segunda-feira, novembro 02, 2009

Barack Obama e a Reforma de Saúde Norte-Americana

Ano 4, No. 7, Novembro 2009


André Medici



1.Um país que não recebe o que gasta em saúde

Os Estados Unidos é um país sui-generis em seus gastos em saúde. E não é de hoje. Em 1960, quando os países da (atual) OCDE gastavam em torno de 4% do PIB com saúde, os Estados Unidos gastava 5%. Em 2007, a média da OCDE já havia chegado aos 9% mas os Estados Unidos estavam nos 16%. Por outro lado, enquanto os demais países mencionados alcançaram a cobertura universal de saúde para sua população, cerca de 16% dos norte-americanos (46 milhões de pessoas) se declaravam sem cobertura naquele mesmo ano e a cobertura não tem aumentado nos últimos quinze anos.

Olhando mais de perto, de um conjunto de seis países da OCDE que inclui os Estados Unidos, verifica-se que os norte-americanos, gastando em saúde uma média percapita de US$6,102 dolares anuais, dos quais US$878 somente em medicamentos , sofriam com o pior desempenho nos indicadores de qualidade, acesso, eficiência, equidade, além de vidas mais curtas e menos produtivas, quando comparado com países que gastavam entre US$ 2,083 (Nova Zelândia) e US$ 3,165 (Canadá) per capita-ano em saúde.

Mesmo pagando mais por saúde, os norte-americanos tinham pior acesso. Em 2008, os pacientes crônicos dos Estados Unidos compartilhavam com os canadenses o fato de que somente 26% conseguiam marcar consultas para o mesmo dia, porcentagem que variava entre 60% e 36% na Holanda, Nova Zelândia, Alemanha, França e Austria. Considerando o mesmo conjunto de países, os norte-americanos tinham mais dificuldades em conseguir atendimento noturno ou nos fins de semana e foram os que declararam maiores problemas associados a coordenação do cuidado, a erros em conduta médica e a problemas na administração de medicamentos aos pacientes. Somente 28% dos médicos tinham fichas clínicas eletrônicas de seus pacientes, comparados com percentagens superiores a 80% na Holanda, Nova Zelândia, Inglaterra e Austria. Em suma, 54% dos norte-americanos com doenças crônicas declararam ter problemas de acesso aos cuidados médicos em função dos altos custos e limitações administrativas, percentagem que não ultrapassava os 30% nos outros países mencionados da OCDE.

Como resultado, além de gastar muito e ser pior atendido, o norte-americano morre um pouco mais cedo do que seus pares nos países da OCDE. A esperança de vida ao nascer nos Estados Unidos em 2006 era de 78,1 anos, comparada com 78,9 em média nos demais países da OCDE . Paises como Australia, Canada, França, Islandia, Itália, Japão, Nova Zelândia, Noruega, Espanha, Suécia e Suiça tinham neste mesmo ano esperança de vida ao nascer superior aos 80 anos. A taxa de mortalidade infantil também é maior nos Estados Unidos do que ná média dos países da OCDE (6,7 por mil comparada com 5,1 por mil). As taxas de mortalidade por causas que poderiam ser postergadas por melhores cuidados a saúde alcançaram 110 por 100 mil habitantes nos Estados Unidos, valores superiores aos encontrados em pelo menos 14 países da OCDE .

Os Estados Unidos Unidos gasta 49% dos dispêndios mundiais de saúde, mas sua população é somente 5% da população mundial e mesmo assim, esse atendimento está atrelado a todos os problemas anteriormente mencionados. Entre os países da OCDE, é o que apresenta a maior participação do gasto privado e do gasto familiar sobre o total das despesas de saúde.

A queda de cobertura de saúde se explica por uma série de motivos: a) sendo o seguro de saúde voluntário para a maioria da população norte-americana, há aumentado o número de pessoas sem capacidade financeira de ter acesso aos planos de saúde cujo custo aumenta a cada ano em proporções superiores à inflação; b) o número de empresas que ofertam benefícios de saúde aos seus empregados tem diminutido com o tempo; c) os mercados individuais de planos de saúde limitam a cobertura de condições pré-existentes e as operadoras de planos de saúde podem rejeitar pacientes com base em seus riscos individuais .

Como resultado, os seguros de saúde se tornaram muito caros aos indivíduos (e também as pequenas e medias empresas) e 62% das bancarrotas familiares em 2007 estiveram associadas a custos relacionados à saúde nos Estados Unidos.
Entre os fatores que estão associados aos altos custos da saúde nos Estados Unidos se pode enumerar: (a) altos custos administrativos (7,4% comparados aos 4,4% na média da OCDE ); (b) altos salários e remunerações dos médicos; (c) alta utilização de profissionais e procedimentos especializados ou de cuidado intensivo como porcentagem dos serviços de saúde prestados e; (d) baixo uso de processos redutores de custo ou compartilhadores de risco como os pagamentos por capitação.

2.O que pode ensinar a experiência internacional?

O grande desafio dos Estados Unidos é alcançar maior cobertura e qualidade com menos gasto. Tal situação vem despertando discussões em muitos países. Uns chegam a dizer que podem ensinar aos americanos a sair do atoleiro e outros culpam, uma vez mais, o capitalismo selvagem e o modelo privatizante pelo fracasso na saúde norte-americana. Mas a realidade está muito longe disso.

Do ponto de vista econômico, a saúde é um setor singular e desde os escritos do premio nóbel Keneth Arrow nos anos sessenta, economistas da saúde vem destacando as peculiariadades econômicas deste setor que o fazem diferir dos demais. Os gastos em saúde são relativamente inelásticos e os custos do setor crescem basicamente em função de fatores externos (nível de renda e envelhecimento populacional) e internos (uso de tecnologia médica e modelos de gestão) ao setor.

Por todos esses motivos, alguns páises aprenderam que sem regulação adequada não há chances de aumentar a eficiência econômica do setor saúde. Esta regulação é cada vez mais complexa e deve atuar não apenas no sentido de reduzir falhas de mercado, mas também evitar importantes falhas de Estado, decorrentes do monopólio da provisão pública. Neste contexto, vale a pena separar o que os demais países eventualmente teriam a ensinar aos Estados Unidos, segundo seu grau de desenvolvimento

a)Os Países Desenvolvidos

Os países europeus, o Japão, a Austrália, o Canadá e a Nova Zelândia, não costumam dizer aos norte-americanos o que fazer. Na verdade, seus sistemas de saúde tem sido aprimorados também pela importação de inovações geradas pela experiência norte-americana de gestão em saúde (como os Grupos Relacionados de Diagnótico – DRG - e a separação da gestão de saúde da provisão de serviços), de modo a permitir que seus modelos estatizantes corrijam suas falhas de Estado através de mais concorrência regulada. Estes países (talvez com exceção do Canadá), depois de verem seus modelos de welfare state patinarem no gigantismo estatal, aprenderam que a gestão empresarial tem suas vantagens e procuraram dosar seus objetivos de cobertura universal, equidade e oferta pública com os incentivos e a gestão moderna de mercado.

Do ponto de vista da regulação, os países desenvolvidos tem usado os incentivos de mercado e a concorrência administrada para evitar as falhas de Estado no setor saúde. Apreenderam como usar o pooling de risco e os incentivos para controlar custos e preços e negociar melhor as compras públicas de serviços com distintos provedores. Trabalham de forma mais estruturada com os sistemas de tecnologia de informação para racionalizar o uso de pessoal, materiais e recursos de infra-estrutura clínica.

Os países europeus, por exemplo, tem como critério básico a regulação do mercado de seguro de forma a assegurar uma concorrência administrada e ajustada ao risco. Muitos fazem com que a cobertura seja compulsória e não voluntária e provêem subsídios para aqueles que não podem pagar por um plano de seguros.

Os países desenvolvidos, onde uma importante excessão é os Estados Unidos, tem tido melhores resultados em utilizar a saúde pública, a atenção primária e modelos de promoção e prevenção como forma de evitar gastos catastróficos em doenças crônicas. Promovem com mais eficiência mudanças no comportamento de risco de suas populações, incentivando-as a praticarem hábitos mais saudáveis, a reduzir o sedentarismo e vários outros fatores que levam ao aumento dos custos de atenção médica. Países como o Chile, por exemplo, após a ditadura, conseguiram estabelecer uma opção pública de cobertura para planos de saúde e regulação adequada para evitar descremes e recusas de cobertura por parte dos planos de saúde.

A maioria dos países desenvolvidos também tem utilizado modelos de atenção médica mais integrados, através de redes de saúde, como mostra o exemplo de médicos de família na Inglaterra e o uso frequente de regulação nas redes de saúde, facilitada pelas tecnologias de informação e pela regulação e controle dos processos de referência e contra-referência em saúde.

Por fim, mas não em menor importância, os países desenvolvidos tem avançado muito no uso da epidemiologia e na percepção dos usuários sobre seu estado de saúde na definição de prioridades sanitárias, a partir dos estudos de carga de doença. Ao definir prioridades de saúde, definem também os protocolos, as linhas de cuidado e os mecanismos de entrega destes serviços, estudam seus custos básicos e estabelecem mecanismos de compra pública ou privada de serviços que se baseiam nestes parâmetros.

Muitos destes estudos, processos e formas de integração do cuidado médico, ainda que tenham sido desenvolvidos e testados por instituições e universidades norte-americanas, não se encontram difundidos naquele país e lá são aplicados pontualmente e de forma voluntária (como pode ser visto na exitosa experiência da Kaiser Permanente na California). Nos demais países desenvolvidos, onde a regulação pública do setor está mais presente e fortalecida, este desenvolvimento tem sido acelerado nos últimos anos.

b)Os Países em Desenvolvimento

Alguns países em desenvolvimento, orgulhosos de seus modêlos, dizem que podem ensinar aos norte-americanos o que fazer, mas na verdade, o sucesso destes países está condicionado à passagem de situações sem cobertura para uma oferta razoável de serviços básicos de saúde. Seu desafio, portanto, não foi reduzir custos com melhorias na cobertura e qualidade, mas ao contrário, aumentar gastos para cobrir uma população amplamente carente de serviços. Grande parte da luta dos chamados “movimentos sanitários” dos países desenvolvidos está em aumentar e não reduzir gastos em saúde.

Os países em desenvolvimento, especialmente na América Latina, apresentaram grandes avanços em aumentar a cobertura, reduzir a mortalidade materno-infantil, estruturar modelos de atenção primária e equipes interdisciplinares de saúde e, através disso, melhorar o quadro da atenção básica nos últimos vinte anos. Mas seus indicadores de saúde (com algumas exceções como o Chile) ainda estão muito aquém da realidade dos países desenvolvidos. O desafio da qualidade e o fôsso de desigualdade no acesso ainda são maiores na América Latina do que nos Estados Unidos.

Os modelos inovadores de gestão pública, iniciados ha pouco tempo, e que conseguem baratear e melhorar a qualidade da oferta pública de serviços de saúde (como é o caso das Organizações Sociais ou Fundações Estatais no Brasil), são ameaçados ou entorpecidos pela atuação da justiça e dos movimentos sindicais dos profissionais de saúde que atuam contra os interesses da população mais pobre. Estes, em nome de lutar contra o fantasma da privatização da saúde, acabam privatizando de fato os recursos públicos nas mãos do corporativismo dos profissionais de saúde, levando o sistema público a trabalhar menos e beneficiar os que tem mais acesso à informação. Acabam defendendo (mesmo implicitamente) o uso das instituições públicas de administração direta em favor do interesse privado destes grupos, e não em favor das necessidades públicas dos grupos mais carentes da população.

Algumas estratégias exitosas de atenção primária e visitação em saúde em áreas remotas e modelos de asseguramento mais regulados utilizados nos países em desenvolvimento, podem se constituir em experiências transferíveis para os Estados Unidos, permitindo uma maior cobertura e uma melhor regulação da oferta. No entanto, dadas as diferenças epidemiológicas entre os Estados Unidos e estes países, temas como qualidade e capacitação teriam que ser retrabalhados no contexto norte-americano para que estas experiências visessem a apresentar bons resultados.

3.A reforma proposta pelo Presidente Barak Obama

O Presidente Barack Obama não tem sido o primeiro a propor uma grande reforma no sistema de saúde norte-americano. Outros presidentes norte-americanos já o fizeram, incluindo mais recentemente Bill Clinton.

O Plano Clinton, entre as iniciativas anteriores de reforma de saúde, foi o que chegou mais perto de um processo efetivo de atacar os desafios da inequidade e falta de acesso à saúde nos Estados Unidos, mas as resistências de vários setores da sociedade não permitiram que o plano sobrevivesse. No entanto, ele foi o embrião de várias iniciativas de reforma e extensão de cobertura iniciadas ao nível dos Estados norte-americanos, destacando-se a de Massachussets – a primeira iniciativa estadual a propor um plano de cobertura universal de saúde com responsabilidade mútua do Estado, dos empregadores e das famílias. Estas reformas estaduais, nos últimos anos tem cimentado o consenso, ainda que de forma parcial de que algo deveria ser feito e algumas experiências exitosas – tanto no setor público como no setor privado – tem sido capazes de demonstrar caminhos que poderiam ser traçados para lograr maior cobertura e qualidade a custos menores.

A atual proposta de reforma de saúde norte-americana tem sido apresentada no debate público pela necessidade de enfrentar cinco desafios: (a) extensão de cobertura para todos; (b) organização do cuidado em torno do paciente; (c) incentivos financeiros para reduzir custos; (d) atenção médica eficiente e de qualidade; (e) regulação pública e integração entre os sistemas públicos e privados.

a)Extenção de cobertura acessível para todos

O desafio neste caso é extender (de forma mandatória) a cobertura para todos, incluindo os 46 milhões de norte-americanos que não tem um seguro de saúde. Para que este desafio seja solucionado, algumas medidas estão sendo propostas pelo Governo e discutidas pelo Senado Norte-Americano. Abaixo se descreve o resumo das propostas vigentes até outubro do presente ano.

• Quanto aos indivíduos, incentivos fiscais, como deduções de até US$750 por pessoa coberta no imposto de renda seriam aplicáveis. Ao mesmo tempo, multas individuais de até US$750 por pessoa também seriam aplicáveis no caso de não haver cobertura, excluindo aqueles que por falta de renda não tivessem condições de pagar por um seguro;

• Quanto as empresas, a proposta original apresentada pelo Governo diz que aquelas com mais de 50 empregados, terão que pagar, a partir de 2013, uma multa por trabalhador não coberto por plano de seguro de saúde. As pequenas empresas (com menos de 50 empregados) receberão incentivos (deduções) fiscais para afiliar seus trabalhadores a planos de saúde. O Senado propôs, como alternativa, que empresas com mais de 25 empregados pagariam 60% do valor do prêmio por empregado e que as multas por trabalhador de tempo parcial não coberto seriam de somente US$375 por empregado por ano. As pequenas empresas, ao invés de ter deduções fiscais receberiam subsídios públicos para afiliar seus empregados.

• Quanto ao Mercado de Seguro Saúde, seriam aplicados processos regulatórios para disciplinar os planos privados e oferecer novas opções, extendidos também ao setor público e às cooperativas. Os planos deverão ter um conjunto mínimo de benefícios que serão reembolsados por valores entre 70% e 95% dos seus custos atuariais estimados. Os planos deverão ser diferenciados por grupos de idade (três a quatro grupos, incluindo na proposta do Senado, uma apólice especial para jóvens adultos) e deverão ter portabilidade, de modo a permitir opções de troca de operadoras de planos pelos pacientes sem perdas de direitos de cobertura.

• Quanto ao Estado, seria oferecida uma opção pública, isto é, a criação de uma agência governamental que ofereceria planos de saúde, tendo a capacidade de captar aquelas pessoas não incluidas ou aceitas nos planos privados de saúde, porque não podem pagar ou porque, dado seu nível de risco, seriam recusadas pelas operadoras. Esta agência não subsidiaria o preço dos planos, mas buscaria eficiência e evitaria abusos praticados pelos planos na busca por pacientes que representam lucro fácil pelas operadoras, por terem menor risco. Assim como o Medicare, esta agência não proveria diretamente serviços de saúde, mas contrataria provedores privados. Isto poderia evitar que parte dos 46 milhões de pessoas sem cobertura tivessem alguma opção para seus problemas específicos de saúde, mesmo que rechaçados por operadoras existentes no mercado privado .

b)Organização do Cuidado em Torno ao Paciente

A proposta neste caso consiste em criar estímulos para aumentar as medidas de cuidados de prevenção e comportamento saudável dos pacientes e estimular os serviços de atenção básica. No primeiro caso, o Governo Federal propõe o desenvolvimento de uma estratégia nacional de promoção e prevenção em saúde, investindo e dando recursos de doação para o apoio a programas preventivos junto às comunidades, assim como incentivos financeiros aos indivíduos e planos de saúde para o cumprimento de estratégias de promoção e prevenção.

Alguns elementos da proposta são: (a) eliminar o co-financiamento do usuário para as ações de promoção e prevenção comprovadamente necessárias em programas públicos como o Medicare , (b) estimular a mesma prática em planos privados de saúde e (c) criar rotinas incentivadas de visitas anuais para prevenção e avaliação de risco de saúde.

No caso dos serviços de atenção básica, a proposta é aumentar o valor da remuneração dos médicos de atenção primária no Medicare em proporções superiores que as remunerações recebidas pelos especialistas. Dado que grandes volumes de serviços curativos a pacientes crônicos idosos representam gastos crescentes no Medicare, essa proposta estimularia maior promoção e prevenção de modo a reduzir o gasto no programa público mais caro de saúde norte-americano. Algumas das emendas propostas pelo Senado são a criação de bonus aos médicos de atenção primária em até 10% sobre os valores faturados durante os cinco primeiros anos da reforma, ao lado de cortes nos pagamentos aos demais serviços médicos especializados em 0,5%.

c)Incentivos Financeiros para Reduzir Custos

Nesta área, as propostas do Governo e as emendas do Senado vem trabalhado em projetos pilotos de pagamento de provedores inovadores. As inovações no sistema de pagamento aparecem através de propostas de clínicas de familia (medical homes), organizações de prestadores mais transparentes (accountable care organizations) e hospitais de contra-referencia e atenção pós-agudos (bundled hospital and post acute care).

Estas inovações permitem testar formas mais baratas e integradas de pagamento a provedores que, uma vez que se provem funcionais, seriam aplicadas em massa em sistemas públicos como o medicare e medicaid. Para aumentar os incentivos a estas experiências, o governo poderia estabelecer fundos especiais (grants) para seu financiamento.

d)Atenção Médica Eficiente e de Qualidade

As propostas relacionadas a este campo estariam estruturadas como melhorias na produtividade do sistema, análises comparativas de efetividade clínica e melhoria da qualidade dos serviços.

• Melhorias na produtividade poderiam surgir alinhando incentivos financeiros aos procedimentos mais custo-efetivos, atualizando permanentemente protocolos médicos e sistemas de pagamento prospectivo de acordo com estes princípios e compondo a cesta de procedimentos recomendados por estes critérios;

• Análises Comparativas de Efetividade seriam possibilitadas através da criação de Centros de Pesquisa que permitissem avaliar os resultados clínicos de diferentes tipos de intervenções em saúde, permitindo a seleção daqueles que comprovadamente demonstrassem melhores resultados por custo incorrido.

• Melhorias na Qualidade dos Serviços seriam alcançadas através da criação do Centro para Melhoria da Qualidade (Center for Quality Improvement) de forma a identificar, desenvolver, avaliar, disseminar e implementar as melhores práticas clínicas, estudar e definir as prioridades nacionais em saúde para melhorar o desempenho das instituições de saúde e definir indicadores e medidas de qualidade em saúde. Para tal, também se discutem fundos públicos para apoiar experiências inovadoras para melhorar a eficiência dos serviços. A proposta ainda contempla o estabelecimento de uma estratégia nacional, regulada pelo Estado, para o desenvolvimento da qualidade em saúde.

e)Regulação Pública e Integração entre os Sistemas Públicos e Privados

O Mix público-privado de serviços de saúde nos Estados Unidos existe desde o momento em que programas públicos como o Medicare e Medicaid passaram a utilizar, nos anos oitenta, planos privados de saúde, em alguns contextos, para executar os serviços, seja através da contratação por risco (capitação) seja através da compra direta (fee for service).

No entanto, o Plano Obama vai um pouco mais além desse processo, quando estabelece regulações nos mercados de saúde, define novos estandares de serviços, obriga planos de saúde e provedores de serviços a divulgar resultados e performance. O Plano Obama também cria a opção pública de seguro como forma de balizar o mercado de acordo com as expectativas do Governo e forçar as empresas privadas a terem um desempenho próximo ao que se estabelece no novo arcabouço de regulação do sistema.

4.Impactos financeiros e perspectivas de aprovação

Embora a reforma ainda não tenha sido definida a totalidade dos elementos que irão compor a Reforma de saúde proposta pelo Presidente Obama e muitas mudanças ainda podem vir a modificar o atual desenho do projeto, estudos preliminares estimam que a Reforma permitiria reduzir o número de pessoas sem cobertura de 50 para 17 milhões entre 2012 e 2019. Também se espera uma redução no rítmo de crescimento dos custos per-capita do sistema.

Sem as reformas, os gastos totais em saúde norte-americanos, estimados em US$2,5 trilhões em 2009, poderiam variar entre US$4,4 e US$ 5,0 trilhões em 2020 (baseado em tendências de crescimento anual de 4,4% a 6,5% ao ano), o que implicaria um incremento anual de despesas em saúde entre US$ 173 e U$227 bilhões, representando mais de 20% do PIB em 2020.

Com as reformas, num cenário otimista, os gastos em saúde nos Estados Unidos a valores médios poderiam reduzir-se em US$ 81 bilhões entre 2009 e 2020 (US$7 bilhões por ano) ou aumentar apenas US$239 bilhões no mesmo período (US$ 22 bilhões por ano) . Com isto, o gasto per-capita em saúde poderia estagnar-se ou até mesmo reduzir-se, considerando-se como cenário de base uma moderada recuperação da economia norte-americana no mesmo período.

Mais importante do que isso, seria o fato de que, ao lado da redução dos gastos, haveria uma melhoria da saúde da população, aumentando a cobertura, a qualidade, a satisfação e os resultados sanitários e re-colocando o país nos trilhos de um rápido aumento da expectativa de vida, como vem ocorrendo em outros países da OCDE.
No entanto, existem muitas resistências da sociedade norte-americana às reformas de saúde:

a. Resistência da população (ou parte substancial da classe média) que acredita num modêlo onde a liberdade de escolha é um valor inquestionável e que estaria disposta a pagar mais para mantê-la. Reformas de saúde costumam limitar a liberdade dos clientes em escolher profissionais e unidades de saúde de sua preferência;

b. Resistência dos médicos e outros profissionais liberais em saúde que preferem um modêlo que não padronize seu saber e que lhe dê também liberdade para ofertar tratamentos alternativos e diferenciados, cobrando livremente por isto. A força e o poder corporativo da classe médica norte-americana faz com que estes manejem muito bem a autonomia de sua profissão fazendo com que linhas de cuidados, protocolos, DRGs e avaliações clínicas estejam longe de suas aspirações, especialmente na costa leste do país;

c. Resistência das empresas médicas, por motivos similares aos dos médicos, e também pela necessidade de atuar livremente no mercado de venda de serviços, tendo a liberdade de recusar contratos com seguradoras de saúde ou mesmo com corporações;

d. Resistência das companhias de seguro ou gestão de saúde (HMOs) que não querem se submeter à regulação pública de vários aspectos que afetam negativamente as finanças em saúde, tais como tarifas ou prêmios de seguro, uso de co-pagamentos, uso de pre-existências para limitar o conjunto de serviços ofertados ou mesmo à possibilidade de recusar pacientes quando estes atuariamente não compensam;

e. Resistência das empresas de advocacia de saúde que querem manter um mercado livre de negociação de mandatos judiciais (e sua livre interpretação pela corte) quando pacientes se sentem lezados pelas consequências físicas, morais e psicológicas dos erros médicos.

O conjunto dessas resistências vale trilhões de dólares e se torna cada vez mais difícil administrar o orçamento público e as finanças familiares para custear o volume de recursos que elas representam. O resultado tem sido o aumento do deficit público em função do desfinanciamento progressivo de programas públicos como o medicare e o medicaid, mas também o desfinanciamento das famílias e empresas que não conseguem mais custear os planos de saúde, reduzindo a cobertura e a qualidade dos serviços entregues pelos planos de saúde.

Mas existem expectativas de que as reformas propostas possam passar no Congresso e, neste momento, vários segmentos conservadores da sociedade norte-americana, inclusive republicanos, já se posicionam favoravelmente. Tal fato se associa ha algumas características especiais da reforma. Ela mantém o espírito de que a saúde dever preservar o pluralismo e a concorrência, bem como a liberdade de escolha num sistema capitalista como o americano. No entanto, ressalta a função do Estado como regulador de um tema onde é notória a assimetria da informação , intensificando o cumprimiento dos direitos humanos básicos e implementando a subsidiaridade aos grupos socialmente mais frágeis.

Em seu discurso de posse presidencial, Barack Obama disse que não foi o primeiro presidente norte-americano democrata a tentar uma reforma de saúde, mas afirmou que será o primeiro a não desistir de que essa reforma seja feita durante o seu mandato. O que hoje se espera, não só nos Estados Unidos, como em todo o mundo, é que essa promessa se cumpra. Ao ser cumprida e mostrar bons resultados, quem sabe, se os países em desenvolvimento que ainda mantem a inequidade, seja pelo conservadorismo, seja pela enganação social e pelo ilusionismo fácil do populismo, poderiam renovar seu arsenal de soluções para um sistema de saúde efetivo e adequado às sociedades emergentes do século XXI?

Notas


1. Economista Senior do Banco Mundial (LCSHH) em Washington (email amedici@worldbank.org)

2. Os países são Australia, Canada, Alemanha, Nova Zelândia, Inglaterra e Estados Unidos. Os dados foram obtidos no trabalho de K.Davis et alii, “Mirror, mirror on the wall: An International Update on the Comparative Performance of American Health Care”: The Commonwealth Fund, May 2007.

3. Por outro lado, os norte-americanos tem mais rápido acesso a medicamentos de última geração que a população dos demais países da OCDE.

4. O economista e demógrafo Cassio Turra, professor do CEDEPLAR-UFMG, enviou-me a referência de um recente artigo de Preston e Ho que trata do tema da eficiência do sistema de saúde norte-americano em reduzir a mortalidade nos pacientes que não tem comportamento de risco. (Ver http://www.nber.org/papers/w15213).
Os autores mostram que, comparativamente a outros paises, o sistema americano tem sido mais eficiente na reducao da mortalidade por causas que tem pouca relação com comportamentos de risco. No entanto, o sistema tem falhado em admitir pacientes que tenham maior risco. Esta posição reduz as chances de pacientes sem cobertura prévia e com pré-existência de doenças crônicas serem admitidos pelos planos de saúde, aumentando sua chance de mortalidade precoce.

5. França, Japão, Australia, Espanha, Italia, Canada, Noruega, Holanda, Suecia, Grecia, Austria, Alemanha, Finlandia, Nova Zelândia, Dinamarca, Inglaterra, Irlanda e Portugal em ordem crescente.

6. Ver E. Docteur et. Alii, “The U.S. Health System: Assessment and Directions for Reform”, OECD Economics Department Working Paper, 2003.

7. Entre os países da OCDE, somente México e Luxemburgo tem custos mais elevados que os Estados Unidos.

8. As taxas adicionais a serem cobradas, na proposta modificada pelo Senado em 22 de Setembro de 2009 se iniciariam com US$ 200 em 2014; US$400 em 2015; US$600 em 2016 até chegar a US$ 750 em 2017.

9. Sobre a experiência chilena e a defesa da opção pública, ver Mesa-Lago, C. ; “Don´t fear health-care lessons: government insurance has worked well in Latin-America”, in Post-Gazette, October 28, 2009 - http://www.post-gazette.com/pg/09301/1008727-09.stm?cmpid=news.xml#ixzz0VLhFBjSF

10. Atualmente, os cidadãos abaixo do nivel de pobreza, beneficiários do Medicaid, não precisam co-pagar ou co-financiar ações preventivas e promocionais, mas a presença destas ações nestes programas não é muito frequente, assim como é baixa a coordenação entre ações públicas do Medicaid com os programas de prevenção de doenças transmissíveis e crônicas do Center for Disease Control (CDC) – orgão responsável pela vigilância epidemiológica e estratégias de saúde pública do governo norte-americano. Programas como o Healthy People (Gente Saudável), implementados pelo CDC deveriam permear os programas ofertados, não somente pelos planos públicos (Medicare e Medicaid), mas também pelos planos privados de saúde.

11. Estimativas preliminares do coordenador da Comissão Financeira do Senado Norte-Americano de 7 de outubro de 2009.

sexta-feira, maio 08, 2009

Uma avaliação detalhada das reformas da previdência e da saúde na América Latina


Ano 4, No. 6, agosto 2009


André Medici
 

Reassembling Social Security – A Survey of Pensions and Health Care Reforms in Latin America, Carmelo Mesa-Lago, New York, Oxford University Press, 2007.

Carmelo Mesa-Lago é um dos mestres no tema de economia da seguridade social na América Latina. Nos últimos 40 anos, suas idéias, livros e artigos têm influenciado muitas gerações de economistas, cientistas sociais e gerentes públicos especializados em temas de previdência social e saúde na Região.
O presente livro traz evidências, análises de processos e dados comparativos sobre as reformas da seguridade social nos países da Região ocorridas entre 1980 e 2001.A obra busca responder, em suas quase 500 páginas, a muitas perguntas polêmicas: Como as reformas de pensões e de saúde na América Latina nos anos noventa buscaram resolver problemas estruturais acumulados pela crise dos antigos sistemas de seguridade social? Que princípios as orientaram? Elas ampliaram a cobertura, a equidade e atenderam as necessidades acumuladas das populações? Houve privatização no contexto das reformas? Se houve privatização, seus impactos foram positivos ou negativos? Como as organizações internacionais e multi-laterais reagiram a estas reformas? Como as reformas atacaram os temas de sustentabilidade da seguridade social a longo prazo? Os objetivos de equilíbrio atuarial e financeiro preconizados pelas reformas foram alcançados? E se foram, prejudicaram os alcances sociais dos sistemas de saúde e de pensões? Como elas tem enfrentado o rápido processo de transição demográfica na América Latina? Poderiam estar ameaçadas pelo contexto da evasão fiscal, da informalidade do trabalho e pelo fechamento da janela de oportunidade demográfica na Região?
A primeira parte do livro analisa os princípios que orientaram as reformas nos marcos das mudanças que ocorrem a partir da considerada década perdida dos anos oitenta. O pioneirismo da reforma chilena – controversial pelo fato de ter ocorrido num contexto ditatorial, onde os atores relevantes não puderam ter voz, mas eficiente em seus resultados, foi o embrião de transformações que levaram organismos internacionais e muitos governos latino-americanos a adotar novos princípios de gestão das políticas de previdência social e saúde nos anos noventa.Os países que sairam na frente alcançaram os estandares mínimos de cobertura, qualidade e eficiência, mas do total de países da Região, cinco não alcançaram os estándares nos temas de pensões e dez não alcançam os mínimos requerimentos de cobertura de saúde. Além do mais, os sistemas de saúde e pensões acabaram se estratificando, acentuando desigualdades de acesso e qualidade a benefícios e serviços que são injustificáveis quando comparados aos recursos gastos.
Sistemas baseados em privilégios (como os de militares, legislativo e judiciário) continuaram a existir e a ser financiados com recursos gerais de impostos pagos por toda a sociedade.Ainda que o princípio da solidariedade permeie o discurso de todas as reformas, na prática, os sistemas tem se tornado progressivamente mais regressivos e estratificados. Os benefícios pagos e serviços prestados pelos sistemas de seguridade social públicos acabaram tendo um impacto regressivo nas sociedades latino-americanas. Esta estratificação acabou sendo acompanhada por um pluralismo institucional marcado por forte descoordenação e duplicação, reduzindo a eficiência dos sistemas de pensões e de saúde. Neste contexto, a atuação do Estado, acabou falhando e a gestão pública tem gerado altos custos administrativos. Deficits públicos crescentes ameaçam a sustentabilidade dos sistemas de pensões, especialmente os que optaram por manter a gestão baseada em repartição simples.
Mas os sistemas de capitalização individual também tem gerado efeitos negativos como o pagamento de benefícios menores que os esperados. A manutenção de elevados custos administrativos em sistemas compulsórios de capitalização individual, e a ausência de risco associado à gestão financeira dos recursos, faz com que estes sistemas remunerem regiamente as empresas gestoras, mesmo em momentos onde as taxas de retorno líquidas das aplicações são negativas para os assegurados.
A segunda parte do livro analisa os efeitos das reformas de pensões descrevendo sua taxonomia das reformas, metas e o papel dos atores principais. Temas como a cobertura universal, políticas de igual tratamento, solidariedade, elegibilidade, o papel regulador do Estado, a sustentabilidade financeira, a eficiência e a participação social são abordados de forma comparada.Poucas evidências existem nos países da Região sobre o papel positivo atribuido aos sistemas privados compulsórios de capitalização individual no aumento das taxas de poupança nacional e melhoria no desempenho dos mercados de capitais. Debilidades na regulação, falta de coordenação dos atores envolvidos e a ausência de monitoramento e avaliação têm dificultado a existência de bons resultados financeiros nesses sistemas.
A terceira parte do livro, analisa as reformas nos sistemas de saúde quanto a universalização da cobertura, equidade, integralidade do acesso, aos papéis dos setores público e privado, gestão de custos, eficiência, participação social e resultados alcançados. Também são feitas considerações sobre a sustentabilidade futura desses sistemas, frente às metas propostas e aos recursos disponíveis para seu financiamento. Comparando as reformas nos sistemas de saúde e pensões, o autor conclui que que avaliar o impacto das primeiras é mais difícil, dadas a existência de maior diversidade e complexidade nos desenhos, a falta de análises comparadas sobre seus resultados em distintos países e sua formulação mais recente em relação às últimas.
As metas de alcançar cobertura universal em saúde não foram logradas até o momento, mas a inequidade na cobertura diminuiu. Temas como a qualidade percebida dos serviços são também analisados em sete países da região. Apesar dos esforços, poucas reformas alcançaram uma padronização da cobertura e a eliminação ou coordenação do pluralismo institucional previamente existente, mantendo os sistemas fragmentados e as desigualdades no acesso.Baseado na análise das duas partes anteriores, o autor dedica a última parte a recomendações para aprimorar a seguridade social na Região.
Poucos livros lograram atingir tão ambiciosos propósitos e foram tão bem documentados. A presente obra de Carmelo Mesa-Lago é uma leitura obrigatória para acadêmicos, gerentes e profissionais em temas de políticas de previdência social e saúde. Dada a complexidade e dispersão das evidências existentes na América Latina, este livro, mais do que uma fonte de informação, é um poderoso instrumento de navegação para pensar o futuro desta complexa e enevoada área de conhecimento na Região.