quarta-feira, março 30, 2016

Além do Público x Privado: Desafios para a Regulação da Saúde no Brasil


 
Ano 10, No. 74, Março 2016



Muitos países se perdem na discussão de se os sistemas de saúde devem ser públicos ou privados, quando a verdadeira discussão deve ser se eles funcionam e atendem as necessidades da população ou não.

Para que funcionem de forma equitativa, independentemente de sua natureza jurídica, é necessário que sejam bem administrados e regulados. E a regulação, ainda que possa ser feita privadamente por um determinado setor no desempenho de suas atividades, é um atributo do Estado, especialmente quando parte de seu financiamento envolve recursos públicos.

Gonzalo Vecina é um dos que defendem, assim como muitos (inclusive eu), que a discussão sobre para onde vai o sistema de saúde está totalmente fora de foco no Brasil. Nesse sentido este texto, que é uma adaptação da transcrição de uma palestra por ele realizada na Mesa Redonda “Diferentes Estratégias de Gestão de estabelecimentos de Saúde Vinculados ao SUS” - debate promovido pela FGV SAUDE em parceria com a ABRASCO em março de 2015 – mostra a vasta experiência do autor em ambos os setores da saúde (público e privado) e deixa lições para aqueles que devem realizar reformas no setor.

Gonzalo é graduado pela Faculdade de Medicina de Jundiaí e mestre em Administração, pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (EAESP-FGV). Entre os cargos que ocupou se destacam os de Secretário Municipal de Saúde de São Paulo, Secretário Nacional da Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, Diretor Presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e Superintendente do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo. Desde 1988 é Professor Assistente da Faculdade de Saúde Pública da USP.

Neste artigo, Gonzalo trata de um tema que vem sendo relegado a um segundo plano na discussão de como fazer o SUS funcionar, mas que está na base das reformas que deverão ser feitas no futuro próximo.  Com vocês, as palavras do Professor Vecina.                       

 Estratégias de Gestão de estabelecimentos de

 Saúde Vinculados ao SUS


Gonzalo Vecina Neto

Um pouco de historia

As entidades privadas podem ter finalidade lucrativa ou não. As sem finalidades lucrativas tem direito a imunidades tributarias. Como não tem finalidade de lucro, ou seja, seu resultado deve sempre ser reinvestido na organização, elas são imunes ao imposto de renda, entre outras vantagens. Porem além das imunidades, a legislação por orientação da Constituição de 1988 e do ordenamento jurídico posterior também propôs isenções tributarias e a  Constituição somente perpetuou o que já existia na legislação brasileira.

Imunidades criam uma situação congênita, ou seja de nascimento, e sua contrapartida é o reinvestimento do resultado na operação, que por sua vez está ordinariamente voltada a sociedade, na medida em que as instituições sem finalidades lucrativas atuam nos setores sociais – educação, cultura, saúde, lazer, etc. O objetivo do legislador seria que instituições sem finalidades lucrativas reinvistam todo seu resultado na atividade para a qual foram criadas e, dessa forma, as imunidades são merecidas, já que o trabalho destas instituições se volta para a sociedade.  


Mas existem organizações sem finalidades lucrativas que se aproveitam dessa situação e constituem empresas que conseguem camuflar interesses particulares e somente visam obter vantagens para seus dirigentes. Porem essa discussão situa-se na esfera judicial, dado que o Estado deve fiscalizar estas entidades, uma vez que seu objetivo precípuo é apoiar a melhoria das condições da vida na sociedade. Por isso além da regra do reinvestimento dos resultados existem regras sobre a governança, sobre a remuneração dos dirigentes, sobre como elas podem encerrar suas atividades (não podem ser vendidas) que devem merecer a atenção e vigilância do Estado.  

Além das imunidades, as entidades sem finalidades lucrativas podem também buscar isenções tributarias. Isenções são renúncias que o Estado faz ao recolhimento de impostos e que para serem concedidas pelo Estado exigem das entidades uma contrapartida em serviços. Portanto a imunidade é congênita. Não cabe a decisão se é ou não sem finalidade lucrativa. Nasce imune e a decisão de isentar os recolhimentos é tomada pelo Estado.

Atualmente, os impostos que compõe a isenção são: a cota parte patronal do INSS, a contribuição ao Sistema S (SESC, SESI, SENAC, etc), COFINS e PIS. Estas renuncias significam um financiamento importante para as instituições que conseguem fazer jus a elas. No setor saúde, grosso modo, pode se estimar que em torno de 10% do total da receita liquida das instituições é constituida pela somatória das isenções.

Também deve ser registrado que muitos advogados defendem que algumas dessas isenções, de acordo com o espirito da lei maior e a intepretação deles, são na verdade imunidades (que requerem como contrapartida apenas o reinvestimento de resultados e não a prestação de serviços). Assim existem muitos processos, inclusive no Supremo Tribunal Federal (STF), discutindo e aprovando esses temas, com consequências no mínimo desastrosas para a sociedade, tanto em termos de recolhimento de impostos como de prestação de serviços nas três grandes áreas do setor social – educação, saúde e assistência social.

No período anterior à Constituição de 1988, as instituições que cumpriam com os requisitos exigidos para terem direito às isenções nestas três áreas entregavam serviços a sociedade, como por exemplo vagas gratuitas aos pobres na educação ou em creches, asilos na assistência social e assistência médica na saúde. Recebiam de um colegiado ligado ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome o Certificado de Beneficência e passavam a ser chamadas de filantrópicas. Na área da saúde a filantropia passou a ser quase sinônimo de Santa Casa. Mas existem muitos hospitais que são de comunidades (outras religiões, comunidades de imigrantes) ou de sindicatos, etc.

Antes da Constituição de 1988 as organizações filantrópicas tinham um importante trabalho de prestação de serviços assistencialistas na sociedade, com muito pouca ação do Estado em sua estruturação, e obviamente faziam parte do tecido social de forma coerente à sua própria estruturação. Em outras palavras se organizavam à sombra da estrutura de poder e o serviam - um modelo que pode ser chamado de “casa grande e senzala”.

Na saúde, antes da Constituição de 1988, os hospitais filantrópicos deveriam oferecer serviços no valor de pelo menos 20% de sua receita bruta (valorada através de sua própria tabela de preços) aos pobres, então identificados no processo de atenção na categoria de indigentes e sem nenhuma regulação do Estado. Quem definia quem seria atendido era a própria instituição filantrópica.

Após a Constituição de 1988, com a criação do SUS e a universalidade da atenção, todos os brasileiros passaram a ter direito a assistência à saúde e os cidadãos indigentes deixaram de existir. O ordenamento jurídico foi revisitado a partir do § 7 do artigo 195 da Constituição e em 1993 foi publicada a Lei 8742/93 que reorganiza a assistência social beneficente. 

A regra geral da saúde para estes hospitais filantrópicos passou a ser atender 60% de sua capacidade operacional através da prestação de serviços ao SUS, sendo remunerados por este através das tabelas do SUS - bastante defasadas - e cuja diferença seria compensada pela renúncia fiscal e pelo atendimento aos pacientes do sistema privado. Esta defasagem das tabelas do SUS em relação aos custos do atendimento situa-se atualmente, em média, em torno de 40%, embora esta estimativa esteja sujeita a muitas variáveis, como complexidade do ato praticado, existência de escalas, sofisticação, etc.

Muito também se discutiu em relação ao significado destes 60% de capacidade operacional dos hospitais para o SUS. Medida em que? Em pacientes-dia? Em internações? Da somatória de tudo que o hospital ou serviço faz? Com as diferentes interpretações e a falta de fiscalização do Estado, floresceram as entidades “pilantrópicas” que produziam(em) demonstrações falsas ou pelo menos maquiadas destes 60%.

Alguns hospitais continuaram a seguir a regra anterior, atendendo pacientes com renda familiar inferior a três salários mínimos (condição descrita na Lei para definir risco social) e oferecendo seus serviços até o limite de 20% da receita bruta valorada por sua própria tabela de preços. Isto em função da falta de definição dos 60% e da notória defasagem das tabelas do SUS que inviabilizavam o funcionamento destes hospitais, em particular os mais complexos. Esta situação criou um risco jurídico para estes hospitais. Apesar da fragilidade do arcabouço jurídico, não estava claro na legislação se esta regra ainda era válida para o setor saúde.

Nesse meio tempo, entre 1993 e 2006, realizaram-se muitas discussões e a promulgação de decretos, medidas provisórias, portarias, que foram dando um novo arranjo ao setor. A lei 12101/2009 e seu decreto regulamentador, 7237/2010, vieram criar um clima de mais segurança jurídica ao setor. Paralelamente também o Ministério da Saúde clareou bastante o conceito dos 60%, mas não melhorou a fiscalização, que continua em grande medida sendo de responsabilidade dos municípios. De qualquer forma a definição da entrega dos certificados de beneficência passou para o âmbito do próprio Ministério da Saúde, que passou a avaliar se a instituição cumpre ou não com os requisitos que a gabaritam a receber as isenções.

O que a Lei trouxe de novo foi a possibilidade de que uma nova categoria de hospitais aparecesse – os hospitais de excelência. A excelência é definida pela obtenção de uma acreditação. Assim, hospitais sem finalidades lucrativas, com uma acreditação aceita pelo Ministério da Saúde (MS), podem ser considerados de excelência, se assim o requisitarem e prestarem contas dentro do arranjo jurídico determinado.

Basicamente o hospital de excelência deve devolver sua renúncia fiscal ao SUS através da prestação de serviços nas áreas de educação, pesquisa, apoio ao desenvolvimento do SUS e assistência medica (esta limitada a 30% do total da renúncia). Esses serviços serão valorados pelo seu custo e esta apuração deverá ser fiscalizada pelos Ministério da Saúde  e da Fazenda, este último através da Receita Federal.

Os hospitais de excelência que hoje[i] são seis no pais (Hospital Sírio Libanês, Hospital Israelita Albert Einstein, Hospital Samaritano, Hospital do Coração, Hospital Alemão Oswaldo Cruz e Hospital Moinhos de Ventos) deram origem ao PROADI – Programa de Apoio ao Desenvolvimento Social do SUS. Este programa tem a tarefa de analisar os projetos propostos por estes hospitais, aprova-los, submete-los à Comissão Tripartite, acompanha-los e fiscaliza-los após o recebimento da prestação de contas que é trienal.

Obviamente este é um projeto bastante recente e deverá receber nos próximos anos um acompanhamento cuidadoso. Através do website do MS é possível verificar os projetos executados e em execução. E o balanço é bastante positivo, apesar de que este olhar poderá ter diferentes vieses. É o que se buscará discutir a frente.

Gestão de serviços de saúde (hospitais) nos dias atuais no Brasil

Gestão é atingir os objetivos de uma organização através da mobilização de recursos. Assim, parece bastante simples mas não é. Recursos podem ser entendidos como conhecimentos, tecnologias, processos, equipamentos, materiais, pessoas. Objetivos, que muitos pensadores da área de gestão indicam ser a área mais delicada de uma organização, requerem definir o que a organização deve fazer para poder ter sua existência justificada na sociedade. Este, provavelmente, é um ponto mais complexo de construir que a mobilização de recursos.

De qualquer forma, as últimas quatro décadas viram a área da gestão passar por um revolução bastante complexa. A idéia de estratégia, principalmente após a segunda grande guerra mundial, e a idéia de aferição da qualidade, entendida como a referência que deve ser sempre alcançada, criaram um primeiro movimento experimentado principalmente na reconstrução dos países destruídos pela guerra. As ideias de Ansoff[ii] e Juran[iii] são exemplos desses movimentos.

Esse movimento foi ainda turbinado no início dos anos setenta pela revolução comunicacional – a aldeia global de McLuhan[iv] e o advento do acesso mais universal ao processamento eletrônico de dados, que por sua vez ganhou nos anos seguintes dois fantásticos dinamizadores – o Personal Computer (PC) e a rede web. Este conjunto de elementos transformou trabalhadores e consumidores. Aumentou muito a necessidade de ter mais bens e serviços, fazer coisas novas e transformar a realidade destes e a do mundo. O mundo das revoluções não conseguiu ir aonde o mundo das disrupções acabou chegando no final do século passado. O que as revoluções sonharam, essas descobertas chegaram muito perto de conseguir oferecer. É verdade que não se criou um mundo mais igual, mas se desenvolveu nas pessoas o sentido de que existe a possibilidade de ser mais cidadão. Estas transformações trouxeram novas ferramentas para o campo da gestão, novos conceitos inimagináveis até então. Zero estoque, zero defeito, customização, balance score card (a empresa em uma folha de papel), produção empurrada x produção puxada, gestão da clínica, segurança do paciente, enfim um sem número de novas formas de aumentar a eficiência sem comprometer a eficácia. E tendo como resultado mais lucro, mais acesso e mais impacto social.

O mundo melhorou? Sim, mas passaram a correr novos riscos, como o ambiental, o crescimento das desigualdades e a necessidade de revisitar o papel do Estado. O Estado como provedor de bem estar social é o Estado a ser revisitado. O Estado tradicional dos tempos passados não somente construía bem estar social como ele próprio era seu produtor. Porém, o Estado, com a revolução tecnológica na gestão, com sua multiplicidade de funções e com a necessidade de usar isonomicamente seus recursos, deixou de ser capaz de alcançar os padrões de eficiência que o setor privado alcança. E dessa forma, como aconteceu em muitos países, o Estado saiu do fazer e passou a se preocupar com a entrega através do desenvolvimento de uma nova função – a regulação. 

No Brasil, o fim da ditatura, o processo de redemocratização, a necessidade de diminuir desigualdades, a necessidade controlar a inflação, o processo de globalização e a revolução da gestão aconteceram concomitantemente e a dialética desses complexos processos levou a muitos erros de avaliação e confusões sobre a necessidade de um novo papel do Estado construtor de bem estar social.

Na área da saúde essas complexidades foram maximizadas pela própria questão dos significados da saúde para a sociedade. Assim a questão do com e sem finalidade de lucro confundiu-se com o público-estatal x privado-particular. E o privado virou um patinho feio, mesmo quando estatal. Essa foi a manifestação do Conselho Nacional de Saúde (CNS) quando da analise da proposta das Fundações Estatais de Direito Privado. A proposta não foi aceita quando o que propunha era um instrumento de melhoria da gestão do Estado. O conselho concluiu que elas eram privatizantes e mercantilistas.

Na confusão público x privado paira ainda a discussão do lucro x não lucro em  saúde, numa sociedade capitalista como brasileira, onde sessenta por cento da rede hospitalar é privada e a atenção primaria através da estratégia da saúde da família é predominantemente realizada pela iniciativa privada. A questão não deve ser lucro ou não lucro e sim regulação das atividades no campo da saúde que tem como objetivo o lucro. Mas com muita transparência das organizações que realizam as atividades regulatórias para protege-las da captura por parte dos agentes econômicos.

Então quais são os desafios a serem enfrentados pela gestão? Resumidamente e com objetivo de estimular o debate, aponta-se alguns desafios:

A Regulação, aqui entendida como um conjunto de atividades desenvolvidas pelo Estado para construir bem estar social é um desafio da sociedade. Definir bem estar social e como financia-lo é uma discussão aberta na saúde, que é sub-financiada no pais. Em seguida vem a discussão do que regular. O Estado deve determinar que serviços podem funcionar inclusive no setor privado? O Estado deve regular a oferta de serviços de saúde? Na medida em que existe risco nos serviços oferecidos, sim deve. Por exemplo, uma equipe de cirurgia cardíaca que opera menos de 200 casos por ano tem resultados piores (risco/dano) do que outra com um movimento maior.

A oferta de serviços de alta complexidade como tomografias, ressonâncias magnéticas nucleares deve, como acontece em outros países, passar pela regulação do Estado, independentemente se vão atuar exclusivamente no SUS ou não. E a justificativa é que o Estado deve oferecer universalmente a gestão de risco à sociedade. Portanto trata-se de definir de maneira ampla a função regulação e construir um Estado capaz de oferece-la a sociedade, ou seja, regular acesso, oferta e as coberturas dentro do SUS e dentro da medicina privada e da saúde suplementar.

Reforma Administrativa. Este é um dos macro desafios do Estado brasileiro. Faz ombro com outras reformas estruturais fundamentais como a reforma tributária, a reforma fiscal e a reforma política. Mas é o patinho feio. A reforma administrativa é vista entre as reformas como a última a ser pensada por envolver o que fazer do Estado e pela desmotivação de enfrentar a discussão sobre a eficiência do Estado na sociedade.

Desde a criação do Departamento da Administração do Pessoal (DASP) na ditadura Vargas, passando pelo decreto-lei 200/67 da ditadura militar e pela reforma administrativa Bresser no governo Fernando Henrique Cardoso, se busca uma saída para a questão da eficiência. Estas reformas conseguiram alguns avanços, mas estes em parte foram compensados por outros retrocessos. Assim a Constituição de 1988 esterilizou as alternativas do decreto-lei 200. Autarquizou as Fundações Estatais e acabou com a possibilidade da existência das fundações de direito privado. Estas últimas foram parcialmente recuperadas a partir da reforma Bresser, mas com uma solução ruim na área de pessoal (emprego público). Da mesma forma as autarquias perderam muito de sua capacidade de atuação e mesmo as empresas públicas foram muito tolhidas. Ocorreu nos anos de redemocratização um movimento pendular de negar a autonomia e o processo de descentralização da gestão. Paralelamente os Tribunais de Contas passaram a agir na gestão e não na fiscalização. Obras e serviços hoje são analisados ex-ante e não ex-post, como deveria ser a função destas cortes. Assim o que se tem é uma desresponsabilizacão do Executivo em relação às suas obrigações.

O Estado brasileiro é muito atrasado e precisa de uma reforma de sua estrutura legal. Ele está próximo à paralisia e aí tem tentado lançar mão de alternativas em particular oriundas da reforma Bresser que no entanto ainda são relativamente insipientes como as PPPs, OSs e OSCIPs.

Cooperação Público Privada. Neste caso se enquadram as parcerias com a iniciativa privada. Não confundir com PPP – Parceria Público Privada, que é um modelo interessante e que na saúde ocorre, neste momento, apenas com a experiência do Hospital do Subúrbio em Salvador, com excelentes resultados. Este tópico se enquadra na área da reforma administrativa. E de novo, seu grande desafio é a capacidade do Estado em definir o que quer e construir uma relação transparente com o contratado, que é sempre uma organização privada com finalidade lucrativa.

O que se refere como parceria com a iniciativa privada aqui restringe-se às parcerias com entidades sem finalidades lucrativas e está no campo da cooperação público-privada. Basicamente são as relações desenvolvidas entre Organizações Sociais e o Estado. Hoje muitos Estados e municípios tem experiências para serem analisadas e, inclusive, já existem os maus exemplos que também devem ser analisados. Eles normalmente revelam uma incapacidade do Estado em escolher estas instituições e, em particular, em fiscalizar e dar transparência na relação com estas instituições. Certamente as melhores experiências do Brasil com este modelo ocorrem em São Paulo (Estado e Município). Outra casca de banana neste caminho é a ameaça constant, pelo Ministério Público, em exigir o uso da Lei de compras e licitações públicas - a 8666 - para regular estas relações, inclusive limitando os contratos em cinco anos.

É neste tópico que se inserem os hospitais de excelência e o PROADI. Também alguns dos hospitais de excelência trataram de criar suas Organizações Sociais para desenvolver suas parcerias com a administração pública. O HSL administra três hospitais públicos, o HIAE administra dois hospitais públicos e o HMV criou  e administra um hospital dedicado a atender o SUS.

Terceirização.  O modelo acima exposto, pode ser considerado uma terceirização mas, dado não ter lucro envolvido, é um modelo de cooperação. No entanto as questões tecnológicas e de escala econômica trouxeram para o campo da saúde a necessidade de se pensar na terceirização de áreas menos nobres, como a área de limpeza, segurança patrimonial, manutenção, lavanderia, e também áreas mais nobres como os serviços de patologia clínica, diagnostico por imagens, anatomia patológica e até a contratação de equipes medicas como ocorre na anestesia, UTI e pronto socorro.

Este movimento é, em grande medida, fruto da incapacidade de trabalhar com as limitações da administração pública. Porque terceirizar a limpeza? Principalmente pela impossibilidade de responder ao turn over dessa área com o instrumento do concurso público. Da mesma maneira nas áreas mais sofisticadas, a incapacidade de acompanhar as práticas de remuneração do mercado como ocorre na área de imagem ou de anestesia. Ou a incapacidade de montar sistemas de realização de exames laboratoriais com escalas econômicas, que o setor público tem, mas que exigem uma dinâmica na manutenção da capacidade de gerenciar a tecnologia e repor equipamentos e materiais que a Lei 8666 não permite.

Aferição de Resultados. Medir. Esse é o desafio. Nada é adequadamente medido. Principalmente na área pública. Em particular, em decorrencia do baixo nível de informatização. Medir é uma tarefa mal realizada. Com certeza, buscar explicar essa incapacidade utilizando como causa um meio – a informatização, também é em parte um equívoco. Na verdade se realça o baixo nível de informatização como forma de destacar o atraso do setor público na utilização da tecnologia de informação que trouxe um empoderamento organizacional fundamental. Mas a incapacidade de medir tem a ver muito mais com a incapacidade de definir objetivos e construir indicadores adequados.

Essa incapacidade de medir é também reflexo da falta de transparência das ações do Estado na sociedade e é um processo histórico no Brasil. Talvez essa seja a transformação mais exigida hoje: a do Estado. Como ele estabelecerá vínculos com a sociedade a quem ele deve servir? A sensação que se tem é que existe uma inversão nos elementos que se analisam e aí os meios ocupam um espaço desproporcional em relação aos fins. Assim é mais importante fazer do que entregar. Ser lucrativo ou não é anterior a discussão das entregas, e em particular a discussão da capacidade de ser mais eficiente e, em o sendo, de gerar mais resultados para a população.

Com certeza existe pouco acumulo nesta discussão e, em parte, os atores da saúde no Brasil tem envergonhadamente evitado discutir com profundidade a questão da gestão. A entrada dos seis hospitais de excelência nessa equação traz um oportunidade a mais para aumentar esse acúmulo que talvez gere a massa crítica que transforme a realidade.

Finalmente, um antigo ditado espanhol que se refere a uma derrota para os árabes talvez possa servir de lição para os dias atuais: vieram os sarracenos e nos derrotaram, porque Deus ajuda os maus quando estes são em maior número que os bons. Temos que buscar mais bons, e eles virão do bom debate.

 

 






[i] Em março de 2015


[ii] Ansoff, H. I. - A nova estrategia empresarial. ed Atlas, São Paulo, 1990.


[iii] Juran, J. M. e Binghan, R. S. Jr - Manual de Control de la Calidad. 2ª Ed, ed Reverté, Barcelona, 2005.


[iv] McLuhan, H. M. - A Galáxia de Gutenberg: a formação do homem tipográfico. Ed Nacional, Ed da USP, São Paulo, 1972

segunda-feira, março 28, 2016

Receita para Não Universalizar a Cobertura à Saúde em Países em Desenvolvimento


Ano 10, No. 73, Março 2016

André Cezar Medici

Introdução

Nos últimos anos, países, instituições globais e fundos de filantropia internacional tem dado importância crescente ao tema da cobertura universal de saúde, o qual vem surgindo com grande consenso na confluência de duas vertentes: (a) o contexto dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS – que substituem os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – ODM – cujas metas  expiraram em 2015[i] e; (b) o contexto dos direitos sociais, na agenda de direitos humanos, onde a universalização da cobertura de saúde  (UCS) passa a ser um atributo inalienável de cidadania[ii]. Muitas instituições tem se dedicado a avaliar de forma esporádica ou sistemática os processos que buscam a UCS em vários países desenvovlidos e em desenvolvimento[iii]

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define cobertura universal de saúde como o direito de todos em ter acesso aos serviços que necessitam, com garantia de boa qualidade e sem sofrer restrições financeiras para pagar por estes serviços. É crescente o número de países que passam a incorporar o tema da saúde universal em suas constituições e legislação ordinária. Já chegam a muitas dezenas[iv].

Nos países desenvolvidos, onde predomina o estado de bem estar social, como a Europa e o Japão,  a aceitação social coletiva da idéia de cobertura universal de saúde, passou pela construção de valores, práticas e comportamentos dos agentes públicos e privados que levaram a coesão social e ao crescimento econômico.

A coesão social pode levar um país a aceitar socialmente a idéia de universalização de cobertura de saúde (UCS).  Ela é inversamente proporcional a existência de problemas sociais como a desigualdade de renda, a violência urbana, a violência social, à criminalidade e à corrupção no setor público. Todos estes fatores  acima mencionados geram elementos que tendem a aumentar o isolacionismo, a frustração e o sentimento de desproteção entre indivíduos e entre classes sociais. Portanto, quanto menores forem estas pragas sociais, maior o espaço para construir coesão social.

O crescimento econômico é o vento necessário para garantir os recursos (da sociedade e do estado) para o financiamento da universalização de cobertura de saúde, pois permite que aqueles que podem financiem sua saúde ao mesmo tempo em que gera os recursos solidários para financiar as saúde dos que não tem recursos pessoais.

Mas o que acontece nos países em desenvolvimento? Um estudo recente publicado no New England Journal of Medicine (Gupta V., et al, 2015) realizado em um conjunto de países em desenvolvimento (Chile, México, China, Tailândia, Turquia e Indonésia) buscou identificar como a idéia de universalização da cobertura em saúde se desenvolveu, testando não apenas estas duas variáveis (coesão social e crescimento econômico) mas três outras mais que foram chamadas de decoro legislativo, insatisfação pública e existência de uma figura política com visão transformadora (liderança).

Os autores definiram como decoro legislativo a relativa facilidade em assegurar que a agenda política de um candidato, partido ou regime possa ser transformada em lei. Esta variável depende da funcionalidade do Governo e da harmonia entre os poderes executivo e legislativo. Na Tailândia, por exemplo, o executivo e o legislativo tiveram problemas mas, ao fim, se harmonizaram no apoio à universalização de cobertura de saúde durante a reforma. A maioria dos outros cinco países enfrentam desacordos sobre a implementação, embora não tenham gerado processos para revogar as políticas do executivo na direção da universalização de cobertura. Na China e Turquia, por exemplo, a falta de oposição pode ser atribuível a sistemas políticos que não permitem desacordos de qualquer espécie. No México e Indonésia, a reforma foi liderada por presidentes populares, como Vicente Fox e Joko Widodo fazendo com que as divergências fossem superadas.

A insatisfação pública existe quando há um consenso social de que o titular de um governo não é competente para organizar a prestação de serviços públicos tais como cobertura de saúde ou assistência social, fortalecendo as promessas de reforma de saúde de seus sucessores políticos. Na Turquia, por exemplo, o caminho para a cobertura universal de saúde foi traçado após uma década de governos disfuncionais e indignação social, levando à eleição de um lider populista - Recep Tayyip Erdoğan - que promoveu a cobertura universal como uma de suas principais promessas de Governo em 1999. Tanto no México como na China, medos de revoltas sociais com a falta de atenção médica, principalmente em regiões rurais, levaram ao desenvolvimento de políticas como o Seguro Popular (Mexico) e a Seguro Rural de Saúde (China).

Por fim, e como decorrência da variável anterior, a existência de uma figura política com visão transformadora e liderança parece ser um fator de sucesso para a implementação de uma reforma de saúde. Mesmo em países desenvolvidos (Bismarck na Alemanha, Enrico Berlinguer na Itália, Barak Obama nos Estados Unidos) as reformas de saúde com ampla aceitação foram associadas a campeões políticos. No caso dos seis países mencionados,  cinco deles (a exceção foi a China) tinham um líder transformador para realizar a reforma.

No entanto, tal consenso e suporte político depende de um período de provas e resultados, visíveis para a população, em relação a implementação dos processos de cobertura universal. Revisões recentes mostram que existe uma grande heterogeneidade, tanto nos resultados como na concepção, organização e implementação das reformas de saúde. Em que pese a existência quase generalizada nos processos de reforma em busca da cobertura universal na  inclusão dos mais pobres, nem sempre eles alcançam os resultados esperados. No que se refere ao financiamento a prevalência dos esquemas de universalização de cobertura tem enfatizado modelos de financiamento baseados em fontes diversificadas de recursos (impostos, contribuições sociais, seguros privados e co-pagamentos).

Portanto, são muitas (e complexas) as variáveis políticas, técnicas e organizacionais que intervem no processo de implantação da cobertura universal, mas o fundamental é a geração de consenso (coesão social), factibilidade técnica e financeira das medidas propostas e suporte político e da opinião pública para que o processo avance.

Do Século XX ao Século XXI: A Transição dos Modelos de Organização da Saúde

Segundo Gedion, U. et al (2013), a literatura tradicional diz que há essencialmente dois grandes modelos públicos de organização de sistemas de saúde surgidos nos últimos 150 anos: os sistemas nacionais de saúde (SNS), geralmente financiados por impostos gerais, e cobrindo toda a toda a população com prestação pública directa de serviços (comumente referido como o Modelo Beveridgiano) e os Modelos de Seguro de Saúde  (MSS), normalmente organizados para a população trabalhadora, segmentados de acordo com a participação da população no mercado de trabalho e, geralmente financiado por impostos sobre a folha de salários (comumente referido como o Modelo Bismarckiano). Além do financiamento, as diferenças entre esses modelos se baseiam em vários temas que passam pela definição dos benefícios, as formas de organização da provisão de serviços; as formas de pagamento aos provedores e as formas de gestão do risco financeiro e atuarial.

No entanto, ainda segundo Gedion, U. et al (2013), vários autores tem argumentado que esta dicotomia entre SNS e MSS não se justifica para definir os atuais processos de universalização de cobertura de saúde, dado que a realidade desses sistemas é muito mais complexa e diversificada. Muitos autores vão ainda mais longe, dizendo que o conceito de cobertura universal de saúde não implica um determinado modelo de organização da saúde, dado que vários caminhos poderiam levar a sua consecução, cumpridas algumas condições.

Tomando como exemplo o tema do financiamento – principal elemento que definia a separação entre os modelos bismarckiano e beveridgiano – a origem dos recursos é somente um dos elementos de análise para definir a organização do sistema, ao lado de como os recursos são concentrados para se submeter a uma lógica comum (pooling) e os sistemas pelos quais se organiza a compra e o pagamento dos serviços. Mas do que isso, o que se verifica na maioria dos casos é que existem sistemas de saúde que combinam distintos modelos, como é o caso do Brasil, onde um sistema nacional de saúde (o SUS) convive de forma fragmentada com um modelo de seguro de saúde (a saúde suplementar).

É por este motivo que aqueles que defendem a UCS não preferem um mecanismo específico de financiamento, mas buscam a solução que seja técnica e politicamente mais adequada e socialmente mais justa para o financiamento e organização da saúde em cada país. Neste contexto, a discussão de tentar contrapor a idéia de sistema único de saúde x cobertura universal de saúde, ao tentar induzir que a idéia de que cobertura universal de saúde é excludente, como tentou ser feito por uma minoria do movimento sanitário no Brasil, é totalmente carente de sentido[v].

No entanto, existe uma característica comum dos países que buscam a UCS, que é a meta de cobrir 100% da população com qualidade e proteção financeira para a saúde e isto requer que, em grande medida, haja um esforço público para subsidiar a saúde dos mais pobres. Não interessa qual o tamanho e a riqueza do país. Para que todos tenham uma saúde de qualidade com a tecnologia das intervenções necessárias para a promoção, prevenção, tratamento e reabilitação, é necessário o subsídio público e para garantir o acesso dos mais pobres. Além disso, são necessários esforços para uma organização e entrega eficiênte dos serviços. Nos Estados Unidos, por exemplo, programas subsidiados para os pobres como o MEDICAID e para os idosos, como o MEDICARE representam grandes parcelas do gasto público norte-americano e são essenciais na estratégia do Plano Obama em alcançar a UCS naquele país.

Uma outra característica importante na maioria dos países que defendem a UCS é a crença nos mecanismos de pre-pagamento (como os seguros públicos e privados) e evitar a idéia de pagamentos diretos do bolso dos contribuintes (out-of-pocket), inclusive para medicamentos, que em geral são regressivos, ineficientes e podem levar ao empobrecimento das famílias. Este tema normalmente não é abordado por aqueles que defendem a idéia de SNS que, ao considerarem que a oferta pública é universal, se esquecem de monitorar os aspectos relacionados a demanda que indicam como a falta de acesso aos serviços e medicamentos tem um efeito perverso no aumento dos gastos das famílias com saúde.

Não existe, por outro lado, um esquema pré-definido de como será a entrega de serviços de saúde para a população nos modelos de UCS. Esta poderia ser feita por estabelecimentos públicos, privados, filantrópicos ou lucrativos, prevalecendo os arranjos onde, através de sistemas de pagamento relativamente uniformes se permite a existência de um mix público-privado de provisão de serviços.

Satisfação dos Usuários em Países com e Sem UCS

Pesquisas que busquem analisar as características de países que buscam a UCS vis a vis países que não tem esses sistemas são escassas e desatualizadas. Algumas mudanças ocorreram nos últimos anos sobre como tem avançado o UCS em alguns países da OECD - tais como a decisão de levar os Estados Unidos no rumo da UCS a partir do Plano Obama em 2008 e os impactos negativos da crise financeira de 2008 nos países europeus que implementavam o UCS – mas poucos estudos e análises tem se dedicado a uma avaliação mais recente destes impactos.

No entanto, dados de uma pesquisa Gallup realizada nos países da OECD podem dar algumas evidências prévias à crise de 2008 em países que adotaram e não adotaram a UCS. Esta pesquisa mostra basicamente a diferença de percepção dos indivíduos sobre a qualidade do seu sistema local e a aceitação da política nacional de saúde do país.

Tabela 1: Percepção dos Indivíduos sobre a Qualidade

das Políticas Locais x Política Nacional de Saúde em Países da OECD - 2008

País
Cobertura Universal de Saúde
Satisfação com o Sistema Local de Saúde  (%)
(1) 
Confiança na Política Nacional de Saúde (%) (2)
Diferença entre (1) e (2)
Polônia
Não
49
45
4
Grécia
Sim
52
45
7
Itália
Sim
57
53
4
Eslováquia
Não
58
40
17
Turquia
Não
59
67
-8
Irlanda
Sim
64
40
24
Portugal
Sim
64
57
7
Japão
Sim
64
57
7
Hungria
Não
66
50
16
México
Não
66
74
-8
Finlândia
Sim
66
85
-18
Coreia do Sul
Sim
67
60
7
República Tcheca
Não
68
63
6
Canadá
Sim
70
73
-3
Espanha
Sim
74
77
-3
Suécia
Sim
77
79
-2
Austrália
Sim
79
60
18
Nova Zelândia
Sim
80
64
16
Noruega
Sim
80
68
12
Estados Unidos
Não
81
56
25
França
Sim
83
83
0
Reino Unido
Sim
85
73
12
Dinamarca
Sim
86
77
9
Alemanha
Sim
88
54
34
Islandia
Sim
88
87
1
Holanda
Sim
89
77
12
Luxemburgo
Sim
90
90
0
Bélgica
Sim
91
88
3
Suiça
Não
92
86
6
Austria
Sim
93
84
9
Fonte:       Percepção dos Usuários sobre Sistemas Nacionais e Locais de Saúde dos Países da OECD: 2006-2008                              


Os dados da tabela 1 mostram que em geral, os países que não adotam formalmente a UCS no universo da OECD (com exceção da Suiça e em certa medida dos Estados Unidos) tem um nivel de satisfação dos usuários mais baixo com seus sistemas locais de saúde (67,4%) do que os países que tem UCS (76,7%). Com relação à percepção das políticas nacionais de saúde, os países com UCS tem um ivel de satisfação médio de  69,6%, comparados com 60,1% dos países que não tem UCS.


No entanto, em termos médios, verifica-se que a satisfação em ambos os casos com os sstemas locais é maior do que com os sistemas nacionais de saúde e que a discrepância entre o nivel de satisfação entre os sistemas locais e os nacionais é praticamente a mesma para os dois tipos de países (em torno de 7%).


Portanto, duas lições aprendidas podem ser elucidadas destes datos: (a) sistemas com UCS tem maior adesão da população do que sistemas que não tem UCS, do ponto de vista de seus resultados, e; (b)  existe uma preferência (indicada pelo nível de satisfação) entre os sistemas locais do que em relação às políticas nacionais, favorecendo a idéia de que políticas de descentralização de saúde tendem a ser mais aceitas.


Comparando estes dados com aqueles relacionados as pesquisas de satisfação dos usuários em saúde da CNI-IBOPE no Brasil, e considerando que o Brasil se insere no marco do UCS (apesar de adotar uma política de SNS) podemos verificar que o nivel de aprovação (satisfação ) com a saúde entre a população se reduziu de 47% para 34% entre junho de 2009 e junho de 2013[vi] e nos anos mais recentes a insatisfação só tem aumentado, especialmente agora, em função da crise.


Receitas para Não Universalizar a Cobertura da Saúde


O ex-Ministro de Saúde do México – Julio Frenk publicou um artigo na prestigiosa série do The Lancet[vii] destacando os princípios em pról da UCS. Mas muitas das ações propostas por Frenk não vem sendo seguidas pelos países da América Latina, acarrentando dificuldades de natureza técnica e política para alcançar o UCS.

Segundo Frenk, o alcance da UCS  necessita da definição de novos arranjos financeiros e a transformação em larga escala da organização dos sistemas de saúde, especialmente nos países em desenvolvimento. Mas muitos países cometem erros ou omissões que, quando persistentes, atuam como receitas para prevenir ou retardar o processo de alcance da UCS. Entre estes erros ou omissões se destacam:

  • A existência de esquemas de cobertura fragmentados para diferentes grupos populacionais, como os que estão no mercado formal x informal, ou em seguros contributivos x sistemas financiados por recursos fiscais. Países que pretendem universalizar a cobertura de saúde devem evitar segmentar os modelos de saúde, criando uma forma uniforme de financiamento e incentivos para provedores entre os esquemas adotados para os setores formal do infomal e, desta forma, buscar a regra da igualdade de direitos para todos. Países com sistemas de saúde segmentados, como o Brasil, devem conceber políticas para reduzir as disparidades entre os grupos sociais no acesso aos serviços e nas oportunidades de promoção, prevenção, tratamento e reabilitação. Este processo de integração do pluralismo deve ser gradualmente implementado para que seja sustentável, do ponto de vista financeiro, e permita a harmonização política dos interesses dos atores envolvidos no processo.

  • A falta de mecanismos que procurem reduzir os gastos diretos em saúde dos orçamentos familiares com saúde, especialmente em medicamentos, que alcançam larga proporção dos gastos das famílias, especialmente das mais pobres.

  • A falta de processos que identifiquem as necessidades em saúde e que as compatibilizem com as disponibilidades para o financiamento da saúde. É necessário planejar as necessidades de saúde com base em evidências. É necessário gerar progressivamente o espaço fiscal para o crescimento dos gastos em saúde associados ao efetivo conhecimento das necessidades de saúde. É necessário calcular o valor do subsídio público e dos recursos disponíveis que as famílias e as empresas podem aplicar em saúde, de acordo com os seus níveis de renda e suas margens de rentabilidade, respectivamente. É importante que existam mecanismos que permitam que os gastos com saúde, tanto fiscais como das famílias e das empresas, possam constituir reservas que tenham caráter compensatório, a longo prazo, como forma de manter a disponibilidade de financiamento nos momentos de recessão econômica. Países como Singapura, por exemplo, utilizam contas de poupança de saúde (medical savings accounts) que tem esse tipo de efeito. Mas na maioria dos países em desenvolvimento, os governos gastam com saúde o que arrecadam, os seguros de saúde desembolsam o que está disponível na sua receita mensal e as famílias, o que está em seu orçamento do mês, num sistema chamado de repartição simples (pay as you go). Formas de capitalização dos recursos para a saúde são importantes para evitar efeitos negativos de flutuações cíclicas nas necessidades de gasto. Podem ser importantes também para fazer provisões de recursos, a médio e longo prazo, para financiar os processos inexoráveis de aumento de gasto em saúde trazidos pelo envelhecimento populacional e pelo aumento da carga de doenças crônicas.

  • A falta de processos que harmonizem eficiência e qualidade do gasto, não somente como mecanismos para melhorar a qualidade da atenção ao paciente, mas para reduzir gastos desnecessários, reinternações e outros processos que levam ao aumento do gasto simultâneamente à deterioração dos resultados assistenciais. Nesse sentido, os sistemas de saúde deveriam ser capazes de estar estruturados para dar respostas aos problemas agudos e crônicos de saúde dos indivíduos – colocando-os como centro do sistema – de forma a garantir a segurança dos pacientes e estando acreditados para exercer, da melhor forma possível, sua função assistencial, aplicando os melhores processos de gestão existentes. Devem estar baseados em uma hierarquia de serviços – processos de referência e contra-referência – que garantam o atendimento de acordo com o grau de complexidade requerido, evitando desperdícios e trazendo resultados mais rápidos e melhor qualidade de vida ao paciente.

  • As deficiências na formação, disponibilidade e distribuição dos recursos humanos em saúde, as quais constituem fortes barreiras para a expansão de cobertura da saúde em muitos países em desenvolvimento. É necessário melhorar a qualidade e conhecimento dos profissionais, definir adequadamente e aprimorar suas competências e permitir um mix profissional que garanta a atenção de melhor qualidade ao paciente, assim como a disponibilidade dos trabalhadores em saúde nos diversos níveis assistenciais.

  • As deficiências nos processos de gestão e entrega de serviços. Sistemas universais requerem mecanismos para aumentar a escolha dos gestores e usuários do sistema de saúde, a fim de aumentar a eficiência e a satisfação dos cidadãos quanto aos serviços que lhe são brindados. Estes requerem cada vez mais o conhecimento dos resultados e a aplicação de um conjunto de regras claras e conhecidas que lhes permitam avaliar adequadamente a performance do sistema de saúde. A concorrência entre provedores para a entrega dos serviços, junto a redução das assimetrias de informação entre todos os atores do sistema (especialmente os cidadãos), permitirá uma distribuição mais justa do poder entre os distintos atores do sistema e o empoderamento dos usuários, os quais poderão selecionar os provedores que melhor lhes convém com a informação acertada para a tomada de decisões. A este processo se soma a descentraliação da gestão dos serviços e os mecanismos de participação da sociedade que constituem processos rápidos para dar resposta e filtrar às reais necessidades de saúde da população no conjunto de prioridades que estruturam os sistemas de saúde.
  • A falta de um papel chave do Estado como normador e regulador do sistema. Atualmente, boa parte do Estado, tanto ao nível do poder central, como ao nivel de poderes locais, atua como gestor e executor das ações de saúde, o que o inibe para tomar ações corretivas que penalizem suas próprias estruturas de oferta. Ao assim fazer, o Estado se transforma em cúmplice de sua própria ineficiência e deixa de cumprir adequadamente seu papel de regulador e gestor dado que fazer isso adequadamente significaria muitas vezes cortar sua própria carne e ajustar seus mecanismos internos de gestão em busca da eficiência.

  • A falta de uma estratégia coordenada e consistente de utilizar os avanços nas tecnologias de informação e comunicação (TICs) à serviço da melhoria da atenção à saúde, criando mecanismos automáticos de monitoramento e avaliação das ações de saúde, agilizando os processos de marcação e agendamento de serviços, cruzando informações sobre oferta e demanda para saber a disponibilidade e a localização imediata de recursos, assim como saber os problemas do sistema em tempo real e corrigi-los antes que se agravem. Investir em TICs em saúde é um requisito básico para a eficiência e para a solução de problemas do sistema de saúde.

  • A falta de transparência e prestação de contas na gestão dos sistemas de saúde. É necessário aumentar a responsabilidade dos gestores e a geração de informação para que todas as instâncias saibam como os recursos para a saúde vem sendo utilizados e com que resultados. Da mesma forma que informam e tornam transparente sua gestão, os gestores de saúde devem prestar contas sobre seus erros e sofrer sanções pesadas quando essas ameaçam os princípios éticos e de integridade do sistema ou desrespeitam fragrantemente as necessidades dos indivíduos e famílias que buscam ser atendidos no sistema de saúde.


Esse conjunto sintético de falhas esta na raís de como operam muitos sistemas de saúde na América Latina, inclusive o brasileiro, e são a razão pela qual os resultados do SUS tem sido muito aquém do que poderiam ser. Resolver estes problemas, não somente é um imperativo de cidadania mas constitui a chave para que se possa avançar na efetiva universalização de cobertura nos países em desenvolvimento.



Mas no caso do Brasil, a questão ainda é mais complexa. Vimos, no início dessa postagem, que a aceitação coletiva da idéia de cobertura universal de saúde depende de dois fatores primordiais: coesão social e desenvolvimento econômico. Estariam estes fatores presentes na realidade brasileira hoje? Sabemos que não.

Vimos que o conceito de coesão social depende da solução de vários problemas, como desigualdade de renda, a violência urbana, a violência social, à criminalidade e à corrupção no setor publico. Como está o Brasil hoje no encaminhamento destes problemas?


A desigualdade de renda no Brasil reduziu levemente desde 1996, mas continua a ser uma das mais altas do mundo. E para completar, em 2015, segundo os dados do IBGE, a renda do trabalho voltou a se concentrar num momento de queda da renda real do trabalhador, interrompendo um ciclo de duas décadas de progresso nestes indicadores que haviam começado no Plano Real.


A violência urbana e social tem batido recordes nas grandes capitais e cidades de médio e mesmo de pequeno porte, as quais começam a sentir os efeitos do aumento da criminalidade e da violência. A corrupção no setor público aumentou vertiginosamente nos últimos treze anos, com escândalos como o mensalão e agora o petrolão e muitos outros ainda encobertos que certamente virão a preencher os noticiários dos próximos anos.


Quanto ao desenvolvimento econômico, a crise econômica atual, que poderá implicar, no triênio 2014-2016, uma queda do PIB percapita consecutiva de quase 10%, é a maior que o país já enfrentou em décadas, superando aquela que ocorreu nos Governos Sarney e Collor. 

Todos estes fatores aumentam a frustração social e reduzem a confiança de que o presente governo é capaz, sequer de enfrentar a crise que ele mesmo criou, quanto mais implementar complexas reformas do Estado que aumentem a equidade social, como é o caso da universalização de cobertura em saúde. Este é um desafio que os próximos governos terão que enfrentar com urgência.



 REFERENCIAS

 Frenk, J. (2014), “Leading the way towards universal health coverage: A call to action”, The Lancet 385(9975) · October 2014. https://www.researchgate.net/publication/267047213_Leading_the_way_towards_universal_health_coverage_A_call_to_action

Gedion, U., Alfonso, E.A. e Díaz, Y. (2013), “The Impact of Universal Coverage Schemes in the Developing World: A Review of the Existing Evidence”, UNICO Studies Series 25, The World Bank, Washington DC, January 20.

Gupta, V., Kerry, V.B., Goosby, E. e Yates R. (2015), “Politics and Universal Health Coverage — The Post-2015 Global” in The New England Journal of Medicine, 373(13) September 2015. Link -  http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMp1508807?af=R&rss=currentIssue

World Health Organization (2012). What is universal health coverage? Online Q&A. http://www.who.int/universal_health_coverage/en/




NOTAS
[i] Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável podem ser encontrados em sites das Nações Unidas como  https://sustainabledevelopment.un.org/?menu=1300, (Plataforma de Conhecimento para o Desenvolviento Sustentável. Entre os ODS se econtra o de número 3.8 que diz “Alcançar a cobertura de Saúde universal, incluindo proteção contra riscos financeiros, acesso a serviços de saúde básica de qualidade e acesso a medicamentos básicos e vacinas, seguros, de qualidade e de baixo custo para todos.
[ii] World Health Organization (2012). What is universal health coverage? Online Q&A. http://www.who.int/universal_health_coverage/en/
[iii] Um esforço notavel a este respeito é o que vem realizando o Banco Mundial com a série de estudos do Projeto UNICO. Os estudos de caso desta série são baseados no uso de um protocolo padronizado para analisar 27 programas em 25 países que expandiram a cobertura de saúde de baixo para cima, isto é, começando com os pobres e vulneráveis. O protocolo consiste em 300 questões destinadas a obter uma compreensão detalhada de como os países estão implementando cinco conjuntos de políticas para realizar o seguinte: (a) administrar o pacote de benefícios; (b) gerir os processos para incluir os pobres e vulneráveis; (c) realizar reformas para aumentar a eficiência na prestação de serviços; (d) enfrentar novos desafios na atenção primária e; (e) desenvolver mecanismos de financiamento para alinhar os incentivos dos diferentes financiadores e provedores de serviços no sector da saúde.
[iv] Um apanhado recente das dezenas de países que adotam a cobertura universal de saúde sumarizados em um mapa que pode ser visualizado em Gupta, V., Kerry, V.B., Goosby, E. e Yates R. (2015), “Politics and Universal Health Coverage — The Post-2015 Global” in The New England Journal of Medicine, 373(13) September 2015. Link -  http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMp1508807?af=R&rss=currentIssue
[v] Abordei este tema, de forma ampla, numa conferência que realizei no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, em 2015, patrocinada pelo núcleo de estudos sobre bioética e diplomacia em saúde (NETHIS). Os slides e o video associados a essa conferência podem ser obtidos, respectivamente, nas páginas web https://www.researchgate.net/publication/282661537_Cobertura_Universal_de_Salud_x_Sistema_Unico_de_Salud e https://www.youtube.com/watch?v=798cxCloHmU
[vi] Ver, neste blog o artigo: “A Saúde na Voz do Povo e as Manifestações de Junho 2013”, http://monitordesaude.blogspot.com/2013/06/a-saude-na-voz-do-povo-e-as.html.
  
[vii] Ver Frenk, J. (2014), “Leading the way towards universal health coverage: A call to action”, The Lancet 385(9975) · October 2014. Este artigo é parte de uma série da referida revista para discutir os temas do UCS. O Link é https://www.researchgate.net/publication/267047213_Leading_the_way_towards_universal_health_coverage_A_call_to_action