quinta-feira, dezembro 30, 2010

A Saude em 2010 - Os Desafios da Universalização

Ano 5, No. 27, Dezembro de 2010
André Medici



O mundo ainda está longe de alcançar a universalização de condições mínimas de saúde para todos, mas é sobretudo na área de políticas de saúde que ocorreram algumas transformações que podem influenciar o futuro dos sistemas de saúde ao nivel mundial. Em 2010 o discurso da universalização deu saltos importantes na consciência dos países desenvolvidos, embora ainda existam grandes desafios a enfrentar.

Desastres Naturais, Efeitos Climáticos e Epidemias

As condições de saúde em 2010 foram fortemente afetadas por desastres naturais e doenças transmissíveis, localizados em países institucionalmente frágeis. Entre janeiro e novembro, mais de 260 mil pessoas morreram por causa de desastres naturais, como terremotos, enchentes e furacões, comparadas com 15 mil em 2009. Terremotos e enchentes na China mataram mais de 4 mil pessoas. O terremoto do Haiti, além de matar 222 mil pessoas de acordo com cifras oficiais, trouxe a destruição do já débil sistema de saúde daquele país. Mesmo com toda a ajuda internacional, o esforço de reconstrução do Haití tem sido lento e o país se encontra ameaçado por uma forte epidemia de cólera, contabilizando, ao final de novembro, mais de 60 mil casos desta doença com 1500 vítimas fatais.

Questões climáticas como furacões, inundações e ondas de calor mataram cerca de 17 mil pessoas em 2010. Registros preliminares mostram que 18 países experimentaram as mais altas temperaturas de sua história no ano que se encerra. As enchentes mataram 2 mil pessoas no Paquistão e devastaram uma enorme área densamente povoada que ficou desprovida de serviços de saúde e medicamentos para milhões de habitantes. Cerca de 21 mil mortes estiveram associadas a mudanças climáticas em 2010, segundo dados da OXFAM.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) o aquecimento global pode estar contribuindo para a morte de 150 mil pessoas a cada nao(especialmente crianças) pelos efeitos na quebra das safras agrícolas nos países pobres, trazendo o aumento da desnutrição e o crescimento da incidência de diarreia e malária. Mantida a tendência ao aquecimento global, estes números poderiam dobrar até 2030.

Mesmo com todos os avanços tecnológicos, a maioria dos países, especialmente os mais pobres, não tem ainda meios para controlar os efeitos das catástrofes naturais sobre a mortalidade e a morbidade. A ajuda internacional tem contribuido para mitigar o problema. Dados do Institute for Health Metrics and Evaluation da Universidade de Washington mostram que em 2010 os recursos estimados para assistência internacional chegaram a US$ 26,9 bilhões, representando um aumento de 6,7% em relação a 2009 (1). Mas mesmo com o aumento dos recursos, os esforços de coordenação e eficiência no uso dos mesmos merecem mais atenção, especialmente para que sejam implantados programas sustentáveis no futuro próximo.

Pelo lado positivo, o retorno da Gripe A, esperado pelos especialistas, não ocorreu. Em 2010 o mundo viveu uma fase pós-pandêmica da doença. Campanhas de vacinação contra a polio na África foram extremamente bem sucedidas, vacinando 72 milhões de pessoas, mas o inferno das doenças transmissíveis ainda afeta a vida dos mais pobres em várias partes do mundo.

As irremediáveis promessas não cumpridas de saúde para todos

Todos reconhecem que muitos obstáculos ainda devem ser removidos para que o sonho da universalização se concretize. Já se passou uma década desde que o lema Saúde para Todos no Ano 2000, proclamado como meta pela OMS durante a Conferencia de Alma Ata (1978) não se realizou. E apesar dos progressos registrados na melhoria da saúde mundial, no crescimento da esperança de vida e na redução da mortalidade infantil, as metas formuladas pelas Nações Unidas para 2015, relacionadas aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) padecem do risco de não serem também alcançadas.

Considerando o ODM número 4 – reduzir em dois terços a mortalidade de menores de 5 anos entre 1990 e 2015 – observa-se que a cada ano morrem 3,7 milhões de crianças antes de completar 5 anos de idade. Entre 1990 e 2008 as taxas mundiais de mortalidade entre menores de 5 anos se reduziram de 100 para 72, mas a meta de chegar a 33 por mil em 2015 parece estar fora de alcance. Uma em cada sete crianças na África Subsahariana morre antes de completar 5 anos de idade. Entre os 67 países com as maiores taxas de mortalidade infantil, apenas 10 serão capazes de atingir a meta, de acordo com os dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) que acompanha os ODM (2).

O ODM número 5 – melhorar a saúde materna reduzindo em dois terços a taxa de mortalidade materna entre 1990 e 2015 – é outro em risco de não ser alcançado. Cerca de 350 mil mulheres morrem a cada ano por causas maternas, das quais 99% nos países em desenvolvimento. Em 2008, somente 63% dos nascimentos mundiais foram assistidos por pessoal minimanente qualificado, não aumentando significativamente em relação a 1990, quando esse percentual era de 53%. Na África sub-sahariana uma em cada 30 mulheres estão em risco de morrer por causas maternas comparada com uma em cada 5.600 nos países desenvolvidos. As taxas de mortalidade materna por 100 mil nascidos vivos aumentaram em vários dos países mais pobres entre 1990 e 2005: em Niger, de 1200 para 1800 e no Afganistão, de 1700 para 1800, só para dar alguns exemplos. E as reduções de dois terços estão longe de ocorrer. Em Angola as taxas de mortalidade materna se reduziram de 1900 para 1400, No Haiti, de 1100 para 670 e no Brasil de 220 para 120, entre os mesmos anos, somente para dar alguns exemplos (3).

Em relação ao ODM número 6 , uma de suas metas – estancar e reverter a expansão da infecção por HIV-AIDS – foi definitivamente alcançada. O número de casos registrados de AIDS, ao nivel mundial, alcançou um máximo de 3,5 milhões em 1996, reduzindo-se para 2,7 milhões em 2008 e o número anual de mortes registradas pela doença se reduziu de 2,2 milhões para 2,0 milhões entre 2004 e 2008. Embora estabilizada na maioria dos países, segue crescento em algumas áreas como a Europa do Leste e a Ásia Central. Mesmo assim se estima que 33,4 milhões de pessoas viviam com AIDS em 2008.

Outra meta relativa ao ODM 6 – atingir tratamento universal para a AIDS até 2010 – não foi alcançada, mas se pode dizer que praticamente todos tem acesso aos tratamentos com anti-retrovirais nos países desenvolvidos e que, nos últimos 5 anos, esse acesso aumentou 10 vezes entre aqueles portadores da doença nos países em desenvolvimento. Mas os custos de atingir tratamento universal são definitivamente proibitivos, especialmente para os países da África Sub-sahariana que concentram dois terços dos casos mundiais de AIDS.

A terceira meta associada ao ODM 6 – conter e reverter a tendência mundial ao aumento da malária e tuberculose até 2015 - também parece não estar em vias de ser alcançada, em que pesem os progressos associados ao surgimento de medicamentos e processos mais eficientes de gestão clínica para o tratamento da doença. Porém, metade da população mundial está em risco de contrair malária. Em 2008 foram estimados 243 milhões de casos que causaram 863 mil mortes ao nivel mundial, das quais 89% ocorreram na África. As doações internacionais para o combate a malária tem aumentado fortemente, mas menos de 30% dos US$ 6 bilhões anuais necessários para alcançar a meta, através da distribuição de medicamentos, tratamentos e mosquiteiros para protegerem camas, foram obtidos em 2010. No caso da tuberculose, cerca de 11 mihões de pessoas, concentradas majoritariamente nos países de mais baixa renda, ainda pacedem da doença. No entanto, o número de novos casos caiu de 143 para 139 por 100 mil, entre 2004 e 2008, o que mostra que a doença está em fase de reversão (4).

Mais perto do Acesso Universal?

A esperança de alcançar de forma sustentável a cobertura universal de saúde foi o tema do relatório da OMS em 2010 (5). O informe aponta caminhos, baseados nas experiências de vários países, em como alcançar o acesso universal a saúde. Ele estima que 20% a 40% dos gastos mundiais em saúde são desperdiçados por ineficiência. Mostra que boa parte desta ineficiencia está associada aos gastos diretos das famílias que atingem proporções superiores a 20% dos gastos totais em saúde nos paises onde os sistemas estruturados são mais ineficientes. Os gastos diretos das famílias poderiam ser canalizados para sistemas de seguro ou de pré-pagamento, que são a forma mais eficiente de potencializar a cobertura com qualidade em saúde.

De acordo com o informe da OMS de 2010, os maiores problemas para que se alcance acesso universal à saúde nos países mais pobres são: (a) a falta de recursos e de disponibilidade de serviços de saúde, (b) o excessivo desperdício dos recursos de saúde na forma de gastos diretos das famílias e (c) o uso ineficiênte dos recursos (públicos e privados) gastos em saúde. Os dados mostram que os países mais pobres gastam em média US$ 32 per capita por ano com saúde e que seria necessário pelo menos US$60 para que se possa financiar seguros que oferecem um conjunto essencial de serviços de saúde capaz de lograr uma universalização de saúde sustentável e de qualidade.

O acesso universal só poderia ser alcançado, na visão do Informe 2010 da OMS, através:

(a) Do aumento da disponibilidade de serviços de saúde aonde estão os mais pobres, reduzindo as barreiras físicas, geográficas e econômicas de acesso para estes grupos;

(b) Do aumento sustentável dos recursos disponíveis, através de melhor arrecadação e maior destinação de percentuais dos orçamentos públicos para subsidar saúde para os mais pobres;

(c) Da progressiva redução dos gastos diretos das famílias e sua transformação em mecanismos de asseguramento baseados em formas de pre-pagamento;

(d) Da redução das ineficiências no uso dos recursos para a saúde pelas instituições públicas e privadas que os administram através de processos gerenciais mais racionais e submetidos ao controle e supervisão, como forma de evitar a corrupção, e;

(e) Do crescimento do conjunto de serviços básicos que integram a cobertura universal, incorporando, de forma sustentável os tratamentos mais custo-efetivos para as doenças que mais contribuem para o aumento da morbi-mortalidade.

Em 2010 ocorreram fatos que poderão mudar tendências mundiais relacionadas à cobertura, qualidade e resolutividade das políticas de saúde. Tudo indica que a sociedade consolida progressivamente o pensamento que a saúde é um direito social universal e vários países avançam mais nessa direção. Vejamos alguns exemplos e seus problemas.

O Plano Obama de Saúde

A viabilidade da universalização da saúde depende das oportunidades geradas para aqueles que não conseguem acesso aos sistemas de seguro de saúde. Este foi o caminho traçado pelo Presidente Barak Obama, dos Estados Unidos, ao assinar, na histórica data de 23 de março de 2010 a legislação que cria uma atenção médica sustentável e de proteção aos direitos dos pacientes (Patient Protection and Affordable Care Act - PPACA). Os efeitos de longo prazo deste ato seriam, primeiramente, a eliminação do 16% de norte-americanos sem cobertura de atenção médica e, ao mesmo tempo, a redução nos próximos 10 anos do défict de US$143 billhões hoje atribuido a programas públicos de saúde.

Entre as medidas associadas ao ato estão a proibição das seguradoras de saúde de negar cobertura ou recusar pedidos de afiliação baseados em pré-existências, a expansão da elegibilidade do Medicaid – o plano de saúde público para os mais pobres; a criação de subsídios públicos para os prêmios de seguro saúde nas empresas de porte médio e pequeno, associado à obrigatoriedade de organizarem ou oferecerem planos de seguro aos seus trabalhadores, a criação de planos de saúde comunitários para os trabalhadores informais e comunidades pobres, a portabilidade automática dos seguros de saúde e a obrigatoriedade de todos terem um seguro saúde, sob a pena de pagar penalidades fiscais no imposto de renda.

Mas ainda que aprovado pelo Congresso Norte Americano, implementar o plano de saúde proposto pelo Governo Obama não será uma tarefa fácil. O Partido Republicano e grupos similares à direita da política americana, como o movimento do partido do chá (Tea Party Moviment) fazem forte oposição a vários ítens da reforma, especialmente o fato de tornar mandatória a afiliação de todos à um plano de saúde, considerada inconstitucional. Também acham que o Plano aumentará ainda mais os gastos de saúde e que não é sustentável. A votação da lei, em março de 2010, foi a mais disputada de toda a história recente do poder legislativo federal norte-americano e não houve um único republicano na Câmara ou no Senado que tenha votado a favor do projeto.

A oposição continua atacando a Lei com base em argumentos como o aumento da tributação sobre os chamados "Planos de saúde Cadillac" (com cobertura farta e preços exorbitantes para executivos de grande empresas) e o financiamento público do subsídio aos mais pobres. Mesmo que o Governo tenha perdido a possibilidade de incorporar a chamada Opção Pública na votação do Projeto de Lei no Congresso (criando uma seguradora pública como uma opção extra para os consumidores, a qual concorreria com as seguradoras privadas), os republicanos seguem dizendo que o PPACA é estatizante e reduz o peso do setor privado num ramo da economia, como a saúde, que sempre foi liderado pela livre iniciativa.

Tanto o governo como as seguradoras de planos de saúde tem argumentado que tornar o seguro de saúde obrigatório para todos é um pré-requisito necessário para atingir a universalidade, a equidade e a viabilidade financeira dos planos de saúde. Neste último caso, a Lei impediria que as pessoas venham a comprar um seguro de saúde somente quando ficam doentes, incorrendo em custos exorbitantes que são socializados com todos os assegurados. En fins de 2010 o tema da obrigatoriedade de tributação dos Planos de Saúde foi levado aos tribunais e alguns juízes da suprema corte atuaram em favor dos argumentos dos republicanos, agora fortalecidos pela maioria republicana na Câmara (não no senado) conquistada com as eleições de outubro de 2010.

A verdade é que se o Plano não for implementado, o Presidente Obama não cumprirá a promessa de universalizar o acesso a saúde e incorporar os 16% de americanos sem cobertura. Uma pesquisa financiada em 2010 pelo The Commonwealth Fund (6), evidenciou que 33% dos americanos não vão ao médico porque não tem dinheiro, comparados com um intervalo entre 5% e 22% encontrado em dez países desenvolvidos. Os dados abaixo mostram outros interessantes resultados desta pesquisa que evidenciam as deficiências do sistema norte-americano comparado com outros países desenvolvidos.



A não implementação do Plano impedirá aos Estados Unidos reduzir o déficit e o país continuará aumentando seus gastos com saúde, que de acordo com as projeções poderão superar os 30% do PIB até 2050. O país continuará a ter uma esperança de vida abaixo da média dos países da OCDE e sua população manterá um grau de instatisfação elevado com o atendimento que recebe. O destino, portanto, para 2011, está nas mãos do aumento da popularidade de Obama, hoje baixa, e da recuperação progressiva da economia norte-americana que ainda convive com uma taxa de desemprego de 10%. Está também na capacidade da maioria republicana conquistada nas últimas eleições da Câmara, em entender o que será melhor para o país, em matéria de organização do sistema de saúde, nos próximos anos.

A Sustentabilidade dos Sistemas Europeus de Saúde e as Medidas Racionalizadoras

Problemas de sustentabilidade também tem afetado a dinâmica do sistema de saúde europeu, considerado um dos mais próximos dos ideias de universalização. A crise econômica européia se aprofundou em 2010, levando diversos países a tentar reformar seus generosos sistemas de bem estar social, incluindo a prestação de serviços de saúde universais, em dois sentidos: racionalizando os gastos e aumentando as possibilidades de financiamento. Vejamos alguns exemplos:

Alemanha: O parlamento alemão votou em novembro de 2010 uma lei que introduz uma Reforma no sistema público de saúde, a começar em 2011. A reforma introduz tarifas de capitação fixas que serão pagas pelos beneficiários às empresas seguradoras, hoje financiadas com recursos fiscais e da seguridade social, todas as vezes que os custos do sistema aumentarem. Concede um aumento na contribuição dos empregados sobre a folha de salários, de 7,9% para 8,2%, ficando fixa em 7,3% a contribuição das empresas. Com isso repassa as pressões de custos do sistema de seguro saúde para os empregados. Como as empresas de seguro saúde esperam um deficit de E$ 9 bilhões em 2011, a idéia é fazer com que este deficit deixe de ser financiado pelo Estado (ou pelo aumento das contribuições compulsórias) e passe a ser financidado pelos beneficiários através dos recursos capitados. Boa parte das pressões de custos vem do aumento das doenças crônicas associadas ao envelhecimento da população e à introdução de novas tecnologias e medicamentos. O Governo alemâo pretende, no futuro, criar um seguro privado que complemente o seguro público existente. Ainda que tenha passado no legislativo, a reforma enfrenta forte oposição da população que desde 2005, quando tentaram introduzir mecanismo de financiamento similar, se manifestou contrariamente ao sistema de capitação.

Reino Unido – O sistema inglês tem apresentado também problemas graves de crescimento dos gastos e redução de produtividade da saúde, especialmente no setor público. Em 2010 se estima que o gasto em saúde inglês ficará entre 10,5% e 11% do PIB, valor bem superior à média dos países europeus e mais do dobro (como porcentagem do PIB) do gasto pelos países escandinavos e Nova Zelândia. O sistema enfrenta insatisfações quanto ao tempo de espera para uso dos serviços. Neste sentido o Governo começou uma reforma do Serviço Nacional de Saúde (NHS), gastando ao redor de L$1,7 bilhões em sua reorganização, com vistas a reduzir gastos futuros. A reorganização do sistema de saúde eliminará as 10 autoridades regionais de saúde e os 152 escritórios locais de atenção primária de saúde (primary care trusts), criando, no lugar desta estrutura, centenas de novas unidades de saúde da família que, somadas as já existentes, remontarão uma estrutura mais descentralizada e autônoma no setor, a ser gerenciada por médicos ordenadores de despesa (GP fund holders). Também se aumentará a autonomia dos hospitais que passarão a competir mais para receber a preferênca dos ordenadores de despesa, que tem o contacto direto com os pacientes. Médicos, serviços e hospitais passarão a ser remunerados por resultados alcançados ao nivel dos pacientes, e não mais por insumos utilizados ou serviços produzidos. Esta medida tirará o emprego de mais de 25 mil administradores de saúde. No entanto, ainda não está certa a velocidade de implementação destas mudanças, que enfrentarão forte resistência de sindicatos e profissionais de saúde fora da estrutura dos GP fund holders. Estima-se que os custos totais da reorganização ficarão entre L$2 and L$3 bilhões e os críticos dizem que não está assegurado que tais reformas melhorarão a qualidade da atenção aos pacientes e permitirão economizar os até L$300 milhões prometidos dos L$100 bilhões projetados para serem gastos pelo sistema em 2012, caso as mudanças não comecem a ser implementadas (7).

Com a ameaça da crise, muitos outros países europeus deverão impor medidas racionalizadoras aos seus sistemas de saúde em 2011. Tais medidas tendem normalmente a aumentar a desproteção dos mais jóvens e tirar do sistema a proteção ainda hoje existente em alguns países aos imigrantes ilegais que buscam pular a cerca para ter acesso a direitos sociais que não existem em seus países de origem. As prioridades numa Europa envelhecida populacionalmente, se mantem em tentar ainda racionalizar os altos custos de saúde para as pessoas de terceira idade. Mas até onde se poderá chegar no esforço de cortar gastos e racionalizar a cobertura mantendo o universalização, sem que a economia retome seu crescimento?

Considerações Finais

Apesar de todos os esforços, a universalização em saúde ainda é uma promessa distante. Especialmente porque ela tem diversos caminhos para ser alcançada. Alguns deles podem levar a melhores e mais rápidos resultados enquanto outros podem nunca chegar a resultado algum. O equilíbrio entre o que se vai gastar e como gastar é um dos pontos nevrálgicos da discussão nos países desenvolvidos. Que dirá então nos países em desenvolvimento, onde os recursos são escassos e as inequidades são ainda maiores?

Os exageros tanto do Estado como do Mercado provam a cada dia que soluções extremas e radicais não levam a sistemas de saúde que cumpram os propósitos de universalização com equidade. Desde a falência dos sistemas de saúde estatistas do leste europeu até os ensinamentos de Kenneth Arrow nos anos sessenta, se sabe que um bom mix de funções públicas e privadas, com políticas regulatórias adequadas, parece ser o melhor caminho para garantir um sistema de saúde que compatibilize as necessidades individuais com a responsabilidade coletiva do quê e como financiar.

Em outras palavras, uma política universal adequada de saúde passa por garantir o acesso com recursos públicos aos que realmente não podem pagar e cobrar maior responsabilidade (inclusive financeira) dos que podem pagar para cuidar de sua saúde. Muitos países em desenvolvimento se esquecem disso ou querem tapar o sol com a peneira. Preferem garantir uma falsa igualdade que beneficia os mais ricos. Estes pegam “carona” nos parcos recursos públicos que deveriam ser destinados àqueles que não podem pagar. E o Estado, em nome da igualdade, permite que os mais ricos comam os brioches do sistema, deixando as migalhas cairem para os mais pobres.

Muito há ainda que fazer, no âmbito da saúde coletiva, para contribuir com uma melhor qualidade da saúde, reduzindo a pressão de custos do sistema. Trata-se de eliminar ou controlar os determinantes sociais da doença, ou seja, os fatores ambientais, sociais, econômicos e culturais que levam ao descontrole no aumento das doenças crônicas, transmissíveis e da morbi-mortalidade por violência que ainda cresce em grande escala nos países em desenvolvimento e nas regiões mais pobres do mundo.

O Estado, por sua vez deve continuar a aumentar a regulação adequada, o monitoramento e a avaliação das políticas de saúde, acompanhando os contratos com asseguradores para aumentar a eficiência administrativa e clínica dos serviços de saúde, reduzindo a assimetria de informação e criando instrumentos para o uso racional dos recursos envolvidos no setor.

Países emergentes como China, Índia e Rússia são aqueles que mais tem que se desdobrar em avançar em soluções para o imenso fosso que os separa do esforço mínimo já alcançado em outras áreas em desenvolvimento, como a América Latina. Este será o tema da próxima postagem.

Referencias

1. The Institute for Health Metrics and Evaluation, Financing Global Health 2010: Development Assistance and Country Spending in Economic Uncertainty, Ed. Institute for Health Metrics and Evaluation, University of Washington, Seatle, 2010.

2. Ver http://www.un.org/millenniumgoals/pdf/MDG_FS_4_EN.pdf, acessado em 30 de dezembro de 2010. Varias fontes de referência podem ser buscadas em relação aos ODM cabendo destacar The Millennium Development Goals Report 2010, United Nations; UN MDG Database (mdgs.un.org); MDG Monitor Website (www.mdgmonitor.org), UN Development Programme (UNDP); What Will It Take to Achieve the Millennium Development Goals? – An International Assessment 2010, UNDP; UN Children’s Fund (UNICEF) website (http://www.unicef.org/).

3. Para mortalidade materna ver as páginas http://www.un.org/millenniumgoals/pdf/MDG_FS_5_EN_new.pdf e http://www.mdgmonitor.org/map.cfm?goal=4&indicator=0&cd=, ambas acessadas em 30 de dezembro de 2010.

4. Ver http://www.un.org/millenniumgoals/pdf/MDG_FS_6_EN.pdf acessado em 30 de dezembro de 2010.

5. WHO, World Health Report 2010 – Health Systems Financing: The Path to Universal Coverage, Ed. The World Health Organization, Geneva, 2010.

6. O estudo foi publicado na revsta Health Affairs. Ver Schoen, C.M.S. et al., How Health InsuranceDesign Affects Access to Care and Costs, by Income, in Eleven Countries, Health Affairs Web First, November 18, 2010. Ver http://mobile.commonwealthfund.org/Content/Publications/In-the-Literature/2010/Nov/How-Health-Insurance-Design-Access-Care-Costs.aspx

7. Ver NHS Confederation, Revision of the Operating Framework for the NHS in England, 2010-11, in Briefing 2010, Issue 204,

domingo, novembro 21, 2010

Globalização, Comércio Exterior e Vigilância Sanitária

Ano 5, No. 26, Novembro 2010


André Medici



Desde a 8ª. Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, o Brasil vem progressivamente realizando mega-eventos em saúde. Gerais ou temáticos, esses mega-eventos cristalizam a expressão política e vocalização de interesses da sociedade organizada do setor (profissionais de saúde, usuários, gestores públicos ou privados) permitindo a discussão e disseminação de aspectos técnicos, doutrinários e organizacionais associados à implementação do Sistema Único de Saúde (SUS). Eles tem tido um papel essencial na disseminação da Reforma Sanitária Brasileira e na construção progressiva de um consenso que tem garantido a estabilidade do SUS nos últimos vinte anos. A Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO – é uma das entidades que tem tido papel ativo na organização destes Congressos e na construção desses consensos.

Organizando mega-eventos desde os temas mais gerais, como os de Saúde Coletiva, até os específicos como Recursos Humanos em Saúde, Epidemiologia ou Vigilância Sanitária e Economia da Saúde, a ABRASCO tem se associado a distintas organizações de saúde no Brasil para na busca de parcerias para estes eventos. No campo da Vigilância Sanitária, com o apoio institucional da Agência Nacional de Vigilância em Saúde (ANVISA), a ABRASCO já organizou cinco Simpósios Brasileiros de Vigilância Sanitária (SIMBRAVISA).

O V SIMBRAVISA, realizado entre 13 e 17 de Novembro de 2010, ocorreu na cidade de Belem, capital do Estado do Pará, contando com mais de 2000 participantes. Fui convidado a coordenar de uma mesa sobre Globalização, Comércio Exterior e Vigilância Sanitária durante este evento. Participaram da mesa Neilton Araujo de Oliveira, Diretor Adjunto da ANVISA, José Manoel Cortiñaz Lopez, técnico da Câmara de Comércio Exterior (CAMEX) e Marcelo Liebhart da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (INTERFARMA). Tanto as apresentações como as discussões suscitaram interessantes questões que me levaram a escrever esta postagem.

Globalização e Comércio Exterior

Em poucas palavras, globalização é o aumento da interdependência entre as nações que ocorre através da intensificação da troca de informação entre distintos países, com impactos diretos na vida cultural, nos valores, nos hábitos e costumes, nos padrões de consumo e consequentemente no comércio exterior.

Como resultado no plano do comércio exterior, os países reduzem suas barreiras alfandegárias e tarifárias, aumentam os acordos internacionais e a padronização dos produtos, as exportações e importações, colocando em prática o aproveitamento das vantagens comparativas e competitivas de cada país. As importações/exportações como proporção do PIB tendem a aumentar com impactos importantes na qualificação e especialização dos mercados de trabalho e o direcionamento dos investimentos de infra-estrutura.

A globalização constuma se expandir durante os períodos de prosperidade econômica internacional. Nesse sentido, os efeitos da globalização podem se registrados desde a época dos fenícios, mas tem aumentado vertiginosamente nas últimas décadas com a revolução trazida pelas tecnologias de informação e de comunição on line.

Analogamente, a globalização tende a se retrair nos períodos de crise econômica, e quanto mais profunda são as crises, mas intensa é a reversão dos processos comerciais (e com o tempo, comportamentais) associados à globalização. Portanto, as crises são inimigas naturais dos processos de globalização. Em geral elas aumentam o comportamento defensivo dos países na proteção de seus mercados nacionais de forma a privilegiar a produção doméstica e reduzir as importações. Nos anos mais recentes, de rápida propagação e transferibilidade da informação, conhecimento e tecnologia, os países em desenvolvimento são os que mais ganham com a globalização. São eles que se beneficiam da queda (ainda que parcial) do protecionismo dos países desenvolvidos com o favorecimento e maior exposição de suas indústrias nacionais aos mercados globais, e com o consequente crescimento da qualidade e empregabilidade de sua força de trabalho. Mas as crises também afetam proporcionalmente mais os países em desenvolvimento, com a reversão da globalização. O crescimento do protecionismo dos países desenvolvidos desacelera a dinâmica das indústiras exportadoras nos países emergentes o que nem sempre pode ser contrabalançado pela absorção do excedente de produção pelos mercados internos. Países como a China e o Brasil, que tiveram um crescimento acelerado de suas classes médias consumidoras na última década tem de certa forma ocupado parcelas do mercado interno com a crise financeira que se instalou na economia mundial em 2008, por exemplo.

Uma das perguntas mais frequentes sobre a globalização é associada a sua reversibilidade. A globalização pode acabar? Dependendo da severidade das crises, ela pode ser profundamente afetada. Em distintos momento ao longo da história a globalização se reverteu, trazendo como resultados mudanças nos padrões de consumo e investimento e até mesmo nos paradigmas sociais, econômicos e culturais. Mas sempre ficava algo para ser retomado na próxima onda expansiva da economia, pelo menos no que se refere aos ciclos econômicos de longo prazo (os kondratiefs, em homenagem ao economista que os descobriu, detentor deste sobrenome). Podemos dizer que o que vivemos hoje representa o estágio mais avançado que a globalização já enfrentou na história mundial. As pequenas reversões recentes certamente não ameaçam estruturalmente o estágio de globalização já alcançado pela humanidade.

Uma outra pergunta frequente se associa aos fatores que atrapalham o processo de globalização. Do ponto de vista comercial, os fatores mais comuns são: (a) Movimentos defensivos que estabelecem tarifas comerciais de importação ou exportação. Sempre perdem os países que exportam imposto ou os que são involuntariamente afetados pelo aumento de seus preços finais devido a impostos cobrados por países que importam seus produtos; (b) Desequilíbrios artificiais na taxa de câmbio que reduzem involuntariamente a competitividade do país que tem o câmbio super-valorizado, ou aumentam injustamente a competitividade do país que desvaloriza artificialmente sua moeda; (c) Práticas comérciais não adequadas como dumping, geração de subsídios a exportação e outras que reduzam artificialmente os preços finais dos produtos exportados e (d) taxas elevadas de juros, que costumam afetar negativamente a contração de créditos de curto prazo que auxiliam o financiamento das atividades de exportação e importação.


Efeitos da globalização nas políticas de saúde e vigilância sanitária


Historicamente, a saúde tem sido um dos setores que demandam mais tempo para adaptar-se as mudanças trazidas pela globalização, mas isto, recentemente, tem mudado rapidamente e vários fatores tem contribuido para tal, destacando-se:

(a) a difusão global de tecnologias e protocolos médicos;

(b) o papel das indústrias de medicamentos e equipamentos médicos que tendem a mobilizar recursos mundiais em suas estratégias de pesquisa e na difusão comercial de seus produtos e;

(c) os meios de comunicação de massa e a internet, que colocam nas telas todos os avanços possíveis da medicina que passam a ser objeto de cobiça e de consumo, dado que na sociedade contemporânea a longevidade saudável passa crescentemente a ser uma das maiores aspirações de consumo da humanidade.

Nesta perspectiva, aumenta constantemente o peso dos bens e serviços de saúde nas pautas de importação, aumentando também o papel dos órgãos de vigilância sanitária dos distintos países, como é o caso da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) no Brasil. As tarefas destas agências que se associam aos processos de globalização são:

(a) a conformidade dos produtos e serviços importados com padrões de uso e normas de segurança aceitáveis nacionalmente;

(b) a adaptabilidade destes bens e serviços aos padrões e estruturas de demanda nacional (tanto intermediária como final);

(c) a prioridade dos produtos, estratégias e protocolos importados ou exportados ao quadro epidemiológico nacional e

(d) a sua relação custo-efetividade e, portanto sua sustentabilidade em relação à renda das familias e aos gastos governamentais.

Migrações internacionais, remessas de recursos, intensificação do turismo e de viagens comerciais são fatores que também se intensificam com a globalização, exigindo mudanças nos aparelhos educacionais e de formação profissional e nos sistemas de saúde, que passam a aumentar suas ações de vigilância sanitária e geram acordos internacionais sobre fronteiras saudáveis e normas técnicas de procedimentos de saúde para viagens internacionais. Em épocas de globalização epdiemias (1), especialmente as de fácil transmissão como as gripes de alta letalidade (como aviar, suina, etc.) se tornam um risco que exige medidas especiais de preparação dos sistemas de saúde (2).

Os Desafios da ANVISA frente ao Processo de Globalização

A exposição de Neilton Araujo de Oliveira, concentrou-se na complexidade do papel da ANVISA, entidade marcada pelo controle da produção na área de saude, pelo controle da publicidade e rotulagem destes produtos e pelo controle de seus efeitos antes (registro e certificação) e depois (tecnovigilância e inspeção) de passarem pelo mercado.

A ANVISA é o orgão federal que controla o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS). Esse sistema conta com 3 mil funcionários federais, 2500 nos Estados e cerca de 50 mil nos Municípios Brasileiros. A ANVISA fiscaliza a produção de quase um quarto do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Passam sob o crivo de sua inspeção cerca de 80 mil farmácias, 23 mil empresas cadastradas, 450 fábricas de medicamentos, 4000 empresas de cosméticos, 3,4 mil empresas produtoras de produtos para a saúde, 3000 empresas saneantes, 2000 distribuidoras de medicamentos, 12 mil laboratórios de análises clínicas, 11 mil empresas de radiodiagnóstico, 6,7 mil hospitais, 2,6 mil serviços de fisioterapia, 600 serviços de hemodiálise, 250 empresas de medicina nuclear, 150 de radioterapia, 155 aeroportos, 46 portos e 111 pontos na fronteira nacional.

A ação da ANVISA se estrutura na redução do risco sanitario, o qual decorre de distintas circunstancias associadas a infra-estrutura do setor, aos processos de trabalho em geral e a natureza dos produtos de saúde. Também existe o risco inerente a escolha da tecnologia a ser utilizada em saúde a qual deve ter evidência comprovada para seu registro. Ambos os processos, frente a globalização, tendem a sofrer um maior conjunto de influências externas o que exige novos desafios da ANVISA no âmbito da regulação. Para enfrentar a redução do risco sanitário a ANVISA tem que coletar dados sobre estruturas, produtos e processos, transfor estes dados em informação, através de processos de ordenação e seleção; transformar a informação em conhecimento através da análise e sua compreensão via interpretação e julgar e tomar decisões a partir das evidências encontradas.

Os principais desafios da ANVISA são a modernização dos processos de gestão na administração pública para enfrentar o risco sanitário, o desenvolvimento e aprimoramento do processo regulatório associado a vigilância sanitária e a ampliação e fortalecimento da participação e controle social nestes processo regulatório. A globalização potencializa ainda mais estes desafios, dado que eleva o risco sanitário frente a necessidade de disseminar medidas regulatórias de grande interesse público e impacto nacional, frente aos desafios da globalização, à velocidade na geração de novos produtos, aos conflitos entre o interesse nacional e o internacional e às assimetrias culturais e políticas das distintas regiões. A necssidade de aplicar a regulação, através de fiscalização, leva a ANVISA a um esforço permanente de comunicação com a sociedade e com as autoridades e com organismos internacionais. E por este motivo que a ANVISA vem se integrando com organismos internacionais (OPAS, BVS, OECD) com processos de harmonização internacional de legislação sanitária, capacitação de agentes de vigilância, etc.

A exposição de José Manoel Cortiñaz Lopez da CAMEX enfatizou o desafio em harmonizar procedimentos para a melhoria da logística das empresas brasileiras que exportam para o mercado internacional de saúde. Observou que grande parte da melhoria da competitividade destas empresas dependem da ação da ANVISA.

A CAMEX foi criada em junho de 2003 pelo Decreto 4732. Sua função básica é coordenar a atuação dos órgãos federais vinculados com registros, anuências e controles em operações de importação e exportação. Seu objetivo é melhorar os aspectos logísticos das empresas que operam com contratos de comércio exterior, com vistas a transformar vantagens comparativas da produção brasileira em vantagens competitivas.

A CAMEX é gerida por um Conselho que envolve 7 Ministérios, mas o Ministério da Saúde não é um desses órgãos, apesar de seu grande peso no registro e licenciamento de produtos de saúde. As decisões da CAMEX se tomam através de um grupo técnico de facilitação do comércio exterior (GTFAC). A ANVISA tem sido convidada a participar das reuniões do GTFAC, mas como observadora. A atuação do GTFAC e da CAMEX, tem sido bastante eficiente, e resultou na redução de 29% das anuências de exportação e no aumento de 1,4% das anuências de importação.

A CAMEX tem sugerido aumentar a participação da ANVISA nos processos de melhoria das cadeias logísticas no setor saúde. Os principais problemas identificados pela CAMEX se associam aos seguintes fatos: (a) a legislação setorial de regras para licenciamento de produtos no Brasil é dispersa e defasada; (b) existe, por um lado, repetidos processos que poderiam ser simplificados, ao lado de incompatibilidades entre as exigências de múltiplos órgãos; (c) os procedimentos são complexos e burocráticos; (d) as intervenções dos distintos órgãos não são coordenadas gerando, em muitos casos, uma sequência inadequada das operações; (e) a logística costuma ser onerosa e ineficiente.

Todos estes temas são de grande importância, dado que a globalização dificilmente irá se reduzir nos próximos anos, gerando novos desafios onde as questões de harmonização interna e externa das regulações e da logística dos produtos de saúde e seu impacto nas cadeias produtivas internas do setor deverão ser cada vez mais relevantes.

Notas

(1) Sobre o impacto da globalização nas doenças transmissíveis, ver Medici, A.C., “As Infernais Doenças Democráticas” in Revista Insight Inteligência, Rio de Janeiro (RJ), Jul-Set de 2003, pp. 154-179. O artigo pode ser baixado na página: http://www.insightnet.com.br/inteligencia/22/PDFs/1122.pdf

(2) Sobre o tema da gripe aviar e seus efeitos no Brasil ver Medici, A.C., “A Influenza e a Capacidade de Resposta dos Ministérios da Saúde: O Brasil Está Preparado?”, in Revista Interessa Nacional, No. 7, Outubro-Dezembro de 2009, Sao Paulo (SP), 2009, pp. 65-76. O artigo podera ser encontrado em: http://interessenacional.com/artigos-integra.asp?cd_artigo=56

quarta-feira, novembro 03, 2010

Autonomia de Gestão de Hospitais Universitários Federais: O Caso do HCPA

Ano 5, No. 25, Novembro 2010


André Cezar Medici

Introdução

No dia 5 de outubro passado participei de uma interessante mesa redonda em Porto Alegre sobre modelos de assistência, ensino e pesquisa no âmbito dos Hospitais Universitários. A mesa ocorreu como parte da 30ª. Semana Científica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), vinculado a Universidade Federal do Rio Grando do Sul (UFRGS), a convite do Dr. Amarílio Vieira, atual Presidente do HCPA. A mesa redonda tratou de temas interessantes sobre o futuro dos hospitais universitários, ao nivel internacional, e também as perspectivas nacionais que podem ser vislumbradas a partir da promulgação do Decreto 7082 de 27 de Janeiro de 2010, que institui o Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais (REHUF) e dispõe sobre o financiamento compartilhado da operação destes hospitais entre os Ministérios da Educação e da Saúde, disciplina o regime da pactuação global das ações de educação, capacitação, pesquisa e saúde com esses hospitais e avança em perspectivas que permitam melhorar sua governança e a autonomia de gestão.

Os temas acima dariam, como dizia a minha avó, panos para mangas, dado que invocariam discussões que tem sido represadas nestes últimos anos, em que pesem as intenções claras do governo federal em derrubar os entraves burocráticos e corporativos que dificultam o funcionamento eficiente dos hospitais universitários. No entanto, preferi enfatizar nesta postagem o caso bem sucedido da gestão do HCPA, o único hospital univesritário federal que é uma Empresa Pública, onde algumas lições poderiam ser aprendidas para orientar o futuro dos hospitais universitários brasileiros. Muitas vêzes os exemplos que temos que buscar não estão no exterior, mas em nossas próprias barbas. Olhemos, portanto, para o nosso próprio quintal.

Um modêlo único no meio dos hospitais universitários federais

O HCPA, embora faça parte do conjunto de hospitais universitários federais, tem características bastante peculiares, a começar pelo seu modelo jurídico institucional. Ele é o único hospital federal que se estabeleceu desde sua criação como como Empresa Pública, o que foi configurado pela Lei 5.604 de 2 de setembro de 1970, tendo seu estatuto aprovado pelo Decreto 68.930 de julho de 1971. A criação do Hospital foi o resultado do trabalho de uma Comissão Especial nomeada pela Reitoria da UFRGS presidida pelo médico e professor Rubens Mário Garcia Maciel, o qual, segundo relatos, sempre se preocupou em viabilizar um modelo de gestão hospitalar que se diferenciasse pela melhor qualidade.

Este modelo apresentou ainda vários aperfeiçoamentos gerenciais introduzidos nos anos noventa, quando era presidente do HCPA o Dr. Carlos César Silva de Albuquerque e Vice-Presidente administrativo o Prof. Alceu Alves da Silva. O modelo de gestão a partir dos anos noventa passou a centrar-se no gerenciamento profissionalizado com atuação multiprofissional, ordenado horizontalmente e voltado para a sustentação das atividades finalítiscas, tendo como prioridades o controle das atividades operacionais, os indicadores de desempenho, a captação dos recursos e o acompanhamento das despesas.

Também se introduziu, no processo de gestão, uma metodologia de planejamento estratégico e uma missão institucional baseada nos seguintes princípios diretivos: satisfação do cliente, valorização dos recursos humanos, avaliação da qualidade e produtividade, valorização da imagem institucional, inovação, integração das atividades de assistência-ensino-pesquisa e resultados financeiros e sociais, sendo o lucro considerado resultado do esforço de todos e totalmente direcionado para o investimento social. Com base nestes princípios foram formuladas as seguintes diretrizes:

• O desenvolvimento e a valorização dos recursos humanos, com programas de qualificação, valorização e fixação de quadros;

• Controle das áreas de maior receita e despesa, através da sua aproximação com as áreas fim; da sua administração por profissionais técnicos dessas áreas; do faturamento como gerência encarregada da captação de recursos; e do controle de despesas a partir da informatização e da descentralização das atividades do grupo de materiais junto às áreas fim;

• Adequação da estrutura organizacional às atividades-fim, com a criação do Grupo de Pesquisa e Pós-Graduação — que fornece suporte administrativo e técnico aos pesquisadores e atua, 17 na obtenção de financiamento à pesquisa — e dos Grupos de Assistentes Executivos — que atuam na promoção da integração entre o ensino e as atividades assistenciais do HCPA;

• Plena utilização dos recursos físicos e tecnológicos como política de investimentos, com a formulação e atualização permanente de um Plano Diretor de Obras e Equipamentos, a criação de uma Comissão Permanente de Investimentos para decidir as prioridades de aquisição e o estabelecimento de um sistema de avaliação de desempenho baseado na performance operacional dos diferentes serviços;

• Estímulo à atividade assistencial, mediante remuneração aos docentes médicos, odontólogos e de enfermagem;

• Contrato de gestão, que tem por base o incentivo à produtividade e o controle das despesas, através de acordos internos negociados pelos Serviços, com o acompanhamento da Comissão Permanente de Avaliação do Contrato de Gestão;

• Gerência do leito, destinada a agilizar a utilização dos leitos, com controle realizado pelo Serviço de Higienização, mediante tempo pré-estabelecido para a tarefa e liberação efetuada através de sistema automatizado;

• Qualidade dos serviços de hotelaria, destinados a oferecer aos pacientes maior conforto e assistência integral, por meio da adoção de ações assemelhadas à administração hoteleira de alto padrão, que atingem dimensões como variedade e qualidade dos cardápios, apresentação e decoração dos ambientes, leitos e roupas, e tratamento do lixo voltado para o combate à infecção hospitalar.

O sucesso das transformações feitas nesta época no HCPA levaram o Dr. Carlos Albuquerque a ser convidado para o cargo de Ministro da Saúde durante o governo Fernando Henrique Cardoso. O Prof. Alceu Alves da Silva, que também o acompanhou na gestão do Ministério da Saúde, é atualmente Diretor do Hospital Mãe de Deus, um dos melhores hospitais privados de Porto Alegre, onde também vários processos inovadores de gestão vem sendo introduzidos.

Já são portanto quarenta anos em que o hospital é administrado sob um modelo jurídico institucional que garante autonomia de gestão, flexibilidade na contratação de pessoal, permitindo manter recursos humanos qualificados para as atividades assistenciais e complementares ao ensino e a pesquisa. O modelo jurídico de empresa pública permite que o hospital possa ter mais autonomia para a celebração de convênios e contratos, a gestão dos processos de compra e de financiamento, a organização de sistemas contábeis que permitam o levantamento e acompanhamento constante de dados de custo, de resultado e de compromissos institucionais com seus financiadores e com a população.

Ainda que os professores que trabalham ao hospital sejam vinculados ao Regime Jurídico Único (RJU), o hospital tem seu corpo clínico e de funcionários contratados sob o regime de CLT. A instituição conta atualmente com 4,3 mil funcionários, além de 290 professores da UFRGS, 340 médicos residentes e cerca de 1,6 mil estagiários. Ainda que a folha de pessoal seja basicamente de funcionários em regime de CLT, servidores públicos federais da administração direta ou indireta poderão ser requisitados pelo HCPA exclusivamente para o exercício de funções técnicas.

Como empresa pública, ainda que o hospital receba recursos federais para folha de pagamento, encargos sociais, residência médica e investimentos, a maior parte dos recursos do Hospital provém de serviços assistenciais prestados ao SUS e, em menor parte, de convênios privados com planos de saúde e outras entidades. Como empresa pública, o HCPA tem que submeter suas contas de cada exercício à supervisão do MEC e ao Tribunal de Contas da União (TCU). Seu modelo jurídico-institucional também garante isenção de tributos federais.

A autonomia de gestão brindada ao hospital permite com que ele garanta de forma mais ampla que os demais hospitais universitários, sua atualização tecnológica, gerencial, de ensino e de pesquisa. Não é por outro motivo que o HCPA conta com instalações amplas, modernas e recursos tecnológicos que o permite manter atendimento em 62 especialidades oferecendo oportunidades e conforto que poucos hospitais que atendem a rede SUS conseguem manter, fatores que muitos hospitais univeritários federais buscam alcançar com menores níveis de sucesso.

Instalações e serviços prestados pelo HCPA

O HCPA conta com 750 leitos, 119 consulorios ambulatoriais, CTIs neonatal, pediátrica e de adultos, centro cirúrgico para pacientes internados e ambulatorial, centro obstétrico e berçario, serviços de emergência para adultos, pediatria e obstetrícia, unidades de quimioterapia e radioterapia, uma diversificada gama de serviços diagnósticos, incluindo exames clínicos e de imagem, serviços de hospital-dia, centro de atenção psicosocial, unidades básicas de saúde, salas de recreação terapeutica, casas de apoio para pacientes e familiares, centros de pesquisa básica e aplicada (pesquisa clínica), instalações diversas para o ensino, como 7 auditórios, um anfiateatro e 37 salas de aula.

Com todas estas instalações, o hospital oferece atendimento em 62 especialidades médicas em sua quase totalidade para pacientes do SUS, buscando as melhores práticas para e os melhores parâmetros de segurança na atenção brindada aos seus pacientes. Por este motivo, o hospital já foi acreditado no nivel 2 da ONA e atualmente se encontra em processo de acreditação internacional através da CBA-JCI (1).

O HCPA realiza anualmente cerca de 552 mil consultas, 29 mil internações, 41 mil procedimentos cirúrgicos, 245 mil procedimentos ambulatoriais, 2,5 milhões de exames, 4 mil partos, 94 mil sessões terapêuticas e 370 transplantes.
Mas também atua fortemente no campo da humanização do atendimentos, oferencendo ações de acompanhamento aos portadores de distintas doenças e aos seus familiares, promovendo e coordenando reuniões com grupos de auto-ajuda e promovendo assistência diversificada de apoio social a mais de 7,6 mil pessoas por ano. Por todos estes motivos, o hospital vem sendo considerado por levantamentos da Secretaria Estadual de Saúde como um dos melhores hospitais do Rio Grande do Sul desde 2005, quando começaram levantamentos para tal fim. O Hospital tem ganho vários prêmios na área de responsabilidade social corporativa pela Associação Brasileira de Recursos Humanos e pela Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.

Ensino e Pesquisa no HCPA

O HCPA tem um papel crucial na formação de profissionais de saúde no Estado do Rio Grande do Sul, oferecendo anualmente oportunidades para que 2,2 mil acadêmicos em dez cursos na área de saúde possam completar sua formação prática e acadêmica, sob a supervisão de renomados professores. Oferece ainda estágios a 1,6 mil estudantes em diversos cursos. Para profissionais de nível médio, o HCPA dispõe de uma Escola Técnica de Enfermagem que atua em parceria com a Escola Estadual Técnica de Saúde, oferecendo uma mão de obra de boa qualidade técnica ao nível médio em saúde, ainda escassa para as necessidades do país.

Já na área de pesquisa, o Hospital conta com 24 laboratórios que permitam realizar estudos e pesquisas em tecnologia de ponta na área de saúde. Cerca de 700 projetos de pesquisa são submetidos anualmente à avaliação das Comissões Científica e de Ética do Hospital. Com a necessidade crescente de gerar avançados estudos em efetividade clínica e medicina baseada em evidência, o HCPA construiu recentemente um edifício onde atua o Centro de Pesquisa Clínica, que centraliza atividades de pesquisa clínica e abriga núcleos de referência em pesquisa.

Quatro institutos nacionais de ciência e tecnologia (INCT) financidados pelo CNPq são coordenados pelo HCPA nas áreas de Medicina Translacional, Genética Médica Populacional, Avaliação de Tecnologias em Saúde e Hormônios e Saúde da Mulher. A Semana Científica, da qual participei na primeira semana de outubro, faz parte dos esforços de disseminação desta grande quantidade de conhecimento científico gerada pelo HCPA. Através deste evento se apresentam cerca de mil trabalhos anualmente, os quais são também divulgados pela Revista Científica do HCPA.

Vale destacar a importância do INCT de Avaliação de Tecnologias mantido pelo HCPA, dirigido pela Profa. Carisi Anne Polanczyk, cujos objetivos são consolidar um modelo institucional de pesquisa clínica baseado nas melhores práticas de pesquisa; estabelecer estratégias colaborativas de pesquisa para a proposição de projetos que atendam as prioridades definidas pelos órgãos governamentais; desenvolver e capacitar recursos humanos para apoio à pesquisa clínica em âmbito nacional e desenvolver e validar estratégias de gestão para unidades de pesquisa clínica. Este INCT atualmente colabora com a Agencia Nacional de Vigilancia de Saude (ANVISA) e esta integrado à Rede Nacional de Pesquisa Clínica (RNPC) e a Rede Brasileira de Avaliação de Tecnologias de Saúde (REBRATS).

Uso de Tecnologias de Informação

Desde os anos oitenta, o HCPA vem investindo pesadamente no uso de sistemas de informação gerencial informatizados como base para sua gestão. Foi neste contexto que foi criado o Aplicativo de Gestão Hospitalar, um grande sistema de informações multi-modular, que integra várias funcionalidades de gestão. O aplicativo iniciou a informatização nos setores de controle e faturamento, passando progressivamente para as áreas de registro de pacientes, gestão clínica, processos de apoio logístico e outros. No inicio da presente década reformulou todos os aplicativos existentes, integrando-os em uma plataforma Oracle dando lugar a uma arquitetura cliente-servidor numa rede de alta velocidade e eficiência de resposta.

O AGH integra quase 50 módulos aplicativos em áreas de planejamento estratégico do hospital, assistência e apoio a assistência, gestão clínica, ensino, pesquisa, administração e gerência de informações, hardware e software. Vários sistemas essencialmente administrativos também se acham disponíveis, tais como os existentes nos setores de contabilidade, jurídico, pessoal e serviços gerais. Todo o hospital está informatizado, contando com 2 clusters intel e 35 servidores auxiliares, bancos de dados em oracle, 1700 microcomputadores e 400 impressoras. Integra atividades de telemedicina e certificação digital de imagens.

O ambiente denominado internamente de IG (Informações Gerenciais) fornece informações a partir de um data warehouse (banco SQL Server) construído inicialmente com a assessoria da Processor. Os indicadores obtidos a partir de datamarts com informações financeiras, de suprimentos, de produção e qualidade assistencial, vêm gradativamente norteando decisões estratégicas do HCPA. Também integra sistemas de WebTV, que realizam transmissão ao vivo, via Intranet, de conferências clínicas e eventos, disponibilizando-os também em acervo para acesso remoto.

É por este motivo que o HCPA foi escolhido pelo MEC para ser o modelo para um sistema de informação gerencial de saúde que será aplicado progressivamente em toda a rede de hospitais universitários federais. Este processo, chamado de Aplicativo de Gestão dos Hospitais Universitários (AGHU) está sendo desenvolvido em parceria entre o MEC e o HCPA, havendo uma migração dos softwares já existentes em base oracle para base web. Assim, através da Portaria nº 878 de 16 de setembro de 2009, o MEC criou o Comitê Gestor do Projeto AGHU, com objetivo de modernizar o modelo de gestão dos Hospitais Universitários Federais. Uma das principais atribuições deste Comitê é realizar o planejamento e acompanhamento do desenvolvimento e implantação do AGHU. Ele está composto por 4 representantes do MEC, 5 representantes do HCPA, 2 reitores representando a Associação dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior – ANDIFES e 2 diretores de Hospitais Universitários. A equipe técnica que está atuando diretamente no desenvolvimento do software é composta por profissionais de tecnologia da informação que estão atuando tanto em Brasília (DTI/MEC – 7 profissionais) quanto em Porto Alegre (HCPA – 10 profissionais). As duas equipes estão sendo expandidas e já em dezembro de 2009 o AGHU contará com 11 profissionais na DTI/MEC e 32 profissionais trabalhando no HCPA. Paralelamente, está sendo organizada no HCPA a força de trabalho que irá se responsabilizar pela capacitação de todos os Hospitais Universitarios Federais no modelo de gestão selecionado pelo MEC.

Considerações Finais

O sucesso do HCPA é resultado de um modelo de autonomia de gestão, que combina o espírito público de melhor atender o SUS com a gestão eficiente dada pela autonomia que somente uma instituição desprovida das amarras burocráticas da administração pública pode ter. Além do benefício que traz aos pacientes e ao desenvolvimento da ciência e tecnologia na área de saúde no Brasil, o hospital beneficia a formação profissional e traz a alegria de jóvens profissionais que podem inovar e ser recompensados em seus esforços pela sua competência e criatividade.

Nesse sentido, existe muito espaço para que outros hospitais públicos, univesitários ou não universitários, possam inovar nos temas de governança e gestão para cumprir a missão institucional de brindar aos usuários do SUS um conjunto de instituições de saúde que tenham foco no paciente e premiem o esforço e a inteligência de profissionais dedicados que não considerem seu importante trabalho como apenas mais um emprego.



NOTAS
(1) Sobre a atuação da ONA, da CBA e da JCI, leia a postagem deste blog do dia 21 de setembro de 2010.

terça-feira, outubro 12, 2010

Rankings Hospitalares como Indutores da Qualidade ao Paciente

Ano 5, No. 24, Outubro 2010


André Medici




Por que divulgar rankings hospitalares?

Nos últimos anos várias iniciativas voltadas para elaborar rankings sobre qualidade dos hospitais começaram a ser implementadas, em sua maioria por entidades independentes, com o objetivo de informar o consumidor e auxiliá-lo a tomar melhores decisões em como investir em sua própria saúde. Em se tratando de hospitais, a avaliação de qualidade não é trivial. Ela deve tomar em conta vários aspectos e muitas vezes é difícil chegar a consensos sobre quais são os critérios mais relevantes.

Diferentemente dos esforços de avaliação para a acreditação, os quais buscam apenas conhecer se um dado conjunto de pre-requisitos para o funcionamento adequado dos hospitais está sendo cumprido, os rankings tem por objetivo classificar os hospitais por sua excelência associada a uma série de atributos consensuados por especialistas. Este esforço, no presente momento, tem sido realizado por revistas como a U.S News, nos Estados Unidos e, mas recentemente pela Revista América Economia, sediada no Chile.

A presente edição deste blog, em continuidade a anterior, analisa a elaboração de avaliações independentes sobre a qualidade dos hospitais. Alguns aspectos são importantes para serem considerados neste aspecto: (a) Quem organiza e porquê; (b) Quais os critérios para a escolha; (c) Qual é a metodologia utilizada para a elaboração dos rankings; (e) Quem se beneficia com os rankings.

O objetivo da produção e divulgação dos rankings de hospitais é oferecer aos usuários de serviços de saúde e à sociedade civil, informações técnicas balizadas para orientar a escolha dos indivíduos e famílias que necessitam de assistência hospitalar e tratamento para distintos problemas de saúde. Anteriormente a existência desses rankings, a escolha de um hospital, além de representar um risco, era cheia de subjetividades. No passado, mas em muitos casos até hoje, a escolha de um hospital se baseava em recomendações do médico da família, parentes, amigos ou mesmo propagandas difundidas pela imprensa, escrita, televisionada ou falada. A existência de rankings representa um grande avanço na sistematização de informações sobre qualidade clínica e resolutividade hospitalar que muitas vêzes não estão disponíveis num mercado, como o de saúde, baseado em informação distorcida e assimétrica.

A participação no processo de avaliação de hospitais para efeitos de estabelecer rankings tem que ser voluntária, seja através da aceitação a convites previamente enviados, seja através de cartas de manifestação de interesse aos organizadores dos rankings pelos hospitais, como condição de entrada e aceitação ao processo de avaliação conduzido pela instituição avaliadora, de acordo com as metodologias estabelecidas. Os rankings devem utilizar várias dimensões que permitam balizar o processo de avaliação da qualidade hospitalar. Entre estas dimensões poderiamos considerar temas como a infra-estrutura necessária para o cuidado do paciente, a organização da entrega dos serviços, os resultados assistenciais conseguidos pelo hospital, e a segurança dos pacientes quando se encontram utilizando os serviços hospitalares. Em linhas gerais, estas dimensões são as mesmas utilizadas nos processos de acreditação que descrevemos na edição anterior deste blog para o tema de acreditação, só que na acreditação não está em jogo a comparação entre hospitais, mas somente o alcance ou não de um mínimo necessário para ser considerado apto a prestar serviços acreditados de qualidade.

A dimensão infra-estrutura necessária para o cuidado ao paciente se refere à intensidade do uso de pessoal não-médico qualificado, como enfermeiras e outros profissionais auxiliares de nivel superior, ao uso de tecnologias apropriadas ao cuidado do paciente, deixando de lado aquelas que são caras e inúteis, e ao reconhecimento externo de agências acreditadoras de grande prestígio nacional, seja em áreas especializadas, seja em aspectos gerais. Esta dimensão tem que ser ponderada pelo uso de variáveis associadas a quantidade da produção clínica, dado que somente hospitais com certo volume de serviços podem ter a experiência necessária para inovar e manter a busca pela excelência e pela qualidade.

A dimensão organização para a entrega dos serviços, avalia, através da opinião de profissionais em instituições reconhecidas no mercado, a qualidade do diagnóstico, do tratamento, da prevenção e dos cuidados para melhor informar e educar o paciente quanto à seu estado de saúde e quanto às perspectivas para seu tratamento, colocando-o em condição de assumir parte da responsabilidade em manter a sua saúde após sair do hospital. A reputação de um hospital estará em jogo sempre quando esta organização é insufiente para garantir estes aspectos.

A dimensão resultados alcançados pelo hospital deve ser medida através de indicadores finalísticos de saúde, tais como taxas de mortalidade dos pacientes do hospital, ajustadas pelo seu risco de entrada, taxas de reinternação após a primeira alta, e assim por diante. As taxas de mortalidade devem ser medidas com base em indicadores de padronização da análise, como os grupos relacionados de diagnóstico (DRGs) que aglomeram causas ou diagnósticos de internação associados a escolha de tratamentos esperados padronizados. No entanto, nem todos os hospitais utilizam os sistemas de DRGs, especialmente em países em desenvolvimento, o que dificulta ter uma medida padronizada para resultados hospitalares em regiões como a América Latina.

Por fim, a dimensão de segurança dos pacientes esta associada a capacidade que tem o hospital em prevenir riscos decorrentes de falhas na estrutura e no processo. A Organização Mundial da Saúde, conjuntamente com a Joint Commission International desenvolveram temas associados a segurança do paciente, o que é um tema que trataremos em detalhe em edições futuras deste blog.

Nos Estados Unidos, a iniciativa mais conhecida para a classificação de hospitais em rankings é a realizada pela U.S News & World Report´s. Ela se intitula Melhores Hospitais. O ranking dos melhores hospitais norte-americanos começou a ser divulgado anualmente desde 1990 pela referida revista. Entre 1993 e 2004, o ranking passou a ser realizado com base em pesquisas contratadas pelo National Opinion Research Center da Universidade de Chicago. A partir de 2005 a metodologia para cálulo do ranking passou a ser desenvolvida pela Research Triangle Institute - RTI International, uma das maiores empresas de pesquisa social norte-americanas, criada em 1959 e situada no Estado da Carolina do Norte.

Além da US News, outras instituições buscam estabelecer metodologias para classificar hospitais de excelência. Uma metodologia mas recente tem sido a publicada pela Health Grades (1). Dada a existência de variações de qualidade entre os prestadores no sistema de saúde dos EUA, todos os anos Health Grades estuda o impacto dessa variação nos serviços hospitalares da população beneficiária do MEDICARE, para variáveis associadas a morbidade e mortalidade. Esta metodologia, que já constroi rankings anuais desde 2003, se baseia em informações de hospitais que prestam serviços para o sistemas de MEDICARE para um universo de 41 milhões de pessoas. Os dados se baseiam em informes sobre 46 procedimentos e diagnósticos, produzindo comparações estatísticas relacionadas.

A idéia de fazer um ranking separado para o MEDICARE é defendida pelo fato de que a população beneficiária deste programa, por apresentar riscos diferentes aos da média da população norte-americana, necessita ser avaliada de acordo com critérios especiais. A pontuação de cada hospital, medida por estrelas, irá depender do desempenho de cada hospital, sendo atribuido: (a) cinco estrelas, se o desempenho atual foi melhor que o esperado e se a diferença de desempenho foi estatisticamente relevante; (b) tres estrelas, se a diferença de desempenho não foi estatisticamente diferente do que era esperado e (c) uma estrela, se a diferença foi abaixo do que era esperado. Em geral, 70% a 80% dos hospitais em cada procedimento ou diagnóstico tem sido classificado como 3 estrelas, ou seja, na média. O restante tende a se distribuir igualmente (entre 10% e 15%) entre uma (abaixo da média) e cinco estrelas (acima da média), de acordo a uma curva de Gauss.

O relatório da Health Grades para 2010 mostrou que o desempenho dos hospitais quanto à mortalidade hospitalar ajustada por risco melhorou 11% entre 2006 e 2008. Entre 17 procedimentos e diagnósticos estudados, existe 72% menos chance de morrer em um hospital considerado 5 estrelas do que em um hospital considerado uma estrela. A chance de morrer em um hospital de 5 estremas é também 51% mais baixa do que a da média dos hospitais norte-americanos que prestam serviços para o MEDICARE. Os hospitais cinco estrelas salvaram, nestes 17 procedimentos e diagnósticos, 224,5 mil vidas de pessoas associadas ao MEDICARE entre 2006 e 2008, sendo que 57% destas vidas foram salvas em quatro diagnósticos: sepsis, peneumonia, complicações cardíacas e problemas respiratórios.

Rankings Hospitalares na América Latina

No caso do ranking da América Latina, a experiência foi organizada pela Revista América Economia, no ano de 2009, com vinte instituições participantes, e se repetiu em 2010, com 35 instituições hospitalares. Foi baseada em um concurso, voluntário de hositais latino-americanos aberto para qualquer hospital ou clínica de alta complexidade que preste serviços em uma ampla gama de especialidades médicas na Região, a partir dos seguintes critérios de entrada: a) tenha sido referenciado pelos Ministérios da Saúde nos países em que se localizam (2) e; b) constem nas listas de hospitais acreditados por instituições nacionais e internacionais (como a JCI)em cada um dos países considerados.

Podem participar hospitais de distintas naturezas jurídicas (públicos, privados, filantrópicos, universitários). A revista, em geral, pré-convida hospitais para participar, mas somente aqueles que respondem positivamente e enviam as respostas, preenchendo os questionários iniciais, são avaliados com o propósito de serem incluídos no ranking. Assim, em 2009, partindo de um conjunto de quase duzentos hospitais, foram selecionados 33 hospitais e clínicas, os quais receberam um questionário com informações que deveriam ser apresentadas com base na situação registrada em 2008. Deste exercício foram selecionados cerca de 20 hospitais para a lista de 2009, sob a qual se estabeleceu o ranking.

Para balizar as informações de qualidade destes hospitais, foram consultados cerca de 700 médicos especialistas em 180 hospitais destes países. A metodologia que orientou a elaboração dos questionários aos hospitais e aos médicos foi baseada em seis dimensões com seus respectivos pesos(3), a saber: segurança do paciente (20%), qualidade dos recursos humanos (20%), gestão do conhecimento (20%), capacidade técnica (20%), eficiência (10%) e prestígio institucional (20%).

Cada uma destas dimensões envolvia um conjunto de variáveis. O tema da segurança do paciente envolve questões como a existência de comitês de ética nos hospitais, se os hospitais estam acreditados por algum sistema nacional ou internacional, o uso sistemático de guias clínicas e protocolos, as práticas vigentes de registro de dados e os sistemas de informação sobre o paciente, os sistemas de turnos e jornadas de trabalho existentes no hospital para dar conta das urgências, os sistemas de controle de infecção hospitalar, as taxas de infecção nosocomial registradas no hospital, e a existência de sitios webs onde fossem informados, de forma transparente, dados sobre eventos clínicos adversos, dados financeiros e informações sobre custos e preços praticados pelos referidos hospitais.

No que se refere ao tema de qualidade dos recursos humanos se considerou o grau de formação médica, incluindo as especialidades adquiridas através de cursos especiais e de pós-graduação, a proporção de médicos com dedicação exclusiva ou trabalhando mais de 6 horas por dia na instituição, a porcentagem de enfermeiras graduadas no corpo de funcionários com dedicação exclusiva e trabalhando mais de seis horas por dia e outros.

No que tange ao tema de gestão do conhecimento, se considerou a natureza e qualidade dos processos de ensino, pesquisa e publicações em revistas especializadas indexadas gerados no interior do hospital, a afiliação do hospital a outras instituiçõs científicas que possam compartilhar conhecimento com o hospital e a qualidade do sistema de difusão de conhecimento, tanto para o corpo clínico (intranet, websites, volume de informações disponíveis na biblioteca do hospital, etc.)

Quanto a dimensão de capacidade técnica, foram consideradas variáveis para medir o porte e a complexidade do hospital, tais como o número de leitos ativos de cada hospital, o número de altas em relação às entradas, a taxa de permanência, o número de especialidades médicas oferecidas, a quantidade de salas de cirurgias e a proporção de altas cirúrgicas em relação às entradas, o total de exames realizados, os serviços de apoio clínico existentes (diálise, nutrição, psicologia, oncologia, transplantes, farmácia, laboratórios existentes), as relações quantitativas como número de médicos por leito ou de enfermeiros por leito, etc.

No que se refere a dimensão de eficiência, se considerou varíaveis que permitissem avaliar a qualidade a partir de um uso mais racional dos recursos, tais como eficiência clínica (taxa de ocupação, existência de centros de qualidade e desenvolvimento da medicina baseada em evidência), uso de tecnologia da informação e eficiência financeira, através de indicadores de rentabilidade, liquidez, faturamento, endividamento e rentabilidade por empregado.

Por fim, para medir a variável de reputação institucional foram realizadas entrevistas medindo como o hospital era considerado nacional e internacionalmente quanto a sua reputação e qualidade por pares, gerentes hospitalares, usuários, etc.

Entre 2009 e 2010, o número de hospitais selecionados neste ranking passou de 20 para 35. Abaixo estão listados, de acordo com a metodologia e critérios indicados, os 10 primeiros hospitais no ranking proposto pela Revista Latino América Economia.


Os dez Melhores Hospitais da América Latina
Ranking da Revista América Economia – 2009 e 2010
Fonte: Revista America Economia, 2009 e 2010.




Dado que o ranking da Revista América Economia está apenas começando (tem somente dois anos de funcionamento), em comparação ao da US News que começou em fins dos anos oitenta, é possível que, nos próximos anos, venha a aumentar o número de hospitais que queiram participar voluntariamente do esforço. Afinal de contas, é a participação voluntária dos hospitais neste processo é a melhor estratégia para que a avaliação dos hospitais possa evoluir, aumentando a informação dos consumidores, orientando melhor as escolhas de hospitais na América Latina e contribuindo para uma concorrência saudável entre hospitais de excelência que só beneficia aos cidadãos.

O exercício voltado para realizar rankings em hospitais não se esgota nas experiências acima descritas. O Laboratório de Cibermétrica do Conselho Superior de Pesquisa Científicas (CSIC), ligado ao Ministério da Educação da Espanha, desenvolve, desde 2006, um ranking associado ao uso de qualidade de tecnologia de informação em hospitais, ao nivel mundial, baseado nas páginas webs de vários hospitais. Este esforço também parece promissor dado que cada vez mais a qualidade dos processos de tecnologia de informação utilizados nos hospitais é um fator condicionante da qualidade da atenção hospitalar. Neste índice vários hospitais brasileiros foram incorporados (4).

O esforço de avaliação de hospitais é uma condição inexorável para a melhoria da qualidade da oferta hospitalar em qualquer país. Nesse sentido, seria muito bom para o Brasil começar a instituir processos similares, organizados pela sociedade civil ou por órgãos independentes do Governo. Este esforço não deve parar, dado que só através dele se poderá aumentar a transparência em estimular os hospitais brasileiros a melhorar o produto que estão oferecendo para a sociedade, dando mais valor à cada real gasto com assistência médica no Brasil, tanto no setor público como no setor privado.

Notas

(1) Health Grades Inc. (2009), Health Grades America´s 50 Best Hospitals Report., Publicado em http://www.healthgrades.com/business/img/Americas50BestHospitalsReport2009.pdf. Ver http://www.healthgrades.com/cms/ratings-and-awards/2010-Fall-Ratings-Announcement.aspx.

(2) Foram consultados os Ministérios da Saúde dos seguintes países: Argentina, Brasil, Colômbia, Cuba, Chile, México, Peru e Venezuela, os quais informaram, de acordo com as solicitações da Revista América Economia, sobre as organizações hospitalares que pelo seu prestígio local, qualidade e variedade das prestações médicas seriam consideradas as melhores de seus países.

(3) Informações detalhadas sobre a pesquisa, o ranking e a metodologia utilizada pela Revista podem ser encontradas em http://www.americaeconomia.com/negocios-industrias/los-35-de-la-fama-conozco-el-ranking-de-los-mejores-hospitales-y-clinicas-de-lat. Vale mencionar que a metodologia foi elaborada sob a consulta de um painél de especialistas latino-americanos especializados em gestão de hospitais, composto por Gabriel Bastías (Universidade Católica do Chile), Germán Gonzáles (Universidade de Antióquia, Colombia), Rafael Gonzáles (UNAM, Mexico), Rodolfo Quirós (Universidade Católica, Argentina), Ana Maria Malik (Fundação Getúlio Vargas, Brasil), Gonzalo Vecina (FSP-USP, Brasil) Marcos Vergara (UCHILE, Chile).

(4) Ver http://hospitals.webometrics.info/

terça-feira, setembro 21, 2010

Acreditação, Ética e Cidadania como Processos Indutores da Qualidade Hospitalar

Ano V, No. 23, Setembro 2010


André Cezar Medici



Este é o primeiro de dois artigos que abordam alguns fatores indutores da qualidade hospitalar. Trata do tema da acreditação como um processo de melhoria da qualidade hospitalar que induz o cidadão a tomar de decisões informadas sobre que instituição de saúde deve buscar. O segundo artigo, a ser publicado na próxima postagem, tratará do tema dos rankings públicos de qualidade de hospitais, com metodologias construídas coletivamente e validadas por entidades externas. Algumas revistas semanais, como US News e América Economia tem difundido rankings para que os consumidores tenham acesso a mais informação processada sobre a qualidade hospitalar.Segue abaixo o primeiro artigo.

Ética, Liberdade de Escolha e Qualidade Institucional

Uma das maiores conquistas da humanidade (mas ainda longe de ser plenamente alcançada) é o direito à liberdade de escolher. Foi necessário derrubar a escravidão, a servidão, as desigualdades de gênero, os preconceitos raciais, culturais, sociais e as ditaduras, inclusive aquelas feitas em nome da religião e do proletariado, para garantir passo a passo esse direito.

Mas a liberdade de escolha nem sempre é fácil de alcançar se a informação e as oportunidades não estão acessíveis de forma equitativa e transparente para todos. Neste sentido, medir, avaliar, comparar, tornar acessível e disseminar são necessidades indispensáveis numa sociedade baseada na escolha.

Como os cidadãos podem se proteger de falsas promessas ao adquirir bens e serviços dos setores públicos e privados se não tem acesso a avaliações sérias e comparações baseadas em evidências entre aqueles que entregam estes bens e serviços? Como poderão escolher os produtores e produtos que mais atendem às suas aspirações e necessidades? Como poderão escolher representantes que tenham as condutas éticas para garantir estes direitos?

Não importa se a entrega é feita pelo Estado ou pelo setor privado. É um engano pensar ou iludir a população dizendo que o Estado entrega gratuitamente renda, bens ou serviços ou que o mercado garante automaticamente o acesso, a eficiência e a qualidade na entrega. Os cidadãos pagam impostos diretos, indiretos e taxas para que o Estado os retorne sob a forma de regulações adequadas, bens e serviços, buscando corrigir (muitas vêzes sem sucesso) as distorções inaceitáveis na concentração de renda para garantir mais a quem precisa. Portanto, tudo tem seu preço e quem paga somos nós.

A qualidade das instituições públicas ou privadas está diretamente relacionada à quantidade e a qualidade da informação brindada à sociedade para que a população possa exercer seu direito de escolha. Esta informação deve conter especificações, não apenas sobre a natureza e qualidade dos bens e serviços oferecidos, mas também sobre os aspectos de funcionamento da instituição que os entrega – seus mecanismos de transparência, sua responsabilidade social corporativa, seus mecanismos de avaliação e controle interno e as instâncias de avaliação externa independentes que asseguram que a instituição funcione com base em princípios éticos, eficiência e qualidade.

Devem, además, oferecer acesso fácil aos cidadãos para a resposta adequada a queixas e reclamações. Informações sobre qualidade, custo, alcance e resultados da atuação institucional são indispensáveis para que os cidadãos se orientem sobre suas escolhas e reclamem pelos seus direitos quando lesados em comparação com as expectativas geradas ou aos direitos adquiridos.

Qualidade Institucional e Escolhas no Setor Saúde

Em determinados setores como a saúde, onde o funcionamento é complexo e os produtos – bens e serviços - não são singulares e auto-explicativos, a avaliação da qualidade para orientar a escolha dos cidadãos também é complexa. A assimetria da informação entre quem produz e quem consome serviços de saúde, coloca o cidadão refém das decisões tomadas por especialistas ou pelas próprias instituições. Somente a geração de informação para a avaliação com base em metodologias consensuadas que envolvam as necessidades reais dos pacientes podem reduzir estas assimetrias. Nestes setores, processos de avaliação baseados em bench-marking ou na elaboração de rankings sobre um conjunto amplo de aspectos relacionados ao funcionamento institucional, aos insumos utilizados, ao processo de trabalho, à incorporação de tecnologia, aos recursos humanos e à atenção dada ao paciente, são indispensáveis para orientar os cidadãos em suas escolhas.

Por este motivo, os cidadãos, apesar da essencialidade do setor saúde, tem dificuldades em determinar critérios ou obter a informação adequada para orientar suas escolhas sobre quais instituições de saúde buscar. Para cobrir estas lacunas, muitas instituições tem se dedicado nos últimos anos a se inserir voluntariamente em processos de avaliação e acreditação de saúde, os quais fornecem uma espécie de selo de garantia para que os cidadãos possam confiar nos serviços oferecidos por estabelecimentos de saúde de distinta natureza.

Programas Internacionais de Acreditação Hospitalar

A iniciativa mais antiga no campo da acreditação em saúde, foi a criação da Joint Commission for Accreditation on Health Care Organizations (JCAHO) nos Estados Unidos da América em 1951, a qual busca, através da avaliação de hospitais, laboratórios e clínicas, identificar os mecanismos para alcançar a excelência na prestação de cuidados, de forma segura, eficaz e custo-efetiva para os cidadãos. Atualmente a Joint Commission, como instituição independente e sem fins lucrativos, avalia e acredita mais de 18.000 organizações e programas de saúde nos Estados Unidos. Para ser acreditada e manter um selo de qualidade, a instituição de saúde deve ser submetida, pelo menos a cada três anos, a uma vistoria no local por uma equipe de pesquisa da JCAHO e implementar as recomendações dos avaliadores para corrigir eventuais problemas identificados.

Em 1994 foi criada a Joint Commission International (JCI) como um braço internacional da JCAHO. A JCI tem trabalhado com organizações de saúde públicas e privadas, ministérios da saúde, e organizações globais em mais de 80 países, buscando aumentar a segurança dos cuidados de saúde ao nivel mundial através da prestação de serviços de certificação e acreditação, bem como através de consultoria e serviços educativos que visam ajudar as organizações de saúde a implementar soluções práticas e sustentáveis.

Os esforços internacionais para coordenar e criar estándares comuns no campo da avaliação e acreditação hospitalar começaram a crescer desde os anos setenta, ainda que de forma isolada. Mas em 1985, um grupo internacional de profissionais de gestão hospitalar se reuniu em em Udine (Itália) para discutir padrões e processos para a garantia de qualidade em saúde, sob influência de Avedis Donabedian. Esta reunião gerou um movimento que, sob a liderança de Peter Reizenstein, criou uma Conferência Anual. Deste esforço surgiu, em 1995, a International Society for Quality in Health Care (ISQUA). Como sociedade sem fins lucrativos e independente, gerida por um Conselho Executivo eleito a cada dois anos, a instituição se sediou em em Melbourne na Austrália. Os países que integram o conselho da ISQUA se localizam na América do Norte, Europa, Ásia e Oceania. Em 2008 sua sede se transferiu de Melbourne para Dublin, na Irlanda.

Em 1999 a ISQUA estabeleceu o programa internacional de Acreditação (IAP), destinado a acreditar internacionalmente instituições acreditadoras de hospitais e estabelecimentos de saúde, de acordo com os estándares e padrões adotados pela ISQUA. Em setembro de 2010 cerca de 17 organizações internacionais estavam acreditadas pelO IAP para aplicar 28 conjuntos de standards de acreditação. A ISQUA também supervisiona, ao nivel internacional, 6 programas de treinamento de acreditadores de qualidade hospitalar.

Em setembro de 2007, a JCI foi acreditada pela ISQUA como instituição internacional de acreditação de estabalecimento de saúde. A acreditação pela ISQUA garante que as normas, treinamento e processos utilizados pela JCI para o levantamento do desempenho das organizações de saúde atendam os mais elevados padrões internacionais das entidades de acreditação.

A Acreditação de Hospitais No Brasil

Os primeiros esforços de acreditação hospitalar no Brasil se realizaram a partir no setor público dado ser esse o principal financiador de hospitais no país. Nos anos setenta, com o objetivo de classificar os hospitais quanto a qualidade para efeitos de pagamento diferenciado, o então Instituto Nacional da Previdência Social (INPS) estabeleceu Regras de Classificação Hospitalar (RECLAR). A idéia de avaliação e classificação hospitalar com o sistemas estabelecido se mostrou instável e foi abandonada, sendo retomada somente no final dos anos 1990 quando o Ministério da Saúde cria o “Programa de garantia e aprimoramento da qualidade em saúde”. Deste fato se desdobram: a criação do “Programa de Avaliação e Certificação de Qualidade em Saúde – PACQS”, da Organização Nacional de Acreditação – ONA, e do Consórcio Brasileiro de Acreditação – CBA; esta última filiada à JCAHO.

Estas duas instituições nacionais – ONA e CBA - competem pelo mercado nacional de aferição da qualidade hospitalar. A ONA foi criada por um incentivo do Ministério da Saúde o qual se consubstanciou na emissão da Portaria nº. 538, de 17 de abril de 2001. Por esta Portaria, a ONA foi considerada “instituição competente e autorizada a operacionalizar o desenvolvimento do processo de acreditação hospitalar no Brasil”.
Este processo foi ainda cristalizado quando no mesmo ano o Ministério publicou o “Manual Brasileiro de Acreditação Hospitalar - 3ª Edição”. (Portaria nº. 1.970, de 25 de outubro de 2001), o qual foi elaborado pela ONA.

O processo de acreditação de hospitais através dos critérios da ONA se define em três níveis. No primeiro nivel (estrutura) se busca garantir: (a) a segurança do estabelecimento, através de instalações físicas, sanitárias e equipamentos que não envolvam riscos a pacientes e profissionais de saúde; (b) a qualificação mínima adequada dos recursos humanos e; (c) a infra-estrutura física necessária para assegurar que os serviços executados sejam entregues de forma consistente com a missão institucional.

No segundo nivel (processos) se procura aferir (a) normas, rotinas e procedimentos documentados, disponíveis e atualizados; (b) estratégias para a melhoria dos processos e protocolos de atenção; (c) evidencia de um modelo organizacional voltado a satisfação do usuário.

No tercerio nível (resultados), se procura avaliar a qualidade da gestão através: (a) da evidência de ciclos de melhoria dos processos impactando de forma sistêmica toda a organização; (b) da existência de sistemas consistentes de informação Institucional, baseados em indicadores operacionais, econômico-financeiros contábeis e de qualidade dos processos e produtos que levem o hospital a avaliar o resultado de suas estratégicas e; (c) sistemas de verificação da satisfação do usuário e evidências formais baseadas em bench-marking e na avaliação externa de que a estratégia implantada tem impacto na melhoria da qualidade e produtividade.

O processo de acreditação da CBA segue os protocolos, guias e estándares estabelecidos pela JCAHO, os quais inicialmente eram mais rígidos e não se dividiam em estágios. Atualmente, a JCAHO tem flexibilizado suas regras buscando processos onde os estándares possam ser alcançados progressivamente através de níveis intermediários de acreditação.

Ao início da presente década o Ministério da Saúde e a ANVISA tiveram uma relação bastante estreita com a ONA, realizando convênios para o repasse de recursos financeiros para que esta instituição desencadeasse o mercado de acreditação hospitalar no Brasil e para que ela orientasse outras instituições para serem acreditadoras utilizando sua prpopria metodologia. As próprias normas de licenciamento hospitalar estabelecidas pela ANVISA nada mais são do que uma reinterpretação no primeiro nível de Acreditação da ONA, que trata basicamente de condições de infra-estrutura e equipamento das unidades de saúde. Recentemente o Ministério da Saúde revogou a Portaria 538 fazendo com que a ONA e a CBA pudessem competir no mercado brasileiro de acreditação, inclusive nos estabelecimentos públicos, com igualdade de condições.

Desde sua criação até a primeira metade de 2010 a ONA já acreditou 232 entidades no Brasil, incluindo hospitais, laboratórios, bancos de sangue, clínicas, ambulatórios e centros cirúrgicos. Sua forte relação com o processo de acreditação de estabelecimentos públicos e privados de saúde em São Paulo estabeleceu para ela uma vantagem comparativa no Estado onde o número de hospitais é maior. Já a CBA acreditou um númerom menor de organizações de saúde com maior concentração no Estado do Rio de Janeiro. No entanto, o número de estabelecimentos de saúde até hoje acreditados não chega sequer a 5% do total de hospitais e instituições de saúde existentes no país. Há portanto um grande e promissor mercado pela frente para que se possa aumentar a qualidade institucional das organizações públicas e privadas de saúde no país.

Acreditação: Processo compulsório ou voluntário?

Ainda que mutos defendam que a acreditação de hospitais deve ser um processo compulsório para efeitos de contratação pelo SUS ou por operadoras privadas, na maioria dos países o processo de acreditação é voluntário. São as próprias preferências dos cidadãos, ao exercer sua liberdade de escolha e estar informado sobre a qualidade das instituições de saúde, que levam as mesmas a buscar voluntariamente acreditar-se junto a uma instituição de avaliação de qualidade em saúde.

A vantagem do processo ser voluntário reside no fato de que, ao ser assim, são as condições reais da concorrência entre as instituições e a divisão da fatia do mercado que aumenta a vontade política e o interesse da gerência e a motivação do staff das instituições hospitalares em se acreditar. Com isso as recomendações dos avaliadores para a acreditação se tornam muito mais consensuadas e o processo de sua implementação passa a ser mais ágil e efetivo.

No meu ponto de vista, não caberia ao Ministério da Saúde obrigar a acreditação hospitalar para estabelecimentos que prestam serviços ao SUS, a não ser em questões que digam respeito a regras mínimas de funcionamento que garantam a segurança do paciente. No entanto, uma vez que instituições acreditadas oferecem uma maior qualidade dos serviçso prestados ao cidadão, se deveria estabelecer, como incentivo, uma remuneração diferenciada para os serviços comprados de instituições que foram acreditadas, como recompensa pelo esforço institucional em manter a qualidade.

O mesmo valeria para instituições hospitalares que prestam serviços no mercado de saúde suplementar. Caberia a cada operadora, neste caso, pagar diferenciadamente por instituições acreditadas ou definir se, no rol de instituições que prestam serviços de saúde para esta operadora, deveriam constar somente instituições acreditadas. Órgãos de regulação de estabelecimentos de saúde, como a ANS, deveriam, por sua vez, estabelecer regras de transparência para que fossem amplamente divulgadas, para os cidadãos e consumidores de planos de saúde, as operadoras que trabalham com um maior número de instituições acreditadas, a fim de facilitar e informar as suas escolhas e indicar suas preferências.

Estado e Mercado não são nem pais nem patrões, mas sim empregados a soldo de contribuintes e cidadãos. É dever de todos não só entender isso, mas lutar para garantir as verdadeiras liberdades de escolha informada. Portanto, ao deixar que ou o Estado ou as instituições de mercado abusem do poder ou vendam mentiras e ilusões, a democracia e a soberania dos cidadãos (já que consumidores todos somos) será sempre uma realidade distante de ser alcançada.

domingo, setembro 12, 2010

Medicamentos Excepcionais e Prioridades de Saúde no Brasil

Ano 5, No. 22, Setembro 2010


André Cezar Medici



Introdução



Há pouco tempo, ouvi um comentário interessante sobre o Brasil numa conferência internacional: o país tem sido criativo em vários campos do conhecimento, ciência e políticas públicas. No entanto, o governo e instituições brasileiras tem utilizado muito pouca avaliação sobre políticas, procedimentos e práticas para a tomada de decisões e o debate sobre o que fazer tem sido baseado mais em subjetividades e influências das mais diversas do que em evidências científicas ou estatísticas. Com isto, acaba havendo um grande disperdício de recursos públicos e até mesmo injustiças sociais na implementação de políticas ou decisões da justiça.

Esta referência se encaixa como uma luva na prática de muitos processos judiciais relacionados a garantias dos direitos individuais em saúde. Todos sabem que muitos dos processos judiciais sobre o uso de medicamentos do SUS que deveriam ser negados, seja pela falta de evidências clínicas, seja pela existência de similares terapêuticos nas listas de medicamentos do SUS, acabam sendo aceitos pela Justiça por desconhecimento ou pelo medo dos juízes em tomar decisões equivocadas sob o argumento de que estas poderiam levar o paciente a agravos de saúde ou até a morte.

Muitos integrantes do poder judiciário sabem que estas decisões podem não ser adequadas e acabam prejudicando o interesse coletivo por atender equivocadamente interesses individuais não compatíveis com as evidências, mas acabam aceitando as pressões dos pacientes, dos médicos e da indústria farmacêutica, em função da inexistência de processos institucionais validados que permita utilizar a medicina baseada em evidência como prática cotidiana para a instrumentalização de decisões judiciais. O Governo, por sua vez, acaba adotando um processo preventivo de reconhecimento de produtos e práticas de saúde que não necessariamente foram testadas, como forma de evitar antecipadamente os embates com os grupos de pressão e o desgaste nos tribunais. Os efeitos desta prática acabam se refletindo no aumento de gastos de saúde que não necessariamente correspondem ao melhor uso dos recursos.

A Política de Assistência Farmacêutica no Brasil

A Política de Assistência Farmacêutica Brasileira institutiu a gratuidade na cobertura de medicamentos - um dos atributos de cidadania conferido aos brasileiros através do SUS. Esta política envolve basicamente os seguintes conceitos: (a) A Farmácia Básica, (b) os Medicamentos Estratégicos e, (c) Os Medicamentos Excepcionais (que a partir de março de 2010 passaram a ser denominados Medicamentos Especializados pelo Ministério da Saúde).

De acordo com o Ministério da Saúde, os medicamentos que integram a Farmácia Básica se destinam ao tratamento e recuperação das doenças que compõe e elenco da Atenção Básica de Saúde. Esses medicamentos são definidos e pactuados entre o Ministério da Saúde, o CONASS(1) e CONASEMS(2) com base na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME). Para a seleção desses medicamentos também são considerados o perfil epidemiológico loco-regional tendo em vista o tratamento das doenças mais prevalentes como diabetes (incluidos as insulinas), hipertensão arterial, asma, rinite, verminoses, medicamentos contraceptivos e insumos para o planejamento familiar, entre outros. Alguns destes medicamentos são comprados pelo Ministério da Saúde e entregues aos governos estaduais para sua distribuição gratuita aos municípios (3).

São considerados medicamentos estratégicos aqueles que garantem aos usuários do SUS o acesso ao tratamento de doenças que configuram problemas de saúde pública, cujo controle e tratamento tenham protocolo e normas estabelecidas e que garantam alta relação custo-efetividade, além de grande impacto socioeconômico. Estes medicamentos atendem aos Programas Nacionais de DST/AIDS (4), Tuberculose, Hanseníase, Lúpus, Tabagismo, Endemias Focais (Malária, Leishmaniose, Esquistossomose, Meningite, Doença de Chagas, Peste, Tracoma, Filariose, Cólera e Micoses Sistêmicas), Sangue e Hemoderivados e os Imunobiológicos. O financiamento e provisão destes medicamentos, diferentemente dos que integram a Farmácia Básica é de responsabilidade exclusiva do Ministério da Saúde.

Por fim, são considerados medicamentos excepcionais, dispensados para toda a população atendida pelo SUS, aqueles necessários ao tratamento de doenças que apresentam as seguintes características: (a) Rara ou de baixa prevalência com necessidade de tratamento com medicamentos de elevado custo financeiro e (b) doença prevalente com necessidade de tratamento com medicamentos de alto valor unitário, para aquelas doenças em que há tratamento no nível da atenção básica, mas o indivíduo apresentou refratariedade ou evoluiu para quadro clínico mais grave (5).

A regressividade no acesso e financiamento aos medicamentos básicos e estratégicos

Ainda que o formato da política de assistência farmacêutica seja uma fonte de orgulho para o governo brasileiro, o país detém sérios problemas no nível de gasto familiar com remédios e no acesso aos medicamentos básicos ou estratégicos supostamente ofertados pelo Governo, especialmente para os grupos mais pobres da população. Como decorrência, o gasto em medicamentos, que representava 45% do gasto total em saúde das famílias brasileiras em 2002 subiu para 49% em 2008, segundo os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE (6).



Por outro lado, o gasto em medicamentos, como parcela do gasto de saúde das famílias, é extremamente regressivo, penalizando mais acentuadamente os segmentos mais pobres da população. O gráfico acima mostra a participação em medicamentos nos gastos totais em saúde da população brasileira por classes de rendimento. Nas classes de renda mais baixa eles representam 76% dos gastos totais em saúde, enquanto que nas classes de renda mais abastadas eles representam menos da metade (em torno de 34%).

Mas mesmo que os mais pobres gastem mais, seus esforços financieiros ainda não são suficientes para alcançar uma boa qualidade de assistência farmacêutica. Dados veiculados pelo CONASS evidenciam que 52% dos brasileiros interrompem o tratamento por falta de dinheiro. Este índice chega a 61% no Nordeste, que é a Região mais pobre do pais.

O Jornal Valôr Econômico (7) publicou, em junho de 2010, uma matéria que mostra que, segundo a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), as familias no Brasil pagam por quase 80% dos gastos totais nacionais com medicamentos, enquanto que nos Estados Unidos e no Japão essa proporção é de 70% e 29%, respectivamente.

Um estudo recente financiado pelo PROESF (8) avaliou a prevalência no acesso a medicamentos de uso contínuo (farmácia básica) para tratar hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus e problemas de saúde mental em adultos e idosos residentes na área de abrangência das unidades básicas de saúde (UBS) das regiões Sul e Nordeste do Brasil no ano de 2005 (9). Os dados demonstraram que entre os adultos portadores dessas doenças somente 84% e 79% tiveram acesso total aos medicamentos de uso contínuo para o tratamento das mesmas no Sul e no Nordeste, sendo que 10% e 14% não tiveram nenhum acesso aos medicamentos nas respectivas Regiões. Entre os idosos portadores destas doenças as proporções de cobertura total foram maiores (89% e 85%, respectivamente). O estudo demonstra, no entanto, que entre os grupos de nivel sócio-econômico mais baixo o acesso a medicamentos de uso contínuo é muito menor do que as médias apresentadas, tanto para adultos quanto para idosos, reforçando o fato de que muitas UBS não tem estrutura para a oferta regular de medicamentos básicos para a população que usa o SUS.

A explosão dos gastos com medicamentos excepcionais

Uma vez que a cobertura de medicamentos básicos e estratégicos – os quais respondem pelas prioridades epidemiológicas dos mais pobres – não está sendo alcançada, fica a dúvida de se valeria a pena reconsiderar a atual política de cobertura de medicamentos excepcionais, os quais atendem às necessidades de uma população que apresenta acesso regular aos serviços de saúde, é mais bem informada, tem um nível de renda em média mais elevado e em muitos casos já está coberta pelo sistema de saúde suplementar. Ou pelo menos, se valeria a pena fazer uma triagem previa que tome em conta o status sócio-econômico e o acesso a outras coberturas de saúde da população que solicita medicamentos excepcionais financiados pelo SUS, seja por demanda administrativa, seja pela via judicial, verificando se estes representariam ou não gastos adicionais catastróficos para os requerentes que justifiquem o uso dos escasos fundos do SUS para a sua compra.

Os medicamentos de dispensação excepcional devem ser prescritos e dispensados de acordo com as recomendações dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas elaboradas pelo Ministério da Saúde. Tais protocolos apresentam as recomendações para diagnóstico, tratamento medicamentoso e não medicamentoso e monitoramento dos resultados alcançados. No entanto, muitos medicamentos novos são empurrados para as listas de medicamentos excepcionais por pressões de pacientes, da indústria farmacêutica e das demandas judiciais e o monitoramento dos resultados, como fonte de avaliação, é uma realidade distante do programa na maoiria dos Estados.

Em que pese o esforço do Ministério da Saúde em elaborar e atualizar as listas e protocolos, maiores estudos sobre a evidência clínica destes medicamentos deveriam ser feitos previamente à sua incorporação para que decisões acertadas quanto a compra e distribuição destes medicamentos pelo Ministério da Saúde ou pelos Estados fossem tomadas com precaução e economicidade para os recursos do erário público. Ao mesmo tempo, as decisões quanto a alocar recursos em medicamentos excepcionais deveriam estar condicionadas à cobertura previa das necessidades insatisfeitas quanto a medicamentos básicos e estratégicos. Para tal o Ministério e as Secretarias Estaduais de Saúde deveriam intensificar os esforços de avaliação da cobertura e qualidade dos medicamentos básicos e estratégicos, fornecendo informações e ações oportunas para saciar as necessidades insatisfeitas.

O gráfico abaixo mostra a evolução da execução orçamentária do Ministério da Saúde no que se refere aos gastos com medicamentos entre 2004 e 2009. Fica patente que há uma explosão de gastos com medicamentos excepcionais, comparados com os gastos com medicamentos básicos e estratégicos.




Entre 2004, a soma dos gastos com medicamentos básicos e estratégicos (excluídos os gastos com medicamentos para DTS-AIDS), era praticamente similar aos gastos com medicamentos excepcionais (em torno de R$ 0,83 bilhões). Em 2009, o gasto com medicamentos excepcionais (R$2,6 bilhões) passou a ser cerca de 2,5 vezes superior à soma dos gastos com medicamentos básicos e estratégicos (R$1,1 bilhões). A continuar neste rítmo é de se esperar que os gastos com medicamentos excepcionais passarão a absorver parcelas crescentes do orçamento do Ministério da Saúde, num contexto onde as necessidades de medicamentos básicos e estratégicos continua insatisfeita e os direitos essenciais à saúde dos mais pobres não estão sendo cumpridos.

O Caso do Estado de São Paulo

A explosão dos gastos com medicamentos excepcionais, não é somente um fenômeno do Governo Federal. De acordo com dados apresentados pela médica Maria Cecília Correa (10), assessora do Gabinete do Secretário de Estado da Saúde de São Paulo designada, pelo Dr. Barradas, para Coordenar as Demandas Estratégicas do Sistema Único de Saúde, os gastos com medicamentos excepcionais no Estado subiram de R$221,6 milhões (cobrindo 55 mil usuários) para R$1.369,3 milhões (cobrindo mais de 500 mil usuários), entre 2003 e 2009. No entanto, o custo médio anual dos medicamentos por paciente se reduziu de R$3847 para R$ 2739, em função de várias medidas que vem sendo tomadas para evitar os custos crescentes na concessão de medicamentos excepcionais.

O atendimento as demandas administrativas por medicamentos que não estão presentes nos programas de medicamentos do SUS no Estado de São Paulo estabelece uma série de pre-requisitos que imprimem maior racionalidade para a seleção dos casos e compra de medicamentos, destacando-se, entre eles: (a) a avaliação individual de cada pedido por um Comitê Técnico; (b) o uso das evidências clínicas (medicina baseada em evidência) como avaliação prévia à concessão do pedido; (c) o não fornecimento de medicamentos não registrados na ANVISA ou com alertas dos Comitês de Fármaco-vigilância; (d) o uso obrigatório de medicamentos genéricos quando estes existem como alternativa ao produto solicitado; (e) a negociação dos preços de medicamentos com os produtores, a partir de 2007, com base no uso do Coeficiente de Adequação de Preço (CAP), que permite reduções nos preços de fábrica dos medicamentos comprados pela SES-SP em até 25%.

Por outro lado, o Estado de São Paulo criou o serviço de Triagem Farmacêutica e Nutricional da Grande São Paulo, centralizado no AME Maria Zélia (11), destinado à solução de problemas de assistência farmacêutica para os usuários do SUS. Muitas vêzes, ao não encontrar as prescrições nos locais indicados de distribuição gratuita, os pacientes optam por solicitar os medicamentos ao Estado pela via judicial. As AMEs de assistência farmacêutica recebem as solicitações administrativas de medicamentos e permitem localizar os locais de disponibilidade destes medicamentos na rede SUS do Estado, levando-os para as mãos dos pacientes e evitando novos processos judiciais.

Mesmo com todos esses avanços o número de ações judiciais ativas para medicamentos no Estado em fins de julho de 2010 era de 24,3 mil, número substancialmente maior que as 17,9 mil demandas administrativas ativas por medicamentos. Consequentemente os gastos mensais da Secretaria de Saúde do Estado (SES) com ações judiciais para a compra de medicamentos em 2010 alcançam R$ 57 milhões, enquanto que os gastos médios mensais por demandas administrativas chegam a R$31 milhões.

Por outro lado, as ações judiciais muitas vêzes são tomadas sem a utilização prévia dos mecanismos internos criados pela SES-SP para melhorar o acesso aos medicamentos. Para exemplificar, boa parte das ações judiciais estão associadas a medicamentos que já estão incluidos no Programa de Assistência Farmacêutica do SUS e que poderiam ser obtidos através das AMEs de assistência farmacêutica. Outras ações são tomadas para a aquisição de medicamentos que detém similares terapêuticos do SUS. Portanto, um maior entrosamento entre os usuários, a justiça e a SES-SP são fatores importantes para evitar demandas judiciais desnecessárias, que só consomem recursos do SUS e retardam a cobertura dos pacientes com os medicamentos que necessitam.

Vale destacar também o caráter regressivo das ações judiciais contra o SUS. Uma pesquisa realizada por Ana Luiza Chieffi e Rita Barradas Barata (12), com base no Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS) da Fundação SEADE (13) , mostra que em 2006 somente 13% das ações judiciais contra o SUS para a aquisição de medicamentos no Município de São Paulo foram solicitadas por pessoas que vivem em áreas de vulnerabilidade social alta e muito alta. Por outro lado 16% das ações judiciais contempladas para a aquisição de medicamentos foram impetradas por pessoas que vivem em áreas onde não há nenhuma vulnerabilidade social e 31% destas mesmas ações por pessoas que vivem em áreas de vulnerabilidade social muito baixa. Portanto, as ações judiciais reforçam a lógica dos pedidos de medicamentos excepcionais que atendem às patologias dos grupos sociais de mais alta renda.

Considerações Finais

A integralidade, como princípio do SUS, deve ser implementada respeitando o princípio da universalidade. Mas a integralidade é infinita. E tudo que é infinito é inalcançável. Portanto, antes de ser uma meta, a integralidade deve ser um processo. Sua implementação, como processo, deve ser progressiva. Na medida em que o tratamento para uma prioridade de saúde é universalizado, outra prioridade surge para ser universalizada e o espectro do que é saúde integral vai se ampliando de uma forma tangível, pouco a pouco, para todos. No campo dos medicamentos, isto significa que se deve garantir a todos o que coletivamente é mais relevante e, uma vez saciadas as necessidades dos medicamentos mais relevantes, se parte para a cobertura de outros medicamentos, conforme prioridades epidemiológicas, em ordem decrescente.

Esta lógica também deveria prevalecer nos critérios que selecionam quem deveria ser beneficiado por medicamentos excepcionais. Se 20% da população adulta pobre do Nordeste, com problemas de diabetes, hipertensão ou saúde mental, não têm acesso aos medicamentos de uso contínuo que poderiam mantê-las saudáveis, controlar seus sintomas e prolongar suas vidas, porquê se deveria garantir medicamentos para a degeneração macular associada à idade para meia dúzia de indivíduos de alta renda que facilmente poderiam pagar ou eventualmente ter estes gastos cobertos por seus planos de saúde?

Notas

(1) Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde.

(2) Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde.

(3) A Portaria MS/GM nº 204, de 29 de janeiro de 2007, organiza o bloco da Assistência Farmacêutica em três componentes: Componente Básico da Assistência Farmacêutica, Componente Estratégico da Assistência Farmacêutica e Componente de Medicamentos de Dispensação Excepcional. A Portaria GM/MS nº3.237/2007 aprova as normas de execução e de financiamento da assistência farmacêutica na atenção básica em saúde.

(4) O Brasil foi, de forma pioneira, um dos países a cobrir a gratuidade dos medicamentos para os portadores de DST-AIDS desde a segunda metade dos anos noventa, quando José Serra foi Ministro da Saúde.

(5) Os medicamentos de dispensação excepcional foram regulamentados pela Portaria MS/GM nº 2.577, de 27 de outubro de 2006.

(6) Entre 2002/3 e 2008/9, os gastos em saúde das familias brasileiras, segundo as POFs do IBGE, aumentaram de 5,7% para 5,9% do orçamento das familias, indicando um efeito distinto ao das benesses da gratuidade do SUS apregoado pelo Governo. Vale notar, no entanto, que entre 1995/6 e 2002/3, os gastos em saúde das famílias se reduziram de 6,5% para 5,7%. Portanto, os últimos oito anos parecem ter interrompido a tendência a redução dos gastos em saúde das famílias que se iniciou com o fim da inflação em 1995.

(7) “Acesso a Medicamentos Ainda é Limitado no País”, Jornal Valor Econômico, São Paulo (SP), Terça-Feira, 10 de junho de 2010.

(8) O Projeto de Expansão e Consolidação da Saúde da Família (PROESF) é um Programa que vem sendo implementado pelo Departamento de Atenção Básica (DAB) do Ministério da Saúde (MS) com recursos do Banco Mundial.

(9) Ver Panizi, V.M.V. et al., Acesso a Medicamentos de Uso Contínuo em Adultos e Idosos nas Regiões Sul e Nordeste do Brazil, in Cadernos de Saúde Pública, Vol 24, No. 2, Rio de Janeiro (RJ), Fevereiro de 2008.

(10) Os dados foram apresentados no Seminário Judicialização e Prioridades de Saúde no Brasil, organizado pelo Centro Cochrane do Brasil e pelo Banco Mundial, na cidade de São Paulo, no dia 3 de Setembro de 2010.

(11) Localizado à Rua Jequitinhonha, nº 360 - Belenzinho, São Paulo/SP.

(12) Ver Chieffi, A.L. e Barradas, R., “Judicialização da Política Pública de Assistência Farmacêutica e Equidade”, Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro (RJ), 25(8): 1839-1849, ago. 2009.

(13) O IPVS é um Índice construído pela Fundação SEADE, órgão coordenador do Sistema Estatístico do Estado de São Paulo, que que classifica os setores censitários do Município de São Paulo em seis grupos de vulnerabilidade social: nenhuma vulnerabilidade,vulnerabilidade muito baixa, vulnerabilidade baixa, vulnerabilidade média, vulnerabilidade alta e vulnerabilidade muito alta – estratos de 1 a 6, respectivamente.