Esquema Conceitual para Avaliar os Impáctos Econômicos do Câncer

Os efeitos da epidemia de câncer na economia se expressam:

 Na redução da oferta de trabalho, dado que, embora a doença tenha maior incidência entre a população de terceira idade, muitos a adquirem quando ainda fazem parte da população economicamente ativa. Dessa forma, o câncer tira da atividade econômica temporariamente (quando existe uma plena recuperação) ou definitivamente (quando leva à morte ou a incapacidade permanente) uma quantidade expressiva de homens e mulheres à cada ano.

·         Na redução da produtividade do trabalho, dado que, mesmo retornando à atividade econômica, muitos dos que contraem a doença reduzem sua produtividade em função de interrupções para o tratamento ou de sequelas que não permitem recuperar plenamente sua anterior capacidade laboral

·         No aumento dos custos para o empregador, dado que a incidência crescente de câncer leva ao aumento da sinistralidade da população economicamente ativa elevando o preço médio dos prêmios dos seguros de saúde pagos pelas empresas, assim como ao pagamento dos dias parados de seus empregados necessários ao tratamento da enfermidade;

·         Na redução das taxas de retorno do capital humano, dado que os eventuais  investimentos realizados em treinamento e capacitação de trabalhadores que vem a ser portadores de câncer, se perde ao não se materializar plenamente na realização de um trabalho mais qualificado ou com maior valor agregado;

·        Na redução da arrecadação tributária, dado que na medida em que portadores de câncer deixam de trabalhar ou reduzem sua carga de trabalho pelos efeitos da doença, se reduz a magnitude do produto tributável das empresas, o mesmo acontecendo na arrecadação de imposto de renda da pessoa física, quando os trabalhadores passam a receber ou a deduzir do imposto a pagar as despesas médicas em função da doença;

·         No aumento dos gastos públicos agregados com saúde, dado que boa parte do tratamento de câncer se realiza através dos sistemas públicos de saúde, que são financiados com recursos fiscais.  

     No aumento dos gastos públicos agregados com benefícios previdenciáriops, dado que, em países como o Brasil, por exemplo, o período da licença saúde após os 15 dias cobertos pelo empregador, bem como as aposentadorias por invalidez são financiados pelos sistemas previdenciários, com similaridades nos sistemas de pensão de outros países.

Além dos efeitos econômicos, vale a pena mencionar os efeitos da doença no sistema de saúde, entre os quais vale a pena destacar:
·        
      O aumento do consumo de serviços de saúde, dado que o câncer é altamente intensivo no uso de força de trabalho de saúde, no consumo de exames de diagnóstico, de medicamentos, de tratamentos prolongados e intervenções cirúrgicas, sem contar o aumento dos gastos com prevenção da doença que passam a ser feitos como forma de evitar maior morbidade ou mortalidade para aqueles cânceres que são preveníveis;  

     Os  altos custos de tratamento por caso, os quais elevam os gastos públicos, os custos médios por paciente e o valor dos prêmios dos seguros privados e acabam por limitar o espaço para o tratamento de outras doenças também frequentes nos serviços de saúde públicos ou privados;

           A baixa efetividade dos tratamentos, dado que na maioria dos casos de câncer os efeitos na redução da mortalidade tem sido marginais e os resultados são mais paliativos do que efetivos na recuperação dos pacientes. Mesmo nos casos onde se prolonga a vida do paciente, em sua maioria é difícil evitar as recidivas e a mortalidade;

·        Exige adaptações nos serviços de saúde, como uso de salas especiais para tratamento de quimio ou radioterapia, equipamentos mais sofisticados de diagnóstico, etc., que elevam os investimentos dos serviços de saúde com efeitos não proporcionais na melhoria de sua efetividade.
Por fim, vale mencionar os efeitos do câncer na vida cotidiana das famílias e dos indivíduos onde se destaca basicamente:

A redução do bem-estar individual e familiar, dado que, além do sofrimento pessoal ou familiar, todos passam a ter que adaptar suas vidas as rotinas de tratamento dos pacientes;

O aumento da incapacidade física, levando o portador da doença a uma maior dependência do auxílio de familiares para o desempenho de suas rotinas, muitas vêzes até as mais básicas e simples;

O empobrecimento individual ou familiar, provocado pela perda de renda dos portadores (quando economicamente ativos) e dos familiares, que tem que limitar suas atividades de traballho para auxiliar os parentes enfermos, além do alto custo dos medicamentos, transporte e tratamentos paliativos, muitas vêzes não cobertos pelos serviços públicos ou pelos planos de seguro de saúde. Tais circunstâncias podem levar as famílias à perda de patrimônio, que tem que ser liquefeito para pagar os gastos, ou ao endividamento.

A redução de oportunidades do indivíduo ou da familia, dado que o tempo dedicado pela família ao tratamento, passa a tirar o tempo para a educação, lazer, cultura, busca de oportunidades melhores de trabalho e outras atividades que poderiam aumentar o capital intelectual e social das famílias

Em outras palavras, para avaliar os efeitos econômicos globais do câncer (e também de outras doenças) na sociedade, teriamos que considerar como ele afeta a atividade laboral da população economicamente ativa, como ele aumenta os custos de oportunidade dos gastos públicos, das empresas e das famílias, como ele afeta o futuro das famílias que sofrem o efeito da doença (especialmente das crianças ou jóvens em idade escolar), e suas condições de sobrevivência (perdas patrimoniais, endividamento, etc.), além dos custos dos AVISA perdidos pela morte ou tratamento.

Portanto, poderíamos classificar todos estes custos em 3 categorias básicas:

Custos Diretosassociados aqueles incorridos pelas empresas, indivíduos, famílias ou empresas em processos de prevenção, diagnóstico e tratamento, incluindo o transporte de pacientes, hospitalização e ambulatório, reabilitação, promoção para a comunidade, exames e medicamentos;

 Custos Indiretos, como perdas de capital humano pela mortalidade e pela morbidade prematuras e seus efeitos no produto agregado e sua distribuição entre governo (receitas fiscais), empresas (lucros ou dividendos) e familias (rendas derivadas do trabalho); 

Custos Intangíveis, os quais se expressariam nas dimensões não econômicas da doença associadas a dor, ansiedade e sofrimento, as quais seriam difíceis de atribuir uma expressão monetária.

 
Algumas estimativas dos custos indiretos associados ao câncer, ao nivel global

Infelizmente, não existem estudos globais que possam mapear todas as dimensões associadas ao custo do câncer anteriormente mencionadas, mas existem, no entanto, algumas possibilidades de estimar as perdas econômicas como parte dos custos indiretos do câncer. A American Cancer Society e Livestrong publicaram em 2011 um estudo sobre as perdas econômicas globais associadas ao câncer (1). Este estudo, baseado nas projeções de carga de doença da OMS para 2008, não incluiu os custos diretos, mas somente os custos indiretos. Para tal, foi utilizado o custo associado a 17 tipos de câncer por AVISA perdido, de acordo com o nível de desenvolvimento que o Banco Mundial caracteriza as Regiões (países de alta renda, países de renda média alta, países de renda média baixa e países de baixa renda). 

O Estudo também permitiu comparar as perdas econômicas associados ao câncer com otros 14 tipos de doenças, permitindo um ranking das doenças que representam as maiores perdas econômicas em termos de custos indiretos. De acordo aos resultados, estima-se que o câncer, representa perdas econômicas de quase 900 bilhões de dólares anuais, sendo a doença que acarreta maiores custos indiretos ao nível mundial em 2008 (ver gráfico 1). Seguem-se em ordem de perdas econômicas, as doenças cardíacas, os acidentes cérebro-vasculares e a diabetes.
 
Gráfico 1 – As 15 doenças que representam as maiores perdas econômicas (Em US$ Bilhões), ao nivel mundial, de acordo com as projeções da OMS por carga de doença - 2008

 
As perdas econômicas (custos indiretos) associadas ao câncer representavam em média 1,5% do PIB mundial em 2008, mas poderiam alcançar 1,7% em países como os Estados Unidos e até 3% em países como a Hungria.

A metodologia para calcular as perdas econômicas por AVISA, associa-se ao valor econômico atribuido à vida de um indivíduo, de acordo com o seu produto per-capita médio anualmente gerado. Nesse sentido, ainda que existam muitos casos de câncer em países de menor nivel de desenvolvimento, as perdas econômicas são menores dado que a produtividade econômica dos trabalhadores (produto per-capita gerado) é menor nestes países do que nos de alta renda.

De acordo com os resultados do estudo, os três tipos de câncer que levaram a maiores perdas econômicas em 2008 são os cânceres de pulmão (US$ 188 bilhões), do cólon-reto (US$ 99 bilhões) e de mama (US$ 88 bilhões). Estes três tipos de câncer representam 34% dos AVISA perdidos e 42% das perdas econômicas associdas aos 17 tipos de câncer investigados, ao nivel mundial. A tabela 1 mostra os custos econômicos estimados destes tres tipos de câncer, destacando os países de renda alta e de renda média alta (onde se inclui o Brasil).

 
Tabela 1: Perdas econômicas (custos indiretos) dos três tipos de câncer com maior volume de perdas econômicas de acordo com  o nivel de renda dos países (2008), em US$ bilhões.


Verifica-se que, entre os países de alta renda, os perdas econômicas associadas a estes três tipos de câncer são bem maiores do que entre os países de renda média alta, de renda média baixa e de renda baixa, o que se explica basicamente pelos diferencias de produtividade e de renda do trabalho entre estes países e também pela incidência de câncer que é bem mais elevada entre os países de alta renda (2).

A tabela também mostra que, no caso dos países de renda média  alta, não existem diferenças tão significativas entre as perdas econômicas entre os três tipos de câncer e que, com o aumento da incidência de fatores de risco associados a obesidade, os cânceres cólon-retal e de mama passaram a aumentar sua incidência entre estes países.

Já no caso dos países de renda média baixa e de renda baixa, as perdas associadas ao câncer de pulmão e bronquios são significamente maiores do que dos outros dois tipos de câncer, dada a maior mortalidade deste tipo de câncer entre pessoas economicamente ativas, por um lado; e a menor mortalidade de câncer de reto e colon que se associa a pessoas com maior nivel de renda. Também se destaca um menor nivel, não de frequência, mas de perdas econômicas câncer se mama.

Tendências mundiais

Em 2008, a GLOBOCAN estimava a existência de 12,7 milhões de pessoas portadoras de câncer no mundo, dos quais 35% se concentravam na Ásia do Leste (onde se inclui a China e Japão), 18% na Europa Ocidental, 13% na América do Norte, 11% na Asia Central e do Sul (onde se inclui a India) e 8% nos países do Leste Europeu. Os demais 22% dos casos se distribuiam entre a África, os Países da América Latina e Caribe (excetuando-se México) e a Oceania. 

De acordo com os dados disponíveis, a incidência de câncer tenderá a aumentar, especialmente nos países em desenvolvimento. Estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), indicam que o número de casos de câncer passará de 12,7 milhões em 2008 para 22,2 milhões em 2030, dos quais cerca de quatro quintos ocorrerão em países em desenvolvimento, comparados a já elevada cifra de 2008 onde os países em desenvolvimento respondem por 70% dos novos casos. O número de mortes pela doença deverá passar de 7.6 milhões em 2008 para 13,1 milhões, de acordo com estimativas para 2030.

Nos países desenvolvidos, embora não se tenham estudos para todos, pode se dizer que as taxas de incidência para alguns tipos de câncer estão se reduzindo. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, estudos da American Cancer Society (3) mostram que as taxas masculinas de câncer de pulmão e brônquios que chegaram a quase 90 por 100 mil ao redor de 1990, estão próximas de 60 por 100 mil em 2008. Tendências similares, a mais longo prazo, se verificam nos cânceres de estômago, próstata e cólon-retal. Estas tendências se associam à redução dos fatores de risco, tais como o tabaco no caso do câncer de pulmão. Alguns tipos de câncer, no entanto, ainda que tenham taxas de incidência menores, tem apresentado tendência a estabilidade ou ao aumento, como é o caso dos cânceres de pâncreas, figado e da leucemia. 

Tendências recentes, de acordo com o mesmo estudo, mostram reduções recentes na incidência feminina de câncer de estomago, colon-retal e mama entre as mulheres norte-americanas, mas um aumento, seguido de estabilidade, do câncer de pulmão e brônquios, dado que o aumento da frequência de mulheres fumantes começou mais tarde que entre os homens e os efeitos da campanha anti-tabaco ainda não se faziam sentir fortemente no grupo feminino até 2008. Assim, o câncer de pulmão, ainda que tenha uma tendência a longo prazo à redução, é a forma mais frequente desta doença entre a população norte-americana em ambos os sexos.

No entanto, nos países em desenvolvimento, as taxas de incidência de câncer estão aumentando e em poucos anos ultrapassarão aquelas que hoje prevalecem nos países de alta renda. O Brasil, por exemplo, em 2008 já estava entre os países com taxas mais altas do mundo em  câncer de estômago e exôfago entre os homens. O Quadro 1 mostra, na comparação de diversos países ao nivel mundial, qual é a situação do Brasil nos níveis relativos de estimativa de alguns tipos de câncer em 2008. Verifica-se que no Brasil os níveis relativos de incidência masculinos são maiores que os femininos nos cânceres que incidem para ambos os sexos.

 Quadro 1 – Niveis de Incidência Relativa de Alguns Tipos de Câncer no Brasil comparados com os Demais Países do Mundo: 2008
 
Segundo a OMS, cerca de 30% das mortes por câncer poderiam ser evitadas se fossem controlados cinco fatorea de risco:  a) obesidade, b) baixo grau de consumo de frutas e vegetais, c) falta de atividade física regular, d) uso do tabaco e e) uso do alcool em larga escala. Somente ao tabaco se pode atribuir 22% das mortes globais por câncer e 71% das mortes associadas ao câncer de brônquios e pulmão. O câncer causado por infecções virais, como as HBV-HPV entre as mulheres respondem por 20% das mortes por câncer em países de renda baixa e de renda média baixa.  Mas eliminar estes fatores de risco não parece ser fácil na maioria dos países em desenvolvimento.


Por todos estes motivos, a velocidade de aumento dos gastos com câncer, ao nivel mundial e regional, irá depender de vários fatores, cabendo destacar: a) o processo de transição demográfica, especialmente nos países em desenvolvimento, que acarretará em maior número de pessoas adultas e idosas sujeitas a incidência desta enfermidade; b) a capacidade de aumentar os processos de detecção precoce e prevenção, a qual até hoje somente tem avançado para alguns tipos de câncer e c) os custos médios associados ao tratamento e prevenção, em função de medicamentos e da natureza das intervenções clínicas ou cirúrgicas disponíveis.

Notas


2                             2. Entre os outros conjuntos de países, somente aqueles da Europa do Leste e Ásia Central, considerados como de renda média alta, tinham em 2008 uma incidência estimada de câncer similar aos dos países de alta renda (em torno de 18,5 AVISA perdidos por  1000 habitantes). Na América Latina, a incidência estimada era de 10,7 AVISA perdidos por 1000 habitantes). 

3                       3. American Cancer Society (2012), Surveillance Research.




terça-feira, julho 17, 2012

Saúde e Deficiencia Intelectual: A importância do contexto social, cultural e ambiental


Ano 7, No. 39, Julho 2012


Nesta edição, o blog Monitor de Saúde publica o artigo da economista da saúde Flávia Poppe, que trabalha no escritório da Organização Pan-Americana da Saúde no Brasil. Ela explica como o cuidado da saúde dos deficientes tem uma relação iterativa com a necessidade de mudança social, onde o tema da moradia como fator de independência é fundamental para que esta população melhore seus padrões de vida e saúde. O artigo conceitualiza muito bem o problema e também mostra as soluções que vários países vem adotando para promover moradia independente com suporte individualizado para aumentar a qualidade de vida desta população. 

Flávia é uma das fundadoras do Instituto JNG (http://jngprojetosinclusao.org.br), uma organização social de interesse público, com sede no Rio de Janeiro, criada com o objetivo de identificar, promover, coordenar e executar projetos de inclusão social para pessoas com deficiência intelectual (DI), com foco na moradia independente com suporte individualizado.

Segundo os dados do IBGE, entre os Censos Demográficos de 2000 e 2010, o número de pessoas com deficiência intelectual no Brasil se reduziu de 2.844,9 para 2.617,0 mil pessoas, mas mesmo assim representava quase 1,3% da população brasileira em 2010. Esta população, segundo o IBGE, é caracterizada pela dificuldade em se comunicar com os outros, de cuidar de si mesma, de fazer atividades domésticas, de aprender, de trabalhar, de brincar etc. No entanto, trabalhos como os do Instituto JNG são capazes de demonstrar que muitas pessoas com estes tipos de deficiência podem, se conduzidas adequadamente, realizar todas as atividades descritas com maior desenvoltura. O conceito utilizado pelo IBGE não classifica como deficiência intelectual condições como o autismo, a neurose ou a esquisofrenia, o que poderia elevar o número de pessoas com deficiencia intelectual levantadas pelo Censo a proporções bem maiores.

O Instituto JNG aceita doações e colaboração de indivíduos ou instituições que queiram potencializar as ações que vem sendo feitas neste campo através da estratégia e metodologia adotadas. Para tal, é só acessar a página web  (http://jngprojetosinclusao.org.br) e clicar na barra em vermelho escrita FAÇA UMA DOAÇÃO. Com vocês, o artigo de Flávia Poppe.


QUANDO CUIDAR DA SAÚDE IMPLICA EM MUDANÇA SOCIAL
Flávia Poppe

Não é simples nem equitativo ter acesso aos serviços de saúde nas emergências de hospitais, na busca por diagnóstico, no controle de doenças crônicas, tratamentos complexos ou apenas quando sentimos a necessidade de visitar algum especialista. Não é simples, mas o funcionamento desses serviços depende de capacidade de planejamento, recursos humanos, financeiros e organização. Para a saúde e bem estar de pessoas que nascem ou se tornam DEFICIENTES, porém, existe um problema a mais: precisam de mudanças que vão desde adaptações para facilitar o acesso e deslocamento físico até mudanças de comportamento que ampliem a tolerância e compreensão sobre necessidades especiais para facilitar sua inclusão social, ja que estas pessoas respondem diferentemente aos processos de aprendizagem e, portanto, de vida.

Esse artigo pretende descrever uma perspectiva dessa problemática, apontar para um movimento de inclusão através do conceito de moradias independentes que vem se dando em alguns países. Tem por objetivo convidá-los a refletir sobre a situação na qual se encontra o Brasil com relação à esse tema para ampliar e ganhar adesão de profissionais, organizações e todo agente social que possa contribuir para melhorar as condições de vida adulta das pessoas com deficiência.

DEFICIÊNCIA

Em termos gerais a definição de deficiência contida nos dicionários é implacável: falta; falha; carência; imperfeição; defeito. A Wikipedia diz que “Deficiência é o termo usado para definir a ausência ou a disfunção de uma estrutura psíquica, fisiológica ou anatômica.” Para nossa abordagem vamos tratar apenas de um tipo de deficiência que é a DEFICIÊNCIA INTELECTUAL,  uma forma de deficiência mental que agrupa pessoas  com autismo, síndrome de Down,  Asperger, Williams, Fragilidade do X, entre vários outros tipos de transtornos que comprometem o desenvolvimento intelectual de crianças, jovens e adultos. Nesse caso, a deficiência não é exatamente uma ausência, uma disfunção ou mesmo uma marca que a pessoa tem como, por exemplo, a cor de seus olhos ou o tipo de cabelo. Em geral é um estado particular de funcionamento da mente que começa na infância e é caracterizado por limitações nas habilidades adaptativas para aprender com os recursos e métodos disponíveis. Como afirma a Dra Maryse Suplino  (1) “a visão da deficiência intelectual como um estado particular de funcionamento, remete à compreensão da mesma para o ajuste entre as capacidades do indivíduo e as estruturas e demandas de seu ambiente. Não se trata, portanto, de algo que o sujeito carrega em si, mas de uma relação dinâmica entre ele e seu meio.”  Pensar também sobre o nosso meio faz parte, digamos, do tratamento de pessoas com deficiência. E nesse caso faz parte do escopo e abrangência do campo da Saúde.

DEFICIÊNCIA NA FASE ESCOLAR

Embora tenhamos escolhido o tema especifico das moradias para pessoas com deficiência, existe uma fase longa e cheia de obstáculos que antecede a escolha de moradia que é a fase escolar dessas pessoas.

As etapas do desenvolvimento que parecem naturais para a maioria das pessoas, muitas vezes são conquistas para essas crianças. Caminhar, falar, ir ao banheiro sozinho, vestir-se, fazer laço nos sapatos, ler, escrever, contar e usar números, enfim, cada etapa de aprendizagem requer métodos próprios, adaptações, estímulos afetivos e muito trabalho de autoconfiança.

A fase escolar, por essa razão, requer alternativas metodólogicas de ensino e, portanto, treinamento especial para os professores. Incluir uma criança com dificuldade de aprendizagem nas escolas não é uma mera questão de solidariedade e compaixão (sempre necessárias do ponto de vista humanista). É, sobretudo, uma questão de capacitação de profissionais, famílias, e disponibilização de recursos para as adaptações necessárias para cada caso de deficiência. Não é suficiente declarar que a escola é inclusiva, é preciso trabalhar de forma distinta e isso muitas vezes custa caro. Não compreender a complexidade da fase escolar para as crianças que possuem deficiência pode fazer com que políticas inclusivas tenham resultados nem sempre positivos. Cada caso é um caso e deve ser bem avaliado para oferecer a estrutura adequada para cada fase do desenvolvimento psíquico e social da criança.

Nosso país já avançou muito nesse sentido e, hoje, estamos colhendo os primeiros resultados de uma geração que teve acesso às políticas inclusivas como a entrada de pessoas com Síndrome de Down na faculdade, por exemplo. 

DEFICIÊNCIA NA FASE ADULTA

Terminada a fase escolar para aqueles que não conseguiram completa-la de forma suficiente, dá-se inicio a uma nova fase da vida que, infelizmente ainda hoje no Brasil, predominam as incertezas e uma forte tendência a limitar as possibilidades de autonomia dessas pessoas que passam a depender muito de suas famílias ou da proteção social do Estado. Uma ou outra forma de dependência pode ser maior ou menor em função do grau de exposição social e praticas que ampliem continuamente a capacidade de autonomia dessas pessoas. Entre as famílias, por exemplo, uma simples atitude protetora como tomar a iniciativa de cortar a carne com a faca para que a pessoa não corra o risco de se cortar (o que sempre é possível com qualquer um) pode impedir que essa habilidade se desenvolva. De forma análoga, quando o Estado coloca mais ênfase nas políticas de assistência do que em políticas sociais que garantam o direito ao trabalho, à moradia e toda forma de convívio social, também está reforçando a dependência em detrimento da autonomia.

Autonomia se ensina e se pratica todos os dias. Para isso, é preciso levar em conta a interação entre a pessoa e o meio através das coisas que fazem sentido para a vida daquela pessoa. Por exemplo, não é preciso ensinar matemática para que uma pessoa com deficiência intelectual reconheça que o numero do ônibus que precisa pegar é o 415. Para usar e reconhecer a moeda/dinheiro também não é preciso passar pelo caminho clássico da noção numérica e de álgebra. As vezes é preciso, antes, despertar o interesse para que a pessoa use dinheiro e, depois, a ser prudente.

É possível aprender, mas de uma forma diferente, adaptada e, sobretudo, interessante para eles. A dona de uma casa de chá na cidade de Oporto em Portugal, por exemplo, resolveu empregar pessoas com DI. Ela percebeu que alguns deles possuíam um dom na forma carinhosa de tratar que poderia atrair seus clientes. Para isso, resolveu e adaptou de maneira muito simples o momento do pedido que requer uma habilidade nem sempre desenvolvida entre as pessoas com DI, a escrita. Os rapazes e moças davam o bloco de notas e a caneta para os clientes que rapidamente entendiam que era para eles próprios escreverem seus pedidos. Eles pegavam o bloquinho e entregavam na cozinha. São “mediações” que legitimamente abrem novos espaços de convívio social. O fato de uma pessoa não conseguir escrever é, sem duvida, um impedimento, mas não uma limitação social. Essas pequenas grandes “sacadas” mudam completamente o horizonte da vida adulta de pessoas com deficiências.

MORADIA

Mais cedo ou mais tarde surge o tema das moradias. Lamentavelmente as famílias ainda tratam os assuntos mais delicados da vida seus filhos, netos, sobrinhos deficientes com certo tabu. É preciso encarar a vida sexual deles que, como para todo mundo, começa na socialização com outras pessoas. Desejar outra pessoa é um sentimento inevitável. É preciso, portanto, ensinar, falar, cuidar. É preciso, como sociedade, aceitar que existam espaços públicos para que essas pessoas se divirtam. E nesse contexto, insere-se o tema da moradia. Não tem porque ser um tema para depois que os pais morram e muito menos intocável. Não na segunda década do século XXI.

Há mais de quarenta anos existe uma importante tendência de desospitalização de casos de doença mental em todo o mundo. Enclausurar essas pessoas já e aceito como uma pratica desumana e inaceitável. Desde então o Estado (especialmente nos países com tradição de sistemas consolidados de proteção social como é o caso dos países europeus) vem buscando formas de executar suas políticas sociais seguindo essa tendência. Surgiu, assim, o conceito de moradia assistida. São moradias pequenas com quartos independentes e cômodos sociais comuns - cozinha, sala de TV, living, às vezes banheiros para serem compartilhados. Em geral há um responsável/empregado treinado que mora na casa e administra tudo. A rotina também inclui atividades ocupacionais ou recreativas. Um grande avanço. No Brasil, há um movimento muito ativo e bacana no sentido de exigir que as moradias que o governo oferece às pessoas deficientes carentes siga esse modelo.

O Brasil é signatário da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU/2006) ratificada pelo Decreto 6.949/2009. Entre outras medidas que reconhecem o direito de todas as pessoas com deficiência de viver na comunidade e se comprometerem com a efetivação de medidas para sua plena inclusão, o Decreto assegura em seu artigo 19 que:

  • As pessoas com deficiência podem escolher seu local de residência e onde e com quem morar, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, e que não sejam obrigadas a viver em determinado tipo de moradia;
  • As pessoas com deficiência devem ter acesso a uma variedade de serviços de apoio em domicilio ou em instituições residenciais ou em outros serviços comunitários de apoio, inclusive os serviços de atendentes pessoais que forem necessários como apoio para que as pessoas com deficiência vivam e sejam incluídas na comunidade e para evitar que fiquem isoladas ou segregadas da comunidade;
  • Os serviços e instalações da comunidade para a população em geral devem estar disponíveis às pessoas com deficiência, em igualdade de oportunidades, e devem atender às suas necessidades.
Portanto, do ponto de vista legal, o Brasil avançou. Mas é possível ou desejável pensar na opção de moradias independentes, ou seja, que pessoas com DI morem sozinhas? Por quê?

Se conectarmos o movimento de autonomia em andamento na fase escolar e pré-adulta com a questão da moradia sem os pais, temos elementos suficientes para refletir sobre a necessidade de modelos inovadores. Morar sozinho é estruturante.

Pensemos sobre o momento em que saímos da casa de nossos pais. Existem dois lados: o do filho que sai e o dos pais que assistem a esse movimento. Possivelmente a maioria de nós já está vivendo mais intensamente as lembranças da saída dos filhos mas ninguém esquece o quanto essa etapa foi marcante na vida. Para os filhos abre-se um mundo de novos sentidos e obrigações que os lançam na vida madura seja como for. Se deparam com a obviedade de que as roupas não entram em seus armários limpas e passadas sem ações que você passa a comandar ou fazer, a geladeira não enche sozinha e se as contas não forem pagas o serviço é implacavelmente cortado. Por outro lado a agradavel sensação de ser dono de seu nariz não tem preço. Essa “nova pessoa” tem a chave da porta da frente e dali para dentro ela tem seus domínio e escolhas. Isso influencia o universo do lado de fora também porque, sendo capaz de ocupar um espaço do seu jeito, essa pessoa se reafirma como individuo social. A pessoa coloca em prática sua identidade, reserva seus gostos e prazeres, e também se sente protegida. Um círculo virtuoso.

Mas como os pais vivem esse momento? Depende. O mais comum é que os filhos saiam de casa para se casar, mas isso é cada vez menos frequente. Então, o sentimento pode estar misturado com o desejo de felicidade para aquela relação tradicionalmente desejada, mas ainda assim existe a angustia do desconhecido. Como será que meu filhinho ou minha filhinha vai viver a partir de hoje sem mim? E quando saem porque querem, porque estão maduros o suficiente para viverem sua própria vida? A angustia é ainda maior e, dentro do possível, faz-se um rito de passagem, seja como for. 

E qual é, então, a diferença entre esse momento para uma família “normal” e uma família com um filho (a) com deficiência intelectual (ou outra)? Tal como as inúmeras etapas citadas na infância, tudo é mais sofrido e lento na evolução e aprendizagem das pessoas deficientes. Um tempo “anormal” mas uma vida normal. A ideia de que um filho deficiente pode morar sozinho eleva a bilionésima potencia a angustia dos pais que veem seus filhos saírem de casa. Mas, em essência, não há muita diferença. De certa forma, para todos trata-se de uma decisão racional que exige olhar para a frente e acreditar. 

MORADIAS INDEPENDENTES NA INGLATERRA

Movidas por essas questões, fundamos um Instituto para entrar formalmente nesse debate: como moram as pessoas com deficiências e até que ponto é possível inovar? Depois de algumas pesquisas identificamos uma organização na Inglaterra – Ability Housing – que já coloca em prática o modelo de moradias independentes para pessoas com deficiência física, mental e intelectual há mais de 10 anos.

Um dos aspectos interessantes da politica de Habitação na Inglaterra é que o Governo credencia organizações que queiram alugar imóveis com preços acessíveis para os cidadãos. Uma espécie de “Minha Casa Minha Vida” aberto para o mercado, mas regulado. Parte desses imóveis deve ser destinado para as pessoas com deficiência. Construtores de casas na Inglaterra podem vender 75% de seus produtos livremente, e os demais 25% devem ser vendidos a preços acessíveis (affordable housing). Dos 25% de moradias acessíveis 10% devem ser oferecidos para pessoas com deficiência. Em articulação com o Serviço Social estes espaços são administrados por organizações como a Ability Housing que administram esses imóveis como provedores credenciados.

Fomos lá conhecer essa organização para entender como eles colocam em pratica a rotina de vida de pessoas com deficiência intelectual em apartamentos próprios. O diretor da organização nos explicou que esse modelo era relativamente novo mas que seguia a evolução das experiências vividas e avaliadas ao longo dos últimos 40 anos. A politica de habitação na Inglaterra é local. Alguns “prefeitos” adotaram o modelo de moradias independentes e outros ainda não. Visitamos vários apartamentos e moradores que variavam de condição e idade. Dos 19 anos aos 70 vimos pessoas com condições mais ou menos severas, o que nos levou a constatar que não há critério de pré-seleção para morar sozinho e sim a quantidade de horas de apoio individualizado necessário para garantir a segurança dessas pessoas. Portanto, termina sendo uma questão de “willigness to pay”. Na Inglaterra, o Estado decide.

David Williams, o Diretor da organização, nos contou que a ideia nasceu de um workshop entre gerentes e cuidadores de residências com locais comuns de convivência (comunal living). O titulo que deram à oficina era “who stole my corn flakes?” Debateram durante um fim de semana o tempo que gastavam administrando conflitos entre os residentes  de casas compartilhadas (disputa por canais de TV, uso de salas comuns, comida na geladeira e estoques guardados nos armários) e chegaram a conclusão que se esse tempo pudesse ser dedicado exclusivamente a cada um deles, trabalhando suas habilidades e capacidade de autonomia, possivelmente todos se sentiriam melhor e mais independentes. Assim lançaram o primeiro modelo de moradia independente com uma arquitetura inovadora. Os imóveis passaram a ter poucos apartamentos completos, sala, quarto, cozinha, banheiro próprios e um apartamento para um profissional cuidador que dormia no prédio. Os ganhos foram muito maiores do que podiam imaginar naquele momento. A confiança, auto-estima e prazer de um adulto poder escolher sua própria decoração, assistir o que quiser na TV, estar sozinho na cozinha e, quando quiser e se quiser, socializar é exatamente o que todos nós fazemos em nossas vidas. Uma casa para dizer que é sua. 

Mas o que “os ingleses” têm que nós não temos e o que “nós brasileiros” temos que eles não têm? Facilmente reconhecemos a solidez do tecido social britânico sobre o qual instituições voltadas para politicas sociais inclusivas são criadas. Politicas de seguridade social e de habitação voltadas para as classes menos favorecidas são pilares sobre os quais uma organização como a Ability Housing cresce a cada ano. O modelo não existe sem o suporte do governo que, por sua vez, garante acesso a todas as pessoas com deficiência a um sistema de assistência social, saúde, educação e moradia gratuitos, sem falar nas politicas inclusivas de emprego e espaços públicos acessíveis. 

O INSTITUTO JNG
Essa imagem é quase suficiente para desistirmos de pensar essa questão no Brasil mas, essencialmente, não é tão difícil assim... Muitas coisas que o Estado supre nos países anglo-saxões fazem parte de uma vocação latina solidária, calorosa e humanista que nenhum modelo ou revisão sistemática consegue suprir. Portanto, não tem solução ideal, mas sim existe a necessidade de lançar luz sobre caminhos ainda sombrios.
O Instituto JNG  (http://jngprojetosinclusao.org.br) pretende levantar esse tema e, quem sabe, viabilizar projetos agregando agentes sociais interessados em mudar nossa sociedade nesse sentido. No Brasil temos uma cultura afetiva que favorece muito e de forma natural a convivência com pessoas com deficiência. Se por um lado ainda precisamos batalhar demais por direitos sociais, existe entre nós acolhimento afetivo, calor, amigos e família que se relacionam de forma distinta e estimulante. Precisamos quebrar medos, dissolver fantasmas que reforçam o conceito de DISability e valorizar todas as praticas de vida que estimulam as habilidades

Existe uma corrente forte na reflexão sobre sistemas de saúde de que a prevenção deveria pautar as politicas. Tratamento e cura apenas para o inexorável, as doenças. Mas nesse caso estamos no campo dos determinantes sociais da saúde, uma linha tênue de interação entre tudo o que cabe na vida e o bem estar das pessoas. Esse é um desafio transcendental. Afinal de contas, segundo a definição da Organização Mundial da Saúde, felicidade faz parte da saúde. E a independência, na visão de muitos, é um dos fatores que gera felicidade.




(1) Instituto Ann Sullivann e Instituto JNG Uso de Metodologia do Curriculo Funcional Natural integrado à moradia independente para pessoas com deficiência intelectual Documento Conceitual, 2010.