domingo, fevereiro 28, 2016

A Crise da Saude e as Organizações Sociais de Saúde no Rio de Janeiro


Ano 10, No. 72, Feveriero 2016


André Medici
 
 
 
A jornalista Carol Gonçalves, da Revista Hospitais Brasil, me solicitou uma entrevista sobre o tema da crise da saúde do Rio de Janeiro e sua relação com as Organizações Sociais contratadas pelo Estado. A questão é que, com a crise econômica e seu impacto nas finanças do Estado, o setor público não tem sido capaz de cumprir com suas obrigações com as Organizações Sociais (OS) contratadas pelo Estado que hoje administram vários hospitais e serviço de saúde no Estado. Mas existe sempre o argumento de que o problema está concentrado nas OS e não nos problemas que se situam no entorno da gestão e do financiamento do setor público do Estado. Minha entrevista tenta desmistificar alguns destes aspectos.
 
 
CG: A crise na saúde no Rio de Janeiro abre espaço para falarmos sobre gestão indireta no setor. Recente notícia informa que as OSS no estado vão passar por auditoria pois acredita-se que o valor devido a elas pelo governo é menor do que é solicitado, sem falar nos desvios de recursos, que começaram a ser investigados. São oito OSs que administram 12 hospitais e 29 UPAs do estado do Rio de Janeiro. Qual sua opinião sobre esse tipo de gestão na área da saúde? As OSS são a melhor solução?
AM: As OSs tem se caracterizado como um modelo de gestão que permite melhorar a eficiência e o alcance de resultados, através de um processo aonde os recursos públicos são gastos de acordo com o alcance de metas estabelecidas e parte da remuneração de pessoal é associada ao desempenho. Portanto, na medida em que vincula o financiamento com metas de resultados, tanto quantitativos como qualitativos, as chances de alcançar melhores resultados são maiores do que no setor público, onde os serviços de saúde são financiados por orçamentos históricos, o pessoal é estável e desmotivado e não existe nenhum incentivo para que possam melhorar a produtividade ou a qualidade ao atendimento da população.
Do meu ponto de vista, não há problemas com o modelo de OSs, mas podem haver problemas com a forma pela qual o modelo tem sido gerenciado, ou seja, que algumas das condições básicas para que o modelo funcione não tenham sido cumpridas, levando a descontinuidade dos serviços e à crise na assistência à população. E creio que, independentemente do tema dos valores devidos e eventuais desvios de recursos, cuja a investigação ainda necessita terminar para que seja emitido algum parecer com base jurídica, o principal problema foi a crise no financiamento e o fato do Governo ter suspendido os pagamentos contratuais as OSs por algum tempo.
CG: Quais os maiores problemas que envolvem esse tipo de administração?
AM: A administração das OSs é um processo complicado porque envolve compromissos do poder concedente (no caso, a Secretaria do Estado de Saúde) com a concessionária (no caso a OSs). Do meu ponto de vista,  há que considerar alguns aspectos que são essenciais para que as OSs funcionem adequadamente.
O primeiro são os contratos, tanto do Governo com a OS, assim como desta com os trabalhadores de saúde, onde todos os processos associados a como se fixam e se medem as metas de produção, desempenho e qualidade são estabelecidos, bem como os mecanismos de financiamento associados aos resultados alcançados, através de indicadores de desempenho que realizem o pagamento de acordo com a métrica exata dos resultados esperados. Os contratos de trabalho entre as OSs e trabalhadores da saúde tem que ser muito claros em relação aos incentivos associados a estas metas de produção e qualidade e os indicadores e controles para que estos resultados sejam alcançados devem ser estabelecidos, respeitados e fiscalizados.
O segundo é o financiamento justo e oportuno. Se as OSs não recebem os pagamentos associados aos seus resultados nas datas e quantidades estipuladas nos contratos, uma vez que as metas de resultado são alcançadas, ocorre um processo de ruptura contratual que pode prejudicar a concessão do serviço de saúde à população, gerando uma crise no setor. Também ha que se considerar cláusulas que permitam que estes pagamentos sejam reajustados se os custos dos insumos (uma vez acordados os procedimentos assistenciais e sua forma ou protocolo de realização) venha a aumentar.
O terceiro é a fiscalização. O poder concedente para a OSs (no caso a Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro) tem que estar a postos e ter pessoal qualificado para fiscalizar se estão sendo rigorosamente cumprindos os contratos e se as metas estão sendo alcançadas de acordo com o estabelecido. Devem dar seguimento às queixas dos pacientes e monitorar sua satisfação com os serviços prestados. Os resultados da fiscalização é que podem garantir se o financiamento está sendo justo de acordo com o contrato ou se existem mecanismos no contrato que devem ser modificados, dado que os contratos devem ser permanentemente revistos e atualizados sempre que necessário.
O quarto é a ouvidoría, conciliação e arbitragem, onde os problemas que sejam detectados, tanto no não cumprimento das metas, como na satisfação dos usuários ou de uma das partes – OSs ou Governo – devem ser processados e resolvidos, internamente pelas OSs e pela Secretaria de Saúde, ou em instância superior judicial, caso necesario.
O quinto é a previsão  de cláusulas para atender a situações de emergência, dado que se alguma das condicionalidades não for cumprida por ambas as partes, afetando a oferta de serviços, seria necessário ter um plano de contingência para que não haja reduções na oferta regular ou crises no atendimento às necessidades de saúde da população.
CG: Quais seriam as alternativas ideais para melhorar a situação do setor no Brasil? PPPs? OSS, mas com melhor fiscalização?
AM: Acredito que mecanismos de contratualização (como OSs, PPPs, etc.) são uma forma superior de gestão dos serviços públicos do que os serviços sob gestão da administração direta. Não digo que o Estado não possa ser um bom gestor de serviços, mas para que isso possa ocorrer, ele tem que separar as funções de admistração central daquelas da gestão direta de cada unidade de serviço.
Por exemplo, há escolas e hospitais públicos em muitos países desenvolvidos, como Inglaterra, Canadá, França e Estados Unidos, mas sua gestão é sempre descentralizada e o financiamento é associados a metas de resultados e os contratos de trabalho são flexíveis de acordo com planos e necessidades da gestão do estabelecimento. Com isso, se minimizam os danos para a população em geral trazidos pelas greves do pessoal estável de saúde e o absenteísmo constante pela falta de fiscalização e cumplicidade da gestão com os funcionários da administração direta, permitindo uma atenção de melhor qualidade para a população,
Tanto as OSs como as PPPs são modelos de concessão de serviços, onde a gestão de cada unidade é independente e descentralizada, tornando a administração do estabelecimento flexível para o cumprimento de metas pactadas com o Governo. Com isso o estabelecimento tem melhores condições para gerenciar suas compras, de forma descentralizada, recebendo seus insumos de forma ágil e expedita; para adequar seu quadro de pessoal às necessidades do modelo de atenção e para criar incentivos para fornecedores e trabalhadores, associados às metas a serem alcançadas.
No entanto, as condições necessárias para a implantação e funcionamento das OSs deveriam cumprir os requisitos que mencionamos acima. Fsicalização, planos de contingência, processos de negociação permanente e arbitragem são pontos nevrálgicos para que se possam prever catástrofes na administração de contratos, como essas que ocorreram no Rio de Janeiro.
CG: Gostaria de comentar sobre a crise na saúde no Rio de Janeiro e as soluções para atenuar os problemas?
AM: O que está acontecendo no Rio de Janeiro, do meu ponto de vista, é o não cumprimento de algumas destas cinco condições que mencionamos acima. Não tenho os detalhes, mas é possível que os contratos tenham sido falhos em algumas cláusulas. Certamente, desde o segundo semestre de 2015, os problemas de financiamento do Estado do Rio de Janeiro, trazidos pela redução da arrecadação do ICMS e dos royalties do petróleo, geraram as condições para o descumprimento dos compromissos do governo do Estado com o pagamento das OSs. Estas, ao não recebem recursos do governo para administrar as unidades de saúde, e na ausência de algum tipo de acordo ou negociação que permitisse recursos de crédito ou outras fontes emergenciais de recursos, acabaram atrasando os salários e restringindo o atendimento.
Em geral, países ou regiões que recebem recusos extra-orçamentários associados a receitas de produtos primários como o petróleo, não põe estes recursos diretamente no orçamento público, mas criam mecanismos para reservar estes recursos (como hedge funds) para que possam servir como forma de financiamento do orçamento público nos momentos de crise. O Estado do Rio de Janeiro colocou os royalties recebidos diretamente como parte do financiamento e não como reserva, tendo efeitos negativos como o aumento desnecessário das despesas em momentos de auge e, consequentemente, a falta de fundos para enfrentar as despesas essenciais (como a saúde) nos momentos de crise.
A fiscalização não deve ter sido suficiente, assim como os mecanismos de ouvidoria, conciliação e arbitragem e, por fim, creio que não havia plano de contingência, ou se havia não foi implementado no momento certo ou de forma adequada.
Creio que a existência de um plano de emergência que incluisse compensações financieras ex-ante ou ex-post para os serviços, de acordo com os contratos, poderia ter evitado no mês de dezembro do  ano passado, perto do natal, o fechamento de emergências de hospitais públicos, assim como a  restrição do atendimento somente pacientes “em risco de morte iminente” em 17 das 29 UPAS e demais unidades sob contrato de OSs, além da falta de provisão de insumos e medicamentos que também foram notados durante a crise (sem contar o recente desperdício associado ao vencimento de prazos de validade de medicamentos não utilizados pelo Estado).
Outro problema foi a falta de coordenação de um processo de referencia e contra-referencia da demanda das OSs nesta situação de emergência, que levou a uma sobre-carga abrupta de 30% na demanda das unidades federais e municipais. Assim, na inexistência de planos de emergência, o Governo Federal e o Governo do Município do Rio de Janeiro tiveram que socorrer a Secretaria Estadual de Saúde, com serviços e recursos, levando à municipalização de dois hospitais – Rocha Faria e Albert Schweitzer – e a disponibilização de 1500 leitos de hospitais federais para atender à demanda municipal.
Além disso, o Governo do Estado parece ter conseguido recursos especiais de empréstimo da prefeitura do Rio de Janeiro (R$100 milhões) e liberações do Governo Federal para pagar os compromissos com as OSs, mas estes recursos parecem não ser suficientes para enfrentar as necessidades orçamentárias para 2016. Nesse sentido, os desafios continuam, com riscos de que a falta de atendimento volte, mas ao mesmo tempo, abrindo oportunidades para que se possa fazer um processo negociado de revisão e atualização dos contratos das OSs, com base nos cinco princípios que elencamos acima.


sábado, fevereiro 20, 2016

O que a ANS Regula: Proteção Financeira ou Provisão de Serviços de Saúde?


Ano 10, No. 71, Fevereiro de 2016


No mundo atual, existe um crescente consenso de que os mecanismos de seguro saúde devem buscar garantir uma separação entre as funções de seguro e de provisão de serviços de saúde. No entanto, essa discussão nem sempre é bem entendida no plano conceitual. Vários países da América Latina enveredaram por organizar, de forma parcial ou integral, o seu sistema de saúde através de sistemas de asseguramento. É o caso do Chile, Colômbia, México, Perú, Equador, Uruguai, Argentina e até mesmo do Brasil, dado que quase um terço da população utiliza planos privados de asseguramento da saúde, regulados através da Agência Nacional de Saúde Suplementar.

Se bem que a separação das funções é importante para que se tenha maior transparência nos mecanismos de compra e venda de serviços, ajudando também a tornar transparente os cálculos atuariais dos mecanismos de sustentabilidade do seguro, muitos seguros mantém sua rede própria de serviços (o que se conhece como integração vertical), o que tem aspetos positivos e negativos. Os aspectos positivos são relacionados ao controle maior que o plano pode ter em momentos onde é necessária a contenção de custos. Os aspectos negativos se relacionam ao fato de que, muitas vezes a integração vertical não permite que se avance na transparência dos custos assistenciais, fazendo com que os prêmios de seguro encobertem ganhos escondidos na relação de uma compra interna dos serviços de sua própria rede (como ocorre em algumas empresas de seguro de saúde na Colômbia).

Independentemente deste tema, é necessário precisar que a regulação de um plano de saúde envolve ambos aspectos: os aspectos técnico-financeiros do seguro, mas também os aspectos de garantia da provisão de serviços. A presente postagem procura esclarecer este tipo de discussão no excelente artigo de Leandro Fonseca da Silva, economista pela UFRJ, ocupando a posição de  Gerente-Geral de Acompanhamento das Operadoras e do Mercado na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Leandro tem pós-graduação em Finanças pela PUC-Rio e mestrado em Regulação na London School of Economics and Political Science (LSE). Após seis anos no setor privado, ingressou no setor público brasileiro. Desde 2006 atua na área de Economia da Saúde, tendo sido Coordenador-Geral de Economia da Saúde do Ministério da Fazenda e Diretor-Adjunto na ANS. Ademais, é egresso de curso de formação da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), principal órgão de formação dos gestores públicos no Brasil. Com vocês, os esclarecimentos sobre quem entende efetivamente desta área

Plano de saúde é um tipo de seguro ou é prestação de um serviço?

Leandro Fonseca da Silva[1]

 

Este breve artigo pretende abordar uma questão frequentemente debatida entre aqueles profissionais que atuam no setor de saúde suplementar e de seguros no Brasil: se os planos de saúde são apenas uma modalidade de seguro ou se são empreendimentos que prestam serviços de assistência à saúde. Refletida nessa questão está uma aparente dicotomia entre o que se pode chamar de definição técnica e definição social da função de um plano de saúde. O que se pretende explorar aqui é a necessidade de se entender essa aparente dualidade como sendo, na realidade, um fato diante do marco regulatório e das expectativas da sociedade, sendo, portanto, fundamental superá-la definitivamente em favor de uma discussão mais pragmática para aprimoramento setorial. Afinal, a expansão do acesso à assistência à saúde com qualidade e que “caiba no bolso”; associada ao desenvolvimento de um sistema sustentável de proteção aos indivíduos e famílias para não entrarem na pobreza ou piorarem sobremaneira sua condição econômica por conta de doenças é que deveriam estar no centro do debate.

A definição social da função de um plano de saúde está em grande parte estabelecida na lei que regula o setor (Lei nº 9656/1998), nas várias normas emitidas pela Agência Reguladora do setor (ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar) e em diversas manifestações coletivas ou individuais dos usuários deste sistema. A lei setorial define plano de saúde como prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais médicos, hospitalares e odontológicos. Por sua vez, diversos normativos emanados pela ANS reforçam o entendimento de que os planos são uma prestação continuada de serviços ao estabelecer, por exemplo, obrigações às operadoras de planos de saúde em termos de prazo máximo de atendimento aos usuários pelos seus médicos, independentemente de serem contratados, credenciados, referenciados ou cooperados. Não por acaso, portanto, a expectativa manifestada dos usuários, individual ou coletivamente (através de entidades de defesa do consumidor ou associações de consumidores), é de que os planos de saúde são os responsáveis pelos serviços de assistência à saúde prestados, ainda que haja uma separação formal entre operadoras de planos de saúde e prestadores de serviços de assistência à saúde (i.e., médicos, clínicas, hospitais e laboratórios). Ao fim e ao cabo, se a lei e as normas setoriais reforçam que os planos de saúde são uma prestação continuada de serviço, é natural que os usuários tenham expectativa de que, ao contratarem uma operadora de planos de saúde, a mesma seja responsabilizada pelo o que acontece em toda a cadeia produtiva que envolve a prestação desse serviço.

Por sua vez, o que se chama aqui de definição técnica de plano de saúde pode ser referenciada não apenas na origem do setor, mas também na lei e em várias outras normas emitidas pela ANS. O advento do plano de saúde decorreu, em grande medida, da necessidade de se reduzir o impacto econômico sobre as famílias de uma eventual doença que pudesse atingir algum de seus membros. A depender dos gastos com a assistência médica, todas as reservas financeiras poderiam ficar comprometidas e as famílias falirem. O plano de saúde ao reduzir esse risco seria, em sua origem, um tipo de seguro. Por sua vez, a lei setorial brasileira estabelece que os serviços de assistência à saúde podem ser contratados junto às operadoras de planos de saúde em forma de pré-pagamento ou pós-pagamento, sem limite financeiro. Estabelece ainda que as operadoras devem estar suficientes em termos de garantias ao equilíbrio econômico-financeiro de forma a não comprometer a continuidade e a qualidade do atendimento à saúde. Assim, a lei também reproduz elementos essencialmente securitários ao entender que um plano de saúde pressupõe a existência de um grupo (ou pool) de contratantes que não querem ficar expostos ao risco de falência pessoal ou familiar na eventualidade de uma doença e, portanto, que as operadoras precisam administrar os recursos destes contratantes para garantir o equilíbrio econômico-financeiro daquele mútuo, de forma a cobrir despesas decorridas e a decorrer. A regulação econômico-financeira emitida pela ANS reflete, em grande medida, o entendimento técnico de que a operação de planos de saúde possui em sua origem e no que foi também estabelecido no marco legal, diversos elementos tipicamente securitários.

De fato, o que aproxima tecnicamente os diversos ramos de seguros dos planos de saúde é que, em essência, são instrumentos para lidar com o mesmo problema econômico fundamental: como diminuir os riscos financeiros associados a despesas inesperadas, porém essenciais e que precisam ser cobertas. A solução para esse problema econômico foi dada há centenas de anos[2] através de um arranjo financeiro que redistribui os custos das despesas inesperadas entre todos os membros de um pool, qual seja, através do mecanismo do seguro. O organizador desse arranjo financeiro (o segurador) recolhe então pagamentos (prêmios) dos contratantes (segurados) com a promessa de pagar (ou cobrir) eventuais despesas (sinistros) previstas em contrato. O conceito que une, portanto, planos de saúde e seguros é o de cobertura de riscos.

O conceito de risco desenvolvido aqui é essencialmente o de risco financeiro que pode advir da ocorrência de um evento com elevado impacto em termos de custo. Nesse sentido, quanto maior o grau de risco que o segurador se propõe a cobrir, maior deve ser o seu preço (ou prêmio). Existem, na prática, quatro grandes fatores a serem considerados na composição de um prêmio de seguro:

                             I.          O custo atual das perdas/sinistros;

                           II.          As despesas administrativas e operacionais para a manutenção do pool;

                         III.           O possível ganho financeiro decorrente do recebimento antes do desembolso; e

                         IV.          O fator de risco associado ao pool.

Quanto maior a variação em torno de uma perda esperada média, maior o risco. Ou seja, se a partir da lei dos grandes números pode-se calcular a esperança matemática da ocorrência de um determinado percentual médio de perdas (sinistros) em um determinado pool, uma elevada variância em torno desse percentual médio torna maior o risco de perda para o segurador. Assim, o fator de risco associado ao pool está ligado à variação de possíveis resultados de um evento aleatório naquele pool, o que deve estar adequadamente refletido no prêmio para fins de manutenção da solvência do segurador.

De todo o exposto até aqui, resta claro que os mesmos cuidados que devem ter as seguradoras em torno do estabelecimento do prêmio (precificação), do gerenciamento de riscos, da administração prudente dos recursos que estão sendo administrados para que possam ser honradas as despesas de eventos cobertos contratualmente e da manutenção de capital suficiente para reduzir o risco de insolvência também precisam ser observados pelas operadoras de planos de saúde. Por isso a regulação econômica do setor de saúde suplementar tem grande semelhança com a normatização do setor de seguros.

Em linhas gerais, a regulação econômico-financeira das operadoras de planos de saúde estabelece uma série de exigências em termos de garantias financeiras e de capital, visando a preservação da liquidez e da solvência das operadoras. No que diz respeito às garantias financeiras, as chamadas provisões técnicas se fazem necessárias para induzir uma gestão de recursos adequada para lidar com os riscos esperados da operação – principalmente, provisões de eventos ou sinistros já ocorridos, tendo sido avisados ou não. Estas provisões, por sua vez, precisam ter sua contraparte em ativos garantidores, tipicamente de elevada liquidez e baixo risco. Já a regra de capital, além de estabelecer um patamar mínimo para entrada no setor, requer um capital adicional proporcional ao tamanho da operação. Tal capital adicional ou margem de solvência tem o intuito de servir como uma “rede de segurança” caso os fatores de risco associados ao pool sofram alguma variação não prevista que exija um dispêndio além do esperado pela operadora. Interessante notar aqui que para a regulação, quanto mais capitalizadas as operadoras de planos de saúde, melhor, pois estão menos expostas ao risco de insolvência; enquanto que para os controladores, quanto menor o capital a ser investido, melhor, pois o retorno sobre o capital investido (ROIC, no acrônimo em inglês) tende a ser maior.

Tomando-se a evolução histórica da regulação da saúde suplementar, pode-se notar fases distintas. A primeira fase da regulação, até 2010, foi mais intensamente dedicada à regulação econômico-financeira. Obviamente, diversas normas de cunho assistencial foram expedidas pela ANS no período, todavia, pode-se dizer que a maior intensidade em termos de intervenção na atividade veio da regulação econômico-financeira. A segunda fase da regulação, a partir de 2010, por sua vez, foi mais intensa no aspecto assistencial. Novamente, isso não quer dizer que normas de aspectos econômico-financeiro não tenham sido expedidas, mas sim que tiveram como linha-mestra apenas ajustes finos nos pilares regulatórios já existentes em termos de garantias financeiras e exigências de capital. A regulação no período pendeu mais intensamente para as questões assistenciais, notadamente ampliando coberturas mínimas e aumentando o enforcement regulatório para que as operadoras garantissem acesso aos serviços de saúde e atendimento adequado ao usuário de planos de saúde.

Para os próximos anos, uma pergunta adicional que surge é se a regulação deve se voltar para os aspectos econômico-financeiros, em um novo movimento do pêndulo regulatório. Difícil dizer, tendo em vista que as decisões de normatização setorial são tomadas em uma estrutura colegiada e, portanto, diversas visões sobre o que deve ser priorizado precisam ser compatibilizadas. Pode-se dizer, contudo, que há um elenco de temas de viés econômico-financeiro que podem ser objeto de regulação. Por exemplo, a evolução da atual regra geral de capital mínimo exigido para uma regra que privilegie modelos próprios de capital baseado em riscos (de subscrição, operacional, de crédito e de mercado), a indução para uma melhora da qualidade deste capital em termos de maior liquidez, a regulamentação do compartilhamento de risco entre operadoras ou seguradoras e resseguradoras e a criação de incentivos à adoção de boas práticas na gestão e na governança das operadoras, com foco em risk management.

O importante aqui é entender que não há que se falar em uma disputa sobre qual deve ser a regulação setorial – se apenas dedicada aos aspectos relacionados à origem securitária dos planos de saúde ou se com foco apenas no consumidor e nos serviços de assistência à saúde. Cabe aos formuladores de políticas, especialistas e estudiosos do setor superarem a discussão de como deveria ser o marco regulatório do setor. A realidade que se impõe, tanto em função do marco legal quanto da expectativa da sociedade, é que a regulação deve ter esse duplo foco – técnico e social. Portanto, no Brasil, plano de saúde é uma modalidade de seguros, mas também é um serviço contratado para continuamente prover assistência à saúde. O entendimento dessa realidade como algo com baixíssima probabilidade de mudar pode permitir uma discussão mais pragmática acerca dos aprimoramentos regulatórios para fins de desenvolvimento setorial. Um planejamento de ênfase regulatória nas diferentes dimensões que caracterizam o plano de saúde pode, nesse sentido, diminuir a percepção de movimentos pendulares em favor de um projeto de longo prazo para o setor.



[1]Artigo escrito em 4 de fevereiro de 2016. Ressalve-se que as opiniões aqui expressas são de responsabilidade do autor e não são posicionamento institucional do órgão em que atua.
[2] Na história Ocidental do seguro, atribui-se seu surgimento à necessidade de cobrir os riscos dos empreendimentos marítimos europeus que ocorreram na época da Renascença.