domingo, novembro 03, 2019

Compartilhamento de Risco em Saúde no Brasil: Entrevista para Cristina Ballerini da Editora Phoenix

Ano 13, Número 99, Novembro de 2019

Em setembro de 2019, Cristina Balerini, jornalista da Editora Phoenix, solicitou-me uma entrevista sobre modelos de compartilhamento de risco (risk sharing) na saúde. Estou reproduzindo, nesta postagem, a íntegra da entrevista. Boa leitura.

Cristina Balerini (CB) – O que são modelos de risk-sharing e como se aplicam na área de saúde?

André Medici (AM) – Qualquer negócio envolve riscos mas nem sempre os riscos são igualmente distribuidos entre as partes que estão envolvidas em um negócio. A idéia básica que está por tras do risk-sharing (ou compartilhamento de riscos) é a de que as perdas associadas a riscos em qualquer negócio podem ser negociadas e compartilhadas entre as partes através de regras, condições ou modelos estabelecidos para administrar e partilhar este risco. Estas regras e condições tem por objetivo gerar um ambiente favorável em que se maximizem os ganhos e se minimizem as perdas de cada agente que investe seu capital no negócio em questão. As regras dos modelos de compartilhamento de risco podem estar associadas a eficiência ou aos resultados esperados por quem realiza o negócio, mas também podem visar a redução das perdas associadas a externalidades, as quais não dependem e não podem ser controladas pelos agentes econômicos envolvidos.

Em geral (mas nem sempre), quanto maior o nivel de retorno esperado, maior o risco, mas existem investidores que são avessos ao risco. Por exemplo, no mercado financeiro, uma pessoa que investe em ações está submetendo seu capital ao risco de flutuações na bolsa que são multi-determinadas, mas os ganhos podem ser altos. Já no investimento em um fundo de renda fixa, o investidor sabe quanto vai receber do agente financeiro e o agente financeiro fica com todo o risco, mas poderá se apropiar do diferencial de rendimentos entre o retorno bruto do capital aplicado pelo investidor e o retorno da renda fixa que o investidor recebe. Esse diferencial poderá ser muito maior do que os ganhos de renda fixa pagos ao investidor. A gestão do risco está associada ao grau de informação detido pelo agente que administra o risco. Quanto mais informação, mas preciso é o cálculo do risco e a probabilidade de estimar os ganhos reais de um dado investimento.

No setor saúde, prestadores de serviços, vendedores de insumos e de medicamentos historicamente tendem a ser avessos ao risco. É por esta razão que preferem receber seus ganhos associados à venda de seus produtos e serviços, independentemente dos resultados alcançados para o paciente. Os hospitais, ambulatórios, laboratórios, etc., preferem receber um valor fixo previamente acordado como base de remuneração por serviços médicos ou laboratoriais prestados (fee-for-service). Mas ao assim fazer, o risco dos serviços médicos é transferido para o pagador, que pode ser o paciente, o seguro médico, ou outro como um fundo de filantropia. Em outras palavras, o paciente pode não ser curado e, mesmo assim, ele ou seu seguro médico irão pagar pelo serviço independentemente do resultado (positivo ou negativo) alcançado.

Este processo de transferência de risco para os pacientes ou para os seguros é um entre vários dos fatores responsáveis pela escalada de custos em saúde e tal situação tem sido agravada nos últimos anos pelo envelhecimento da população e o consequente crescimento do peso das doenças crônicas na carga de enfermidade. Para evitar que a concentração de risco reduza os incentivos aos pagadores, novos processos de pagamento de bens e serviços de saúde, associados aos resultados, começaram a surgir nas últimas duas décadas e parecem ser a principal tendência futura dos processos de gestão em saúde. Estas novas formas de pagamento por resultado vieram para ficar e exigem modelos de compartilhamento de risco aonde prestadores, seguros (operadoras), pacientes e fornecedores de bens como exames, medicamentos e equipamentos médicos, sejam colocados na equação, exigindo sua integração e participação no desenho dos processos e sua responsabilidade nos desfechos em saúde, de acordo com sua respectiva contribuição na cura do paciente.

CB – Em que áreas da saúde estes modelos de compartilhamento de risco estão sendo mais aplicados?

AM – Eu diria que estes modelos estão associados aos serviços, mas também a áreas que geram mais inovação no setor saúde, como a indústria de equipamentos médicos e a indústria farmacêutica em áreas inovadoras como  biológicos, medicamentos de base genética, etc. Estes modelos tem sido incentivados pelo Governo ou pelos seguros médicos em sua relação com os prestadores de serviços de saúde (hospitais, ambulatórios, médicos) e com os fornecedores de bens, como a indústria de medicamentos e equipamentos médicos.

Muitos modelos de compartilhamento de risco tem sido utilizados ​​pelas seguradoras privadas de saúde nos Estados Unidos para o pagamento de serviços médicos junto aos provedores, tendo alcançado alguns resultados econômicos positivos para os pacientes em toda a cadeia de valor da saúde. Os contratos com base em valor utilizados pelo Medicare – o programa de seguros médicos para a terceira idade nos Estados Unidos - a partir do Plano Obama é um exemplo. Estes modelos podem envolver as seguradoras, prestadores de serviços de saúde e fornecedores de equipamentos médicos e a indústria farmacêutica. Procuram, muitas vezes, mitigar riscos negativos e aumentar a probabilidade de gerar oportunidades de desenvolvimento do mercado com benefícios para os pacientes.

Mas estes modelos tem que contar com uma ampliação do papel, das responsabilidades e da capacidade do paciente em fazer escolhas informadas sobre suas opções de tratamento de saúde, pois o comportamento adequado do paciente pode influenciar positivamente os resultados em saúde. Conceitos e técnicas de administração de risco comumente utilizados em empresas de outros setores podem ser usados por seguros de saúde.

O uso de modelos de compartilhamento de risco não é um processo simples. Exige a geração e intercâmbio de informações, de forma transparente, como meio para obter evidências para regular os papéis dos distintos atores (incluindo os pacientes). Para que isso funcione os seguros devem construir relações de confiança com os demais stakeholders e processos de intercâmbio de informações com seus prestadores, fornecedores e clientes. É fundamental, por exemplo, o intercâmbio aberto e transparente dos sistemas de informações entre todos os “players” (interoperabilidade) para vislumbrar melhores processos e perspectivas, identificar e administrar os erros que porventura venham a ocorrer e estabelecer soluções negociadas de forma rápida para sua correção.

O setor saúde, na atualidade, vive uma espécie de concorrência entre os prestadores em dois mundos: o mundo físico da entrega de serviços e valor para seus pacientes e o mundo virtual das etapas de  agregação do valor, que são executadas através da integração e eficiência de seus sistemas de informação. Os chamados ativos digitais são extremamente relevantes, pois diferentemente dos ativos físicos, não são consumidos e, portanto, podem ser valorizados de forma agregada, como se fossem a
espinha dorsal de um modelo integrado de assistência médica. Já no caso da indústria farmacêutica, o espaço aberto pelo uso de medicamentos de alto custo como os biológicos e as terapais gênicas em tratamentos de maior eficácia para doenças crônicas e doenças raras, tem trazido a discussão sobre seu uso apropriado e a gestão dos seus custos nos processos de assistência médica. A percepção generalizada de que estes medicamentos apresentam altos custos constrasta com a confiança da indústria farmacêutica na validade de seus produtos e no desejo de que paguem por eles, mas cada vez mais isso representa um risco quando baseado no fee-for-service. Uma abordagem potencial para que essa confiança se extenda aos pagadores é o compartilhamento do risco entre o prestador de serviços, o seguro e a empresa farmacêutica. 

Acordos de compartilhamento de riscos para produtos farmacêuticos, com garantias de que os custos não serão pagos se os resultados não forem alcançados, podem ser usados ​​para sinalizar positivamente uma alta qualidade e confiança quando pela falta de evidências, a eficácia do produto não é facilmente observável. Embora possa haver dificuldades na elaboração de esquemas de compartilhamento de risco para cada produto, esses esquemas vem se tornando um recurso básico para a utilização destes novos produtos e podem ser a chave para o funcionamento futuro do mercado na indústria famarcêutica.

CB - Como tem funcionado os modêlos ou esquemas de compartilhamento de risco na prática para a indústria farmacêutica?

AM - Os esquemas de compartilhamento de riscos, no caso de medicamentos, tem como base relações nas quais pagadores e fabricantes de produtos farmacêuticos concordam em vincular o pagamento de medicamentos aos desfechos ou resultados de saúde alcançados, em vez de ter como base o pagamento pelo volume de produtos utilizados em base a um preço acordado. Estes novos esquemas oferecem um modelo de pagamento para produtos farmacêuticos atraente para todos, dado que todos recebem uma remuneração acordada se os resultados forem alcançados satisfatoriamente. A experiência de países como os Estados Unidos até o início da presente década demonstrou que tais esquemas apresentam algumas dificuldades de implementação associadas à medição dos resultados e sua avaliação. Os desafios na medição e a ausência de uma infraestrutura de tecnologia de informação adequada nos estabelecimentos de saúde, faz muitas vezes com que a indústria farmacêutica interessada nestes esquemas tenha que assumir custos de implantação dos sistemas de informações e métricas que podem ser recuperados na medida em que os resultados são alcançados. É por este motivo que aumenta vertiginosamente nos Estados Unidos o número de empresas de inteligência artificial associadas a geração de novos medicamentos. Assim, estes problemas parecem estar sendo superados com o avanço do bigdata e de sistemas que aumentam a interoperabilidade das bases de informação de gestão clínica, custos e experiência do paciente.

Assim, os acordos de compartilhamento de riscos, embora ainda sejam minoritários frente as estratégias amplas de venda de medicamentos, vem ganhando força com estes novos produtos, pois os pagadores e os fabricantes de produtos adquirem experiência com o conceito na medida em que as técnicas de medição e os sistemas de informação melhoram.

CB – Quais são as vantagens e desvantagens para os diferentes players (pagadores, produtores e pacientes) dos modelos de compartilhamento de risco para a indústria farmacêutica?


AM – Para a indústria farmacêutica, um acordo de compartilhamento de risco é um contrato entre um fabricante de medicamentos e um prestador de cuidados de saúde (ou eventualmente o governo ou um seguro de saúde) que ajuda a gerenciar incertezas quanto ao custo e a efetividade de um determinado medicamento. Os modelos de compartilhamento de riscos de produtos farmacêuticos, ao vincularem o reembolso de medicamentos aos resultados alcançados, oferecem um sistema de remuneração atraente para todos se o produto tiver a eficácia prometida no tratamento.  

Nesses acordos, o pagamento está vinculado aos resultados obtidos pela coleta de evidências de eficácia ao nível populacional em um ambiente de “mundo real” (em oposição ao experimental), com o desempenho avaliado com base nos resultados de saúde produzidos e registrados nos estabelecimentos provedores de serviços. Para os pagadores (seguros, provedores e até mesmo sistemas públicos de saúde) o compartilhamento de riscos oferece o potencial de ganhos de eficiência, direcionando recursos para pacientes que provavelmente receberão o maior benefício. Por exemplo, nos Estados Unidos, o atual tratamento para um paciente com atrofia muscular-espinhal custa US$750 mil no primeiro ano e US$375 mil por ano, a partir do segundo ano, durante toda a vida que resta ao paciente. A substituição por um tratamento com terapia gênica custaria somente US$4000 dolares mas levaria à cura no primeiro ano, dispensando o tratamento para os demais anos da vida do paciente. Neste sentido, o desfecho positivo poderia levar a um custo mais alto de imediato, mas a taxa de retorno de longo prazo seria elevada para o seguro de saúde e para a qualidade de vida do paciente, caso estes estivessem incorrendo nos custos do tratamento.

Por outro lado, o compartilhamento reduz o risco do paciente e dos seguros em pagar por produtos caros com benefícios questionáveis. Além disso a vinculação do tratamento ao resultado positivo evita os problemas de sub ou sobre-medicação e maior controle dos efeitos colaterais, dado o seguimento de protocolos estritos que levem ao melhor desfecho e resultados clínicos.

Para os fabricantes de produtos farmacêuticos, o compartilhamento de riscos oferece o potencial de garantir o reembolso de tecnologias que apresentam bons resultados mas cujos efeitos antes do tratamento seriam desconhecidos. Na perspectiva de uma empresa de medicamentos, o modelo oferece a possibilidade de preços mais previsíveis e a perspectiva de recompensas financeiras futuras posteriores ao tempo em que os dados adicionais sobre os resultados do tratamento estão sendo coletados. O compartilhamento de riscos também permite que as empresas farmacêuticas tornem explícitos seus resultados em realidades práticas o que pode ajudar a diferenciar seus produtos daqueles dos concorrentes. 

Em tese, o sistema teria poucas desvantagens, mas existem dificuldades de implementação em sistemas de saúde que operam em pequena escala. Na Europa, os acordos de compartilhamento de risco funcionam melhor com sistemas públicos ou de seguro social centralizados. Nos Estados Unidos, onde o sistema de seguros é essencialmente privado e descentralizado, a fragmentação do mercado e a alta rotatividade dos afiliados aos seguros pode impedir a geração de incentivos no longo prazo para sistemas de compartilhamento de risco na compra de medicamentos, os quais exigem maiores tempos para maturação e aperfeiçoamento. A falta de preços de referência dos medicamentos novos também pode inibir incentivos para o estabelecimento de sistemas de compartilhamento de risco para produtos farmacêuticos.

Alguns analistas consideram que o compartilhamento de riscos para produtos farmacêuticos é atraente em teoria, mas difícil na prática. O modelo apresenta riscos para os fabricantes que precisam enfrentar ambiguidade sobre se os medicamentos funcionarão e se o sucesso pode ser medido na prática ou na vida real e não apenas nas configurações altamente controladas dos ensaios clínicos.

O processo de compartilhamento de risco será diferenciado de acordo com diversas circunstâncias, como o tipo de tecnologia considerada, os critérios e mecanismos de avaliação escolhidos para as condições reais de uso do medicamento, os desfechos escolhidos para medir os resultados, o número de pacientes submetidos ao tratamento e outros fatores. Tudo isso influencia a determinação do custo e a complexidade para a sua implementação. Os pacientes, por outro lado, têm também suas próprias preocupações, entre elas o fato de que qualquer cobertura de um medicamento para uma condição crônica, mesmo que temporária, pode se tornar permanente a longo prazo implicando em custos sobre toda a vida que resta ao paciente. 

CB – Como o modelo de compartilhamento de risco impacta os custos na saúde?


AM - A percepção da maioria dos players nos mercados de seguro e provedores de saúde é que o modelo de risk-sharing tem um impacto positivo na redução dos custos em saúde no longo prazo, mas não no curto prazo. As evidências variam de acordo com o tipo de contrato implementado. Na California, por exempo, o compartilhamento de risco financeiro nos cuidados de saúde levou a que os custos totais de atendimento fossem 3,5% menores em 2017 do que no ano anterior, de acordo com o Atlas Regional de Qualidade e Custo de Assistência Médica, que analisa dados de 7,2 milhões de beneficiários de 7 planos de saúde naquele estado norte-americano. Os provedores de acordos de compartilhamento de risco na Califórnia também obtiveram 9,2 pontos percentuais a mais nas taxas médias de desempenho de qualidade clínica, em comparação com os provedores que ainda utilizam o modelo de fee-for-service. 

CB - É possível adotar um modelo de risk sharing para a saúde no Brasil, tanto na pública quanto na privada?

AM – Acredito que sim. Aliás, no setor privado, o Brasil já tem algumas experiências de risco compartilhado em saúde, como é o caso do modelo pioneiro aplicado pela Unimed de São José do Rio Preto em parceria com a GSK Oncologia desde 2011, onde se o desfecho é favorável, a UNIMED desembolsa a integralidade do custo do medicamento, mas se o desfecho não for favorável, o desembolso do custo do medicamento fica por conta da indústria farmacêutica (GSK Oncologia). Avaliando este modelo, a gerência da UNIMED ressaltou que, além de economia de recursos para a UNIMED, houve melhoria nas bases de informação, como o registro de pacientes e análises de desempenho de tecnologia, gerando novas evidências. Isto mostra também que ha algum tempo a indústria farmacêutica tem sido proativa em buscar soluções com os planos de saúde no Brasil. Também em um seminário sobre o futuro do SUS, realizado no início de agosto na Fundação Fernando Henrique Cardoso (FFHC) o Secretário de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, Denisar Vianna de Araújo destacou o empenho da atual gestão do Ministério em realizar este tipo de acordos de compartilhamento de risco, com potencial para um conjunto de medicamentos para o combate ao cancer e doenças raras. Um dos exemplos é o caso do medicamento Spinraza indicado para atrofia muscular degenerativa, cuja decisão foi tomada no primeiro semestre de 2019. Neste caso, o Ministério da Saúde monitoraria os resultados da administração do medicamento e só pagaria caso o desfecho fosse exitoso. No entanto, o que falta ainda é um número maior de experiências e a criação de protocolos que permitam simplificar e tornar mais custo-efetivos os processos de implantação para veriricar resultados. Com a criação destes processos e protocolos a indústria, o governo e as operadoras poderão se interessar em realizar mais contratos de compartilhamento de risco gerando potencialmente menores custos e melhores resultados para os pacientes.

sexta-feira, outubro 25, 2019

A necessidade de atualizar a Lei 9656 e ampliar o acesso à saúde suplementar






Ano 13, Numero 98, Outubro de 2019


Prezados amigos,


Nesta postagem publico a íntegra da entrevista que dei à Jornalista Luciana Casemiro do Jornal "O Globo", onde alguns trechos foram publicados em matéria do referido jornal no dia 18 de outubro último, intitulada "Empresas Querem Vender Planos de Saúde em Módulos".



Luciana Casemiro (LC) - Como você vê a proposta de modulação de produtos das operadoras de saúde brasileira? A proposta em debate prevê, por exemplo,  que se possa contratar um módulo só consultas, um de exames em separado, terapias (como tratamento de câncer) e hospital, onde ficariam as emergência. Ou seja, quem tem plano só de consulta, vai ter que pagar os exames, quem tem um produto conjugado de consultas e exames, mas não terapia e descobriu um câncer, vai para o SUS se tratar. E em todos esses casos, quem não contratou o pacote de hospital, se quebrar um braço, vai para o hospital público, pois só quem contrata hospital tem direito à emergência.


 


Andre Medici (AM) – O aumento dos custos assistenciais tem sido um dos fatores que impede a maioria da população brasileira que deseja ter um plano de saúde de conseguir alcançar seus objetivos. Parte da questão do aumento dos custos assistenciais está associado a uma certa rigidez nos aspectos regulatórios e creio que existe um consenso entre muitos atores sobre a necessidade de flexibilizar a regulação para que se possa oferecer planos assistenciais mais acessíveis aos consumidores. A regulação atual da ANS já prevê alguns tipos de segmentação (modulação) entre planos ambulatoriais e planos hospitalares (com e sem obstetrícia), ou planos odontológicos, mas as coberturas de cada uma dessas modalidades ainda são muito amplas não permitindo uma maior flexibilização dos preços e uma ampliação do espectro de cobertura de acordo com as necessidades da população.


Creio que a proposta das operadoras ainda deverá detalhar como ocorrerá esta modulação, mas entendo que o objetivo é ampliar a oferta de opções que sejam acessíveis de acordo com as necessidades das famílias,  oferecendo desde planos ambulatoriais para a cobertura de consultas e exames combinados até opções para terapias específicas. Mas isso só poderá ser feito se for preservada a mesma cobertura prevista no atual arcabouço regulatório. Fazendo uma analogia, optar por um plano de saúde é como optar por um carro, e não por um conjunto de auto-peças. Mas existem diferentes modelos de carros de acordo com as necessidades e capacidade de pagamento das famílias. Alguns necessitam de utilitários e outros de transporte urbano de fácil acomodação nas vagas públicas. O importante é que a finalidade do carro, que é transportar a família, assim como a finalidade do plano, que é proteger a necessidade de saúde da família de forma coerente com suas necessidades, fiquem preservadas.


LC - Há algum paralelo a essa proposta em outros países que o senhor conheça?


AM – Uma das questões mais discutidas no universo da assistência médica, e incluída nos princípios do valued-based-healthcare (VBHC), é a colocação do paciente como centro do sistema de saúde. Nesse particular o uso de ferramentas que permitam a segmentação de populações de acordo com suas necessidades tem sido uma das abordagens prioritárias para focalizar a atenção à saúde nos pacientes como centro do sistema[1].  Assim, um conjunto de segmentos populacionais deve ser meticulosamente definido com base em evidências de risco atuarial e de risco ao paciente e o sistema de assistência médica terá que oferecer uma gama sensata de serviços integrados para cada segmento e disponibilizar esses serviços em quase todos os lugares.


Nos Estados Unidos – o país onde a oferta de serviços de saúde é baseada em planos individuais, de empresa, ou coletivos – a segmentação sempre esteve na base do desenho de planos de saúde. A Kaiser Permanent, por exemplo, desenha os planos de saúde de acordo com as necessidades de cada indivíduo para adequar o valor do prêmio e a oferta assistencial às necessidades fundamentais do paciente. Existem planos de saúde nos Estados Unidos que cobrem somente a compra de medicamentos (Pharmacy Benefit Managed Plans) e outros cuja a a segmentação é dada pelo valor dos dedutíveis (valor teto a ser pago pelo beneficiário). Com o Affordable Care Act (Plano Obama) e a obrigatoriedade de ter um plano de saúde (derrubado posteriormente pelo Governo Trump) a segmentação de planos aumentou ainda mais para que se possa oferecer planos mais baratos de acordo com as necessidades dos grupos de mais baixa renda. Mas o segredo está no desenho destes planos como forma de garantir que outros serviços não cobertos pelo plano estarão cobertos caso o indivíduo tenha necessidade de acesso a esses serviços. 


LC - Qual é o risco para os consumidores?


AM – Um dos grandes riscos em segmentar-modular os planos de saúde é a falta de uma maior integração entre os sistemas públicos (SUS) e a saúde suplementar. Em países como o Canadá, onde existem planos de saúde complementares à oferta pública para um segmento expressivo da população, essa integração existe e funciona perfeitamente, facilitando o traslado do paciente da atenção pública para a do plano e vice-versa. No Brasil, a saúde suplementar e o sistema público funcionam como compartimentos estanques. Se uma pessoa que tem um plano necessita ter acesso ao SUS, não se sabe se vai conseguir na sequência imediata de suas necessidades e, caso consiga, terá que fazer novamente todos os exames que já foram feitos na saúde suplementar porque a interoperabilidade dos dados entre os dois sistemas não existe. Isso aumenta o risco para os pacientes e os custos gerais do sistema.


Os eventuais riscos da modulação-segmentação de planos de saúde podem ser minimizados pela forma pela qual o plano de benefícios modulado-segmentado é desenhado e também pela avaliação da cobertura do indivíduo em outras áreas não cobertas pelo plano. Por exemplo, em determinadas cidades do país onde a oferta é boa para a atenção primária e saúde da família, faz sentido que os indivíduos tenham somente planos hospitalares, mas para isso, os protocolos de referência entre os planos hospitalares e a rede pública de atenção primária tem que funcionar perfeitamente.


LC - Os planos dizem que essa mudança pode desonerar o SUS, o senhor tb avalia dessa forma? 


AM – Sim. A crise econômica iniciada em 2014 levou a uma perda de 3 milhões de pessoas do sistema de saúde suplementar pela impossibilidade de pagar planos individuais. As próprias operadoras tem inibido a oferta de planos individuais pelo aumento dos preços e pelos riscos trazidos pelo marco regulatório dos planos individuais. Estas pessoas passaram a ter que utilizar o SUS em atividades que poderiam estar sendo cobertas pela saúde suplementar caso os custos destes planos fossem menores e seu desenho adequado às necessidades específicas de cada familia.


Entendo que a segmentação dos planos de saúde, se colocada em prática de forma bem desenhada e coerente, poderia fazer com que uma parte deste universo (e das pessoas que não tem planos de saúde individual - um dos principais objetos de desejo das famílias) voltasse para a saúde suplementar, fazendo com que o SUS pudesse se concentrar nas pessoas realmente carentes e que estão fora de acesso a um sistema público de boa qualidade.


LC - Que tipo de interseção deve haver entre SUS e saúde suplementar?


AM – No longo prazo, creio que o SUS deveria estar estruturado em redes que pudessem oferecer planos de saúde para a população com a mesma qualidade e cobertura da saúde suplementar. E, por outro lado, o SUS deveria utilizar seus recursos para subsidiar planos de saúde oferecidos pelo setor público ou pela saúde suplementar para aqueles sem capacidade de pagamento ou com capacidade de pagamento limitada. Sistemas similares a estes existem em países europeus, como a Holanda e em países latino-americanos como a Colombia.


Mas o importante, no curto prazo, seria integrar experiências. Municípios de médio porte onde existe uma boa oferta pública de atenção primária mas uma má oferta hospitalar, poderiam cobrir os beneficiários dos planos de saúde suplementar com atenção primária, remunerando os serviçso públicos por este tipo de seguro parcial, ao mesmo tempo que poderiam pagar à saúde suplementar para utilizar os serviços hospitalares administrados por suas redes. Isto evitaria disperdícios e aumentaria a eficiência no uso dos serviços de saúde do país, hoje caracterizados por duplicações entre SUS e saúde suplementar e pelo alto grau de capacidade instalada ociosa, ao lado de deficiências de cobertura para os usuários do SUS.


Mas para que isso possa ocorrer de forma rápida é necessário que se tenha um registro único de saúde para cada indivíduo do país, como se tentou fazer há duas décadas com o cartão SUS e jamais se conseguiu. Esta interoperabilidade das bases de dados em saúde e sua gestão via centrais únicas de regulação para os dois sistemas seria fundamental para agilizar os trâmites de acesso e cobertura para todos.


LC - Outro ponto delicado é a liberação dos reajustes dos individuais, como o senhor vê esse ponto? 


AM – Sempre fui contra o controle de preços dos planos de saúde individuais. Minha proposta é que a ANS possa fazer um acompanhamento do crescimento dos custos assistenciais de alguns planos de saúde com melhor desempenho e divulgar, com base nas informações obtidas, como deveria ser o reajuste baseado nos provedores supostamente mais eficientes. Com base nisso a população escolheria e negociaria com o seu plano os reajustes que iriam pagar. Caso houvessem reajustes em algumas operadoras muito acima dos preços, a ANS poderia investigar se estes reajustes correspondem à realidade ou são especulativos. Caso sejam especulativos, poderiam haver sanções como a proibição de reajustes no ano subsequente. Este é um processo utilizado em alguns Estados norte-americanos na regulação dos planos de saúde.


A política de ter um teto de reajuste dos planos engessa os custos, penaliza em última instância os consumidores ao reduzir sua capacidade de negociação com as operadoras e inibe a possibilidade de incentivos para que as operadoras otimizem seus custos e se beneficiem de uma concorrência via preços. Uma política de acesso amplo a informações e transparência de custos, preços e benefícios para os consumidores favoreceria que estes pudessem tomar decisões informadas. Como disse o premio nóbel de economia Keneth Arrow a mais de 50 anos, somente reduzindo a assimetria de informações entre planos de saúde e consumidores se poderia ter um melhor desempenho nesse mercado particular.



[1] Ver Using Population Segmentation to Provide Better Health Care ...https://www.ncbi.nlm.nih.gov › pmc › articles › PMC2690331
 

quinta-feira, outubro 17, 2019

Financiamento do sistema de saúde brasileiro: a necessidade de um novo paradigma






Ano 13, Número 97, Outubro de 2019


O Financiamento do sistema de saúde brasileiro: a necessidade de um novo paradigma

Edson C. Araújo, PhD, Economista Senior do Banco Mundial
Claudia M. Tufani, MSc, Economista, Consultora do Banco Mundial

1.      O Estado brasileiro enfrenta dois desafios urgentes e as respostas a esses desafios irão redesenhar o papel e o tamanho do setor público no futuro. O primeiro desafio é superar a crise fiscal sem precedentes que o país enfrenta.  O déficit fiscal acumulado nas três esferas de governo alcançou 8,9% do PIB em 2018. A reforma da previdência e a chamada emenda do teto de gastos (EC 95) são algumas das medidas que buscam conter a trajetória de crescimento da dívida pública.  Porém, com uma carga tributária de 35% do PIB (a maior da série histórica, que começa em 1947), o Estado brasileiro continuará grande no curto e médio prazos. O segundo desafio é melhorar a qualidade dos serviços públicos essenciais sem, contudo, piorar a saúde das contas públicas. Pesquisa feita pelo IBOPE em 2016, mostra que nove em cada dez brasileiros concordam que considerando o valor dos impostos, a qualidade dos serviços públicos deveria ser melhor no país.[1]

2.      O sistema público de saúde, a despeito dos avanços nas últimas três décadas, ilustra bem o cenário desafiador que o Estado brasileiro se encontra.  Em 2018, o sistema único de saúde (SUS) consumiu, em média, 14% da arrecadação dos estados, 22% dos municípios, e quase 15% da União. São cerca de R$250 bilhões gastos no SUS  pelas três esferas de governo.[2] 
Estudo do Banco Mundial que compara gastos com saúde e resultados, conclui que o Brasil poderia aumentar os resultados de saúde em 10% com o mesmo nível de gastos; ou poderia economizar 34% de seus gastos para produzir os mesmos resultados de saúde. Além disso, o uso mais eficiente dos recursos da saúde poderia aumentar o número de consultas médicas por habitantes em mais de quatro vezes, aumentar em quase 80% o número de internações hospitalares ao ano, e aumentar a cobertura de vacinas em 42%. Tudo isso sem a necessidade de mais recursos financeiros.[3] Assim, não é surpreendente que a insatisfação da população com os serviços públicos de saúde seja alta: dados da pesquisa CNI/IBOPE 2018 apontam que o percentual de brasileiros que avalia a saúde pública ruim ou péssima passou de 61% em 2011, para 75% em 2018.[4] Ainda de acordo com dados do IBOPE, 70% dos brasileiros concordam que a baixa qualidade dos serviços públicos é mais consequência da má-utilização dos recursos do que da falta deles.1

3.      Enfrentar os desafios do SUS significa rever os atuais modelos de financiamento, gestão e organização da atenção a saúde.  É preciso alterar a atual estrutura de incentivos, o que requer mudanças fundamentais nos mecanismos de financiamento e pagamento aos prestadores de serviços. No formato atual, esses mecanismos são pouco utilizados como instru­mentos de política para influenciar ações prioritárias ou para incentivar desempenho.  A maior parte dos recursos da APS é transferida de forma per capita (PAB fixo – cerca de R$ 5 bi) e para o financiamento de programas por adesão (PAB variável – cerca de R$ 6 bi). Além disso, o Ministério da Saúde é responsável também por financiar o custeio dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), que em 2018 custaram mais de R$3.2 bi.  Ainda que os ACS sejam importantes, esses gastos tem pouca ou nenhuma contrapartida em termos de quantidade ou qualidade dos servicos prestados. 

4.      Recentemente o Ministério da Saúde apresentou uma proposta de Novo Financiamento da atenção primária a saúde (APS) que aponta para mudanças desejadas. De acordo com a proposta, o novo financiamrnto da APS seria organizado em 4 eixos: (1) Capitação; (2) Pagamento por desempenho; (3) Incentivos a Programas Estratégicos; e (4) Provimento de Pessoal. O novo financiamento da APS, em linhas com as boas práticas internacionais, adota um modelo misto de financiamento que prioriza as populações com maior vulnerabilidade econômica (bem como aquelas com maiores dificuldades de acesso aos serviços) e premia o esforço para melhorar a qualidade dos serviços e os indicadores de saúde da população. Paises como Inglaterra  adotam sistemas mistos, baseados em capitação, desde os anos 70.[5]  A maioria dos países da OCDE utilizam alguma forma de pagamento por desempenho como forma de aumentar a eficiência e qualidade dos serviços de saúde.[6] Além disso, se aprovada, a reforma seria o primeiro passo para a implantação de redes integradas de assistência à saúde no SUS, o que colocaria o Brasil em linha com as boas práticas internacionais no setor saúde.

5.      A proposta do Novo Financiamento da APS é um avanco no financiamento do SUS, porém outras reformas são necessárias.  Pelo menos duas áreas merecem atenção:  Primeiro, um dos aspectos cruciais para que o novo financiamento resulte em mudanças de longo prazo é transformar a APS em porta de entrada ao SUS.  As equipes de saúde da família (ESF) devem ser responsáveis por coordenar a atenção prestada por diferentes prestadores de forma a garantir o acesso aos serviços clinicamente necessários e ao mesmo tempo conter os custos do tratamento. Essa função da APS tem sido adotada por países com sistema de saúde de acesso universal, como Canadá e Inglaterra. Segundo, embora o financiamento da saúde deva ser público, sua provisão não precisa ser estatal. A  provisão de serviços públicos de saúde por agentes privados pode resultar em ganhos de eficiência ao SUS.  Sao muitas as evidências de que prestdores que funcionam com gestão autô­noma, tais como as Organizações Sociais em Saúde (OSS), têm melhor desempenho do que os que estão sob administração pública direta, desde que bem es­tabelecidos mecanismos de regulação.  No estado de Sao Paulo, a contratação de servicos de APS através de OSS resultou em aumento do acesso aos servicos e e reducao do numero de internaçoes por condicoes evitaveis.[7]

6.      Juntas, as mudanças propostas irão promover melhor uso do recurso público da saúde. A crise fiscal e a necessidade de melhorar a qualidade dos servicos públicos pode ser uma oportunidade para buscar solucoes inovadoras, que deixem no passado o paradoxo que o ex-ministro Delfim Neto denominou de "Ingana", um país com carga tributaria da Inglaterra e serviços públicos de Gana.[8]  A reforma  do SUS pode ser o primeiro passo para tal transformacao estrutural do Estado brasileiro.


[1] Pesquisa CNI/IBOPE. Retratos da Sociedade Brasileira - Serviços públicos, tributação e gasto do governo. 2016.
[2] Dados de 2018, fonte SIOPS/MS.
[3] Banco Mundial (2017). Um Ajuste Justo. Análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil. Volume I: Síntese.
[4] Retratos da sociedade brasileira: saúde pública / Confederação Nacional da Indústria. Ano 7, n. 44. Brasília: CNI, 2018.
[6] Cheryl Cashin et al. (2014). Paying for Performance in Health Care: Implications for health system performance and accountability. European Observatory on Health Systems and Policies.
[7] Greve e Coelho (2017). Evaluating the impact of contracting out basic health care services in the state of Sao Paulo, Brazil. Health Policy and Planning, 32, 2017, 923–933.

segunda-feira, agosto 26, 2019

Trabalho voluntário como Complemento ao SUS: A experiência do Instituto Horas da Vida





Ano 13, No. 96, Agôsto de 2019



Na postagem de hoje, o blog Monitor da Saúde entrevista o Dr. João Paulo Nogueira Ribeiro, que junto com o Rubem Ariano,  fundaram o Instituto Horas da Vida (IHV), uma organização não-governamental, que conta com profissionais de saúde voluntários, voltada para o atendimento gratuito à pessoas não atendidas pelo SUS com renda familiar inferior a 3 salários mínimos em suas necessidades de saúde. A instituição também se relaciona com outros profissionais da saúde, ONGs, voluntários de outras áreas, pacientes, laboratórios, óticas e tem uma enorme transparência em suas contas, sendo auditada pela Cokinos Auditores e Consultores.

Dr. João é fellow da ASHOKA – uma organização não governamental internacional sem fins lucrativos que lidera um movimento global para criar um mundo no qual todas e todos se reconheçam como agentes de transformação positiva na sociedade. A ASHOKA foi criada em 1980 na Índia e está presente desde 1986 no Brasil, sendo considerada a 5ª ONG de maior impacto social no mundo, segundo a publicação suíça NGO Advisor.

O IHV tem suas atividades centradas no Município de São Paulo, mas vai se espalhando progressivamente por outros municípios, sempre contando com a idéia do trabalho voluntário. O Dr. João Paulo Nogueira Ribeiro é especialista em Clínica Médica e Geriatria, sendo também assistente da Disciplina de Medicina Baseada em Evidências na Escola Paulista de Medicina-UNIFESP.
1. Monitor de Saúde (MS) – Como surgiu a idéia do Instituto Horas da Vida (IHV) e como e quando foi criado? Qual a sua filosofia básica e suas áreas de atuação no campo da saúde no Município de São Paulo? Com quantos profissionais voluntários o Instituto conta e em que áreas de especialidade? 
A ideia surgiu quando notei que já fazia atendimentos voluntários em meu consultório e que uma plataforma que pudesse organizar e facilitar esse tipo de atendimento poderia engajar profissionais da saúde na doação de consultas. As primeiras consultas ocorreram em dezembro de 2012 e formalmente o Instituto Horas da Vida foi criado em setembro de 2013. A realização de triagens e o direcionamento dos pacientes aos consultórios de cada profissional foram pontos fundamentais para o sucesso da ONG.
O foco de atuação é a atenção básica de saúde e a missão é a inclusão social por meio da saúde, transformando quem recebe e quem faz o atendimento voluntário. O corpo dos voluntários conta com aproximadamente 3.000 profissionais em 31 especialidades médicas e nas demais profissões da área de saúde, como odontologia, enfermagem, fisioterapia, nutrição, fonoaudiologia e psicologia.
2. MS – Quais os critérios de elegibilidade e mecanismos utilizados para selecionar as pessoas que recebem atenção do IHV? Estes critérios envolvem visitas domiciliares para saber as condições das famílias beneficiadas ou a seleção é feita diretamente na porta de entrada dos serviços? Como uma pessoa necessitada poderá ter acesso ao IHV?
A metodologia do Horas da Vida consiste na parceria com ONGs (de vários segmentos) que se encarregam da triagem sócio-econômica (renda familiar de até 3 salários mínimos) e que o paciente esteja inscrito no SUS e tenha um problema de saúde ainda não atendido pelo serviço público. Desta forma o trabalho voluntário não compete e nem substitui o atendimento público, mas sim ajuda em reduzir alguns gaps de assistência.
Uma pessoa que pertença a uma das ONGs assistidas pelo IHV que tenha um problema de saúde deve procurar o serviço social desta respectiva ONG para solicitar sua consulta.
3. MS – O IHV procura dar acesso à saúde a pessoas que procuraram o SUS e não receberam atendimento total ou satisfatório. Vocês tem uma estimativa de qual a magnitude desta demanda de pessoas que procuram o SUS e não são atendidas ou são atendidas de forma insatisfatória frente às suas necessidades?
Não temos dados do SUS nestas áreas, mas o IHV já realizou mais 60.000 atendimentos. A experiência até agora tem mostrado uma carência de educação em saúde por parte das pessoas. Questões como higiene das mãos e escovação dentária são negligenciadas. Existe ainda um enorme desconhecimento de como deve-se utilizar o sistema e qual é a porta de entrada correta do SUS. Exemplo disto é o número cada vez maior de pacientes que procuram o Pronto Socorro para questões simples e não urgentes.
Por outro lado, há fortes indícios que a equipe responsável pela atenção básica precisa de melhora na infra-estrutura de atendimento, educação continuada e apoio na tomada de decisão. Consultas rápidas e/ou superficiais têm sido pouco resolutivas e geram muitos exames desnecessários.
4. MS - Como se financia o IHV e qual a magnitude das doações que o Instituto recebe? Quem são os maiores financiadores – pessoas físicas ou pessoas jurídicas? O IHV recebe doações internacionais? Se sim, quais são as instituições que mais colaboram (nacionais e internacionais) com doações?
O IHV se financia majoritariamente com a venda de serviços e consultorias na área de saúde, como a realização de mutirões, palestras e campanhas de prevenção em empresas. As doações são importantes e ajudam na sustentabilidade do orçamento de aproximadamente 1 milhão de reais por ano. O instituto já realizou serviços para a J&J internacional e recebeu premiação do Banco UBS, mas ainda não recebeu doação de entidades internacionais. Empresas do setor farmacêutico e de telecomunicações estão entre os principais apoiadores institucionais do IHV atualmente.
Um ponto interessante é que a soma dos produtos e serviços doados supera o valor investido para a manutenção do IHV. Para cada 1 real de manutenção existe uma "taxa de retorno" de 2 a 3 reais.
5. MS – Quantas horas, em média, os médicos e profissionais voluntários dedicam as atividades do IHV por semana? Existe alguma relação contratual que defina um padrão mínimo de horas de trabalho?
Não existe uma obrigação de volume de horas. A doação das horas ocorre de forma voluntária para cada profissional. A premissa é que quando um profissional faça a consulta, que ele mude de patamar a vida do paciente, com a cura, quando possível, e com  acolhimento, cuidado, atenção e orientação sempre. Esta forma tem se mostrado um outro ponto de sucesso, pois quando não se tem a obrigatoriedade da doação, quando ela ocorre se mostra mais efetiva. Em geral as consultas são mais longas, com escuta ativa, história clínica e exame físico bem realizados, o que facilita os diagnósticos, economiza exames e aumenta os desfechos positivos.
Atualmente um percentual pequeno da base de voluntários doa de forma pré determinada e a maioria doa sob demanda.
6. MS – Qual o número de atendimentos de atenção básica que o IHV vem fazendo no município de São Paulo, ano a ano, nos últimos cinco anos? Quanto isto representa do total de atendimentos da população-alvo do Instituto (na faixa de até 3 salários mínimos)? Em que faixas etárias estas pessoas são atendidas?
Os atendimentos começaram de forma tímida e foram aumentando ano a ano. O número de atendimentos gratuitos já ultrapassou 60.000. A população alvo (soma da população das ONGs assistidas pelo IHV) é de aproximadamente 120.000 pessoas, distribuídas em todas as faixas etárias.
7. MS – Que tipo de colaboração ou convênio o IHV vem fazendo com o SUS no município de São Paulo? Este convênio envolve repasse de recursos financeiros? Existe perspectivas de que este tipo de colaboração possa crescer? 
O IHV ainda não tem um convênio com o SUS. Uma parceria, que não envolverá transação financeira, está em vias de se concretizar para que o Instituto possa atender pacientes do SUS e para que os atendimentos sejam reconhecidos pelo sistema público.
8. MS – Que outros tipos de colaboração o IHV vem fazendo com outros serviços de saúde para dar continuidade ao cuidado dos pacientes (hospitais, laboratorios, farmácias, etc.) ?
O IHV realiza várias ações, dentre elas: mapeamento populacional, palestras, mutirões, ações de saúde customizadas para populações e sobre temas específicos de saúde, realização de exames e doações de óculos e medicamentos. Estas atividades engajam profissionais de hospitais, laboratórios,  farmácias e de empresas patrocinadoras. 
Hospitais podem ainda contribuir com exames e segunda opinião de grandes especialistas. Laboratórios e farmácias fazem ações em inaugurações de lojas. Em geral é um ganha-ganha, e o ecossistema do IHV aumenta em capacidade e capilaridade.
9. MS – Em que outros municípios o IHV está atuando? Existem perspectivas de que esta atuação cresça? O modelo utilizado pelo IHV prevê algum tipo de colaboração – tipo franchising – com instituições de outros municípios ou Estados que queiram aplicar este tipo de modelo de atenção às populações carentes?
Além da grande SP, o IVH já realizou ações no Rio de Janeiro, Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, Campos do Jordão e sertão da Bahia. 
Fui vencedor do prêmio Visionaris - Empreendedor Social 2018 do Banco UBS. Parte da premiação foi um programa de aceleração da PWC e nele foi planejada o crescimento da atuação do IHV. A utilização de tecnologias facilitará a atuação direta ou por meio de parcerias em outros Estados e Municípios.
10. MS – Quais as possibilidades do IHV começar a trabalhar através de tecnologias diferenciadas de acesso, tipo telemedicina? O IHV cria algum tipo de base de dados dos pacientes, baseados em prontuários eletrônicos, por exemplo?
A telemedicina começará com o treinamento e apoio a tomada de decisão na relação médico-médico e quando a regulação avançar deve seguir para teleorientação e alguns tipos de teleconsulta. O IHV possui um banco de dados baseado numa plataforma proprietária de prontuário eletrônico. Parcerias com empresas de tecnologia e análise de dados estão sendo firmadas para que possamos dar o próximo passo de forma estruturada e utilizar de forma otimizada a inteligência que estas informações produzem.
Além disso, está em desenvolvimento um aplicativo de bot e comando de voz que poderá incluir pacientes analfabetos de refugiados de outros países.
11. MS – O Brasil é um país considerado com pouca ação de profissionais voluntários no campo da saúde. Isto é verdade? Existem outras instituições trabalhando em propostas similares a do IHV no Brasil? Qual é o futuro do trabalho voluntário na área de saúde no país?
Temos muitas ações voluntárias e felizmente elas têm crescido, mas falta união entre elas e um certo nível de profissionalização. A força do trabalho voluntário ainda depende muito da persistência e resiliência dos fundadores de cada iniciativa para a transformação de uma boa ideia social numa plataforma de filantropia estruturada.
As gerações que estão chegando têm mostrado um desejo genuíno de participação e engajamento no trabalho voluntário. Tomara que isto seja uma realidade duradoura.
Sobre o futuro do trabalho voluntário na área de saúde no país, ouso dizer que ele será um dos pilares para a melhora do sistema de saúde como um todo. A força virá da integração do voluntário e do não voluntário, do público e do privado, do paciente visto como um todo e único e não mais fragmentado em múltiplas especialidades e interesses diferentes.