domingo, novembro 03, 2019

Compartilhamento de Risco em Saúde no Brasil: Entrevista para Cristina Ballerini da Editora Phoenix

Ano 13, Número 99, Novembro de 2019

Em setembro de 2019, Cristina Balerini, jornalista da Editora Phoenix, solicitou-me uma entrevista sobre modelos de compartilhamento de risco (risk sharing) na saúde. Estou reproduzindo, nesta postagem, a íntegra da entrevista. Boa leitura.

Cristina Balerini (CB) – O que são modelos de risk-sharing e como se aplicam na área de saúde?

André Medici (AM) – Qualquer negócio envolve riscos mas nem sempre os riscos são igualmente distribuidos entre as partes que estão envolvidas em um negócio. A idéia básica que está por tras do risk-sharing (ou compartilhamento de riscos) é a de que as perdas associadas a riscos em qualquer negócio podem ser negociadas e compartilhadas entre as partes através de regras, condições ou modelos estabelecidos para administrar e partilhar este risco. Estas regras e condições tem por objetivo gerar um ambiente favorável em que se maximizem os ganhos e se minimizem as perdas de cada agente que investe seu capital no negócio em questão. As regras dos modelos de compartilhamento de risco podem estar associadas a eficiência ou aos resultados esperados por quem realiza o negócio, mas também podem visar a redução das perdas associadas a externalidades, as quais não dependem e não podem ser controladas pelos agentes econômicos envolvidos.

Em geral (mas nem sempre), quanto maior o nivel de retorno esperado, maior o risco, mas existem investidores que são avessos ao risco. Por exemplo, no mercado financeiro, uma pessoa que investe em ações está submetendo seu capital ao risco de flutuações na bolsa que são multi-determinadas, mas os ganhos podem ser altos. Já no investimento em um fundo de renda fixa, o investidor sabe quanto vai receber do agente financeiro e o agente financeiro fica com todo o risco, mas poderá se apropiar do diferencial de rendimentos entre o retorno bruto do capital aplicado pelo investidor e o retorno da renda fixa que o investidor recebe. Esse diferencial poderá ser muito maior do que os ganhos de renda fixa pagos ao investidor. A gestão do risco está associada ao grau de informação detido pelo agente que administra o risco. Quanto mais informação, mas preciso é o cálculo do risco e a probabilidade de estimar os ganhos reais de um dado investimento.

No setor saúde, prestadores de serviços, vendedores de insumos e de medicamentos historicamente tendem a ser avessos ao risco. É por esta razão que preferem receber seus ganhos associados à venda de seus produtos e serviços, independentemente dos resultados alcançados para o paciente. Os hospitais, ambulatórios, laboratórios, etc., preferem receber um valor fixo previamente acordado como base de remuneração por serviços médicos ou laboratoriais prestados (fee-for-service). Mas ao assim fazer, o risco dos serviços médicos é transferido para o pagador, que pode ser o paciente, o seguro médico, ou outro como um fundo de filantropia. Em outras palavras, o paciente pode não ser curado e, mesmo assim, ele ou seu seguro médico irão pagar pelo serviço independentemente do resultado (positivo ou negativo) alcançado.

Este processo de transferência de risco para os pacientes ou para os seguros é um entre vários dos fatores responsáveis pela escalada de custos em saúde e tal situação tem sido agravada nos últimos anos pelo envelhecimento da população e o consequente crescimento do peso das doenças crônicas na carga de enfermidade. Para evitar que a concentração de risco reduza os incentivos aos pagadores, novos processos de pagamento de bens e serviços de saúde, associados aos resultados, começaram a surgir nas últimas duas décadas e parecem ser a principal tendência futura dos processos de gestão em saúde. Estas novas formas de pagamento por resultado vieram para ficar e exigem modelos de compartilhamento de risco aonde prestadores, seguros (operadoras), pacientes e fornecedores de bens como exames, medicamentos e equipamentos médicos, sejam colocados na equação, exigindo sua integração e participação no desenho dos processos e sua responsabilidade nos desfechos em saúde, de acordo com sua respectiva contribuição na cura do paciente.

CB – Em que áreas da saúde estes modelos de compartilhamento de risco estão sendo mais aplicados?

AM – Eu diria que estes modelos estão associados aos serviços, mas também a áreas que geram mais inovação no setor saúde, como a indústria de equipamentos médicos e a indústria farmacêutica em áreas inovadoras como  biológicos, medicamentos de base genética, etc. Estes modelos tem sido incentivados pelo Governo ou pelos seguros médicos em sua relação com os prestadores de serviços de saúde (hospitais, ambulatórios, médicos) e com os fornecedores de bens, como a indústria de medicamentos e equipamentos médicos.

Muitos modelos de compartilhamento de risco tem sido utilizados ​​pelas seguradoras privadas de saúde nos Estados Unidos para o pagamento de serviços médicos junto aos provedores, tendo alcançado alguns resultados econômicos positivos para os pacientes em toda a cadeia de valor da saúde. Os contratos com base em valor utilizados pelo Medicare – o programa de seguros médicos para a terceira idade nos Estados Unidos - a partir do Plano Obama é um exemplo. Estes modelos podem envolver as seguradoras, prestadores de serviços de saúde e fornecedores de equipamentos médicos e a indústria farmacêutica. Procuram, muitas vezes, mitigar riscos negativos e aumentar a probabilidade de gerar oportunidades de desenvolvimento do mercado com benefícios para os pacientes.

Mas estes modelos tem que contar com uma ampliação do papel, das responsabilidades e da capacidade do paciente em fazer escolhas informadas sobre suas opções de tratamento de saúde, pois o comportamento adequado do paciente pode influenciar positivamente os resultados em saúde. Conceitos e técnicas de administração de risco comumente utilizados em empresas de outros setores podem ser usados por seguros de saúde.

O uso de modelos de compartilhamento de risco não é um processo simples. Exige a geração e intercâmbio de informações, de forma transparente, como meio para obter evidências para regular os papéis dos distintos atores (incluindo os pacientes). Para que isso funcione os seguros devem construir relações de confiança com os demais stakeholders e processos de intercâmbio de informações com seus prestadores, fornecedores e clientes. É fundamental, por exemplo, o intercâmbio aberto e transparente dos sistemas de informações entre todos os “players” (interoperabilidade) para vislumbrar melhores processos e perspectivas, identificar e administrar os erros que porventura venham a ocorrer e estabelecer soluções negociadas de forma rápida para sua correção.

O setor saúde, na atualidade, vive uma espécie de concorrência entre os prestadores em dois mundos: o mundo físico da entrega de serviços e valor para seus pacientes e o mundo virtual das etapas de  agregação do valor, que são executadas através da integração e eficiência de seus sistemas de informação. Os chamados ativos digitais são extremamente relevantes, pois diferentemente dos ativos físicos, não são consumidos e, portanto, podem ser valorizados de forma agregada, como se fossem a
espinha dorsal de um modelo integrado de assistência médica. Já no caso da indústria farmacêutica, o espaço aberto pelo uso de medicamentos de alto custo como os biológicos e as terapais gênicas em tratamentos de maior eficácia para doenças crônicas e doenças raras, tem trazido a discussão sobre seu uso apropriado e a gestão dos seus custos nos processos de assistência médica. A percepção generalizada de que estes medicamentos apresentam altos custos constrasta com a confiança da indústria farmacêutica na validade de seus produtos e no desejo de que paguem por eles, mas cada vez mais isso representa um risco quando baseado no fee-for-service. Uma abordagem potencial para que essa confiança se extenda aos pagadores é o compartilhamento do risco entre o prestador de serviços, o seguro e a empresa farmacêutica. 

Acordos de compartilhamento de riscos para produtos farmacêuticos, com garantias de que os custos não serão pagos se os resultados não forem alcançados, podem ser usados ​​para sinalizar positivamente uma alta qualidade e confiança quando pela falta de evidências, a eficácia do produto não é facilmente observável. Embora possa haver dificuldades na elaboração de esquemas de compartilhamento de risco para cada produto, esses esquemas vem se tornando um recurso básico para a utilização destes novos produtos e podem ser a chave para o funcionamento futuro do mercado na indústria famarcêutica.

CB - Como tem funcionado os modêlos ou esquemas de compartilhamento de risco na prática para a indústria farmacêutica?

AM - Os esquemas de compartilhamento de riscos, no caso de medicamentos, tem como base relações nas quais pagadores e fabricantes de produtos farmacêuticos concordam em vincular o pagamento de medicamentos aos desfechos ou resultados de saúde alcançados, em vez de ter como base o pagamento pelo volume de produtos utilizados em base a um preço acordado. Estes novos esquemas oferecem um modelo de pagamento para produtos farmacêuticos atraente para todos, dado que todos recebem uma remuneração acordada se os resultados forem alcançados satisfatoriamente. A experiência de países como os Estados Unidos até o início da presente década demonstrou que tais esquemas apresentam algumas dificuldades de implementação associadas à medição dos resultados e sua avaliação. Os desafios na medição e a ausência de uma infraestrutura de tecnologia de informação adequada nos estabelecimentos de saúde, faz muitas vezes com que a indústria farmacêutica interessada nestes esquemas tenha que assumir custos de implantação dos sistemas de informações e métricas que podem ser recuperados na medida em que os resultados são alcançados. É por este motivo que aumenta vertiginosamente nos Estados Unidos o número de empresas de inteligência artificial associadas a geração de novos medicamentos. Assim, estes problemas parecem estar sendo superados com o avanço do bigdata e de sistemas que aumentam a interoperabilidade das bases de informação de gestão clínica, custos e experiência do paciente.

Assim, os acordos de compartilhamento de riscos, embora ainda sejam minoritários frente as estratégias amplas de venda de medicamentos, vem ganhando força com estes novos produtos, pois os pagadores e os fabricantes de produtos adquirem experiência com o conceito na medida em que as técnicas de medição e os sistemas de informação melhoram.

CB – Quais são as vantagens e desvantagens para os diferentes players (pagadores, produtores e pacientes) dos modelos de compartilhamento de risco para a indústria farmacêutica?


AM – Para a indústria farmacêutica, um acordo de compartilhamento de risco é um contrato entre um fabricante de medicamentos e um prestador de cuidados de saúde (ou eventualmente o governo ou um seguro de saúde) que ajuda a gerenciar incertezas quanto ao custo e a efetividade de um determinado medicamento. Os modelos de compartilhamento de riscos de produtos farmacêuticos, ao vincularem o reembolso de medicamentos aos resultados alcançados, oferecem um sistema de remuneração atraente para todos se o produto tiver a eficácia prometida no tratamento.  

Nesses acordos, o pagamento está vinculado aos resultados obtidos pela coleta de evidências de eficácia ao nível populacional em um ambiente de “mundo real” (em oposição ao experimental), com o desempenho avaliado com base nos resultados de saúde produzidos e registrados nos estabelecimentos provedores de serviços. Para os pagadores (seguros, provedores e até mesmo sistemas públicos de saúde) o compartilhamento de riscos oferece o potencial de ganhos de eficiência, direcionando recursos para pacientes que provavelmente receberão o maior benefício. Por exemplo, nos Estados Unidos, o atual tratamento para um paciente com atrofia muscular-espinhal custa US$750 mil no primeiro ano e US$375 mil por ano, a partir do segundo ano, durante toda a vida que resta ao paciente. A substituição por um tratamento com terapia gênica custaria somente US$4000 dolares mas levaria à cura no primeiro ano, dispensando o tratamento para os demais anos da vida do paciente. Neste sentido, o desfecho positivo poderia levar a um custo mais alto de imediato, mas a taxa de retorno de longo prazo seria elevada para o seguro de saúde e para a qualidade de vida do paciente, caso estes estivessem incorrendo nos custos do tratamento.

Por outro lado, o compartilhamento reduz o risco do paciente e dos seguros em pagar por produtos caros com benefícios questionáveis. Além disso a vinculação do tratamento ao resultado positivo evita os problemas de sub ou sobre-medicação e maior controle dos efeitos colaterais, dado o seguimento de protocolos estritos que levem ao melhor desfecho e resultados clínicos.

Para os fabricantes de produtos farmacêuticos, o compartilhamento de riscos oferece o potencial de garantir o reembolso de tecnologias que apresentam bons resultados mas cujos efeitos antes do tratamento seriam desconhecidos. Na perspectiva de uma empresa de medicamentos, o modelo oferece a possibilidade de preços mais previsíveis e a perspectiva de recompensas financeiras futuras posteriores ao tempo em que os dados adicionais sobre os resultados do tratamento estão sendo coletados. O compartilhamento de riscos também permite que as empresas farmacêuticas tornem explícitos seus resultados em realidades práticas o que pode ajudar a diferenciar seus produtos daqueles dos concorrentes. 

Em tese, o sistema teria poucas desvantagens, mas existem dificuldades de implementação em sistemas de saúde que operam em pequena escala. Na Europa, os acordos de compartilhamento de risco funcionam melhor com sistemas públicos ou de seguro social centralizados. Nos Estados Unidos, onde o sistema de seguros é essencialmente privado e descentralizado, a fragmentação do mercado e a alta rotatividade dos afiliados aos seguros pode impedir a geração de incentivos no longo prazo para sistemas de compartilhamento de risco na compra de medicamentos, os quais exigem maiores tempos para maturação e aperfeiçoamento. A falta de preços de referência dos medicamentos novos também pode inibir incentivos para o estabelecimento de sistemas de compartilhamento de risco para produtos farmacêuticos.

Alguns analistas consideram que o compartilhamento de riscos para produtos farmacêuticos é atraente em teoria, mas difícil na prática. O modelo apresenta riscos para os fabricantes que precisam enfrentar ambiguidade sobre se os medicamentos funcionarão e se o sucesso pode ser medido na prática ou na vida real e não apenas nas configurações altamente controladas dos ensaios clínicos.

O processo de compartilhamento de risco será diferenciado de acordo com diversas circunstâncias, como o tipo de tecnologia considerada, os critérios e mecanismos de avaliação escolhidos para as condições reais de uso do medicamento, os desfechos escolhidos para medir os resultados, o número de pacientes submetidos ao tratamento e outros fatores. Tudo isso influencia a determinação do custo e a complexidade para a sua implementação. Os pacientes, por outro lado, têm também suas próprias preocupações, entre elas o fato de que qualquer cobertura de um medicamento para uma condição crônica, mesmo que temporária, pode se tornar permanente a longo prazo implicando em custos sobre toda a vida que resta ao paciente. 

CB – Como o modelo de compartilhamento de risco impacta os custos na saúde?


AM - A percepção da maioria dos players nos mercados de seguro e provedores de saúde é que o modelo de risk-sharing tem um impacto positivo na redução dos custos em saúde no longo prazo, mas não no curto prazo. As evidências variam de acordo com o tipo de contrato implementado. Na California, por exempo, o compartilhamento de risco financeiro nos cuidados de saúde levou a que os custos totais de atendimento fossem 3,5% menores em 2017 do que no ano anterior, de acordo com o Atlas Regional de Qualidade e Custo de Assistência Médica, que analisa dados de 7,2 milhões de beneficiários de 7 planos de saúde naquele estado norte-americano. Os provedores de acordos de compartilhamento de risco na Califórnia também obtiveram 9,2 pontos percentuais a mais nas taxas médias de desempenho de qualidade clínica, em comparação com os provedores que ainda utilizam o modelo de fee-for-service. 

CB - É possível adotar um modelo de risk sharing para a saúde no Brasil, tanto na pública quanto na privada?

AM – Acredito que sim. Aliás, no setor privado, o Brasil já tem algumas experiências de risco compartilhado em saúde, como é o caso do modelo pioneiro aplicado pela Unimed de São José do Rio Preto em parceria com a GSK Oncologia desde 2011, onde se o desfecho é favorável, a UNIMED desembolsa a integralidade do custo do medicamento, mas se o desfecho não for favorável, o desembolso do custo do medicamento fica por conta da indústria farmacêutica (GSK Oncologia). Avaliando este modelo, a gerência da UNIMED ressaltou que, além de economia de recursos para a UNIMED, houve melhoria nas bases de informação, como o registro de pacientes e análises de desempenho de tecnologia, gerando novas evidências. Isto mostra também que ha algum tempo a indústria farmacêutica tem sido proativa em buscar soluções com os planos de saúde no Brasil. Também em um seminário sobre o futuro do SUS, realizado no início de agosto na Fundação Fernando Henrique Cardoso (FFHC) o Secretário de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, Denisar Vianna de Araújo destacou o empenho da atual gestão do Ministério em realizar este tipo de acordos de compartilhamento de risco, com potencial para um conjunto de medicamentos para o combate ao cancer e doenças raras. Um dos exemplos é o caso do medicamento Spinraza indicado para atrofia muscular degenerativa, cuja decisão foi tomada no primeiro semestre de 2019. Neste caso, o Ministério da Saúde monitoraria os resultados da administração do medicamento e só pagaria caso o desfecho fosse exitoso. No entanto, o que falta ainda é um número maior de experiências e a criação de protocolos que permitam simplificar e tornar mais custo-efetivos os processos de implantação para veriricar resultados. Com a criação destes processos e protocolos a indústria, o governo e as operadoras poderão se interessar em realizar mais contratos de compartilhamento de risco gerando potencialmente menores custos e melhores resultados para os pacientes.

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