Ano 10, No. 71, Fevereiro de 2016
No mundo atual, existe um crescente consenso de que os mecanismos de seguro saúde devem buscar garantir uma separação entre as funções de seguro e de provisão de serviços de saúde. No entanto, essa discussão nem sempre é bem entendida no plano conceitual. Vários países da América Latina enveredaram por organizar, de forma parcial ou integral, o seu sistema de saúde através de sistemas de asseguramento. É o caso do Chile, Colômbia, México, Perú, Equador, Uruguai, Argentina e até mesmo do Brasil, dado que quase um terço da população utiliza planos privados de asseguramento da saúde, regulados através da Agência Nacional de Saúde Suplementar.
Se bem que a
separação das funções é importante para que se tenha maior transparência nos
mecanismos de compra e venda de serviços, ajudando também a tornar transparente
os cálculos atuariais dos mecanismos de sustentabilidade do seguro, muitos
seguros mantém sua rede própria de serviços (o que se conhece como integração
vertical), o que tem aspetos positivos e negativos. Os aspectos positivos são
relacionados ao controle maior que o plano pode ter em momentos onde é
necessária a contenção de custos. Os aspectos negativos se relacionam ao fato
de que, muitas vezes a integração vertical não permite que se avance na
transparência dos custos assistenciais, fazendo com que os prêmios de seguro
encobertem ganhos escondidos na relação de uma compra interna dos serviços de
sua própria rede (como ocorre em algumas empresas de seguro de saúde na
Colômbia).
Independentemente
deste tema, é necessário precisar que a regulação de um plano de saúde envolve
ambos aspectos: os aspectos técnico-financeiros do seguro, mas também os
aspectos de garantia da provisão de serviços. A presente postagem procura
esclarecer este tipo de discussão no excelente artigo de Leandro Fonseca da
Silva, economista pela UFRJ, ocupando a posição de Gerente-Geral de Acompanhamento das Operadoras
e do Mercado na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Leandro tem pós-graduação
em Finanças pela PUC-Rio e mestrado em Regulação na London School of Economics
and Political Science (LSE). Após seis anos no setor privado, ingressou no setor
público brasileiro. Desde 2006 atua na área de Economia da Saúde, tendo sido
Coordenador-Geral de Economia da Saúde do Ministério da Fazenda e Diretor-Adjunto
na ANS. Ademais, é egresso de curso de formação da carreira de Especialista em
Políticas Públicas e Gestão Governamental da Escola Nacional de Administração
Pública (ENAP), principal órgão de formação dos gestores públicos no Brasil.
Com vocês, os esclarecimentos sobre quem entende efetivamente desta área
Plano de saúde é um tipo de seguro ou é prestação de
um serviço?
Este breve
artigo pretende abordar uma questão frequentemente debatida entre aqueles
profissionais que atuam no setor de saúde suplementar e de seguros no Brasil:
se os planos de saúde são apenas uma modalidade de seguro ou se são
empreendimentos que prestam serviços de assistência à saúde. Refletida nessa
questão está uma aparente dicotomia entre o que se pode chamar de definição técnica
e definição social da função de um plano de saúde. O que se pretende explorar aqui
é a necessidade de se entender essa aparente dualidade como sendo, na
realidade, um fato diante do marco regulatório e das expectativas da sociedade,
sendo, portanto, fundamental superá-la definitivamente em favor de uma
discussão mais pragmática para aprimoramento setorial. Afinal, a expansão do
acesso à assistência à saúde com qualidade e que “caiba no bolso”; associada ao
desenvolvimento de um sistema sustentável de proteção aos indivíduos e famílias
para não entrarem na pobreza ou piorarem sobremaneira sua condição econômica
por conta de doenças é que deveriam estar no centro do debate.
A definição social da função de um plano de saúde está em grande parte
estabelecida na lei que regula o setor (Lei nº 9656/1998), nas várias normas
emitidas pela Agência Reguladora do setor (ANS – Agência Nacional de Saúde
Suplementar) e em diversas manifestações coletivas ou individuais dos usuários
deste sistema. A lei setorial define plano de saúde como prestação continuada
de serviços ou cobertura de custos assistenciais médicos, hospitalares e
odontológicos. Por sua vez, diversos normativos emanados pela ANS reforçam o
entendimento de que os planos são uma prestação continuada de serviços ao
estabelecer, por exemplo, obrigações às operadoras de planos de saúde em termos
de prazo máximo de atendimento aos usuários pelos seus médicos,
independentemente de serem contratados, credenciados, referenciados ou
cooperados. Não por acaso, portanto, a expectativa manifestada dos usuários,
individual ou coletivamente (através de entidades de defesa do consumidor ou
associações de consumidores), é de que os planos de saúde são os responsáveis
pelos serviços de assistência à saúde prestados, ainda que haja uma separação
formal entre operadoras de planos de saúde e prestadores de serviços de
assistência à saúde (i.e., médicos, clínicas, hospitais e laboratórios). Ao fim
e ao cabo, se a lei e as normas setoriais reforçam que os planos de saúde são
uma prestação continuada de serviço, é natural que os usuários tenham
expectativa de que, ao contratarem uma operadora de planos de saúde, a mesma
seja responsabilizada pelo o que acontece em toda a cadeia produtiva que
envolve a prestação desse serviço.
Por sua vez, o que se chama aqui de definição técnica de plano de
saúde pode ser referenciada não apenas na origem do setor, mas também na lei e
em várias outras normas emitidas pela ANS. O advento do plano de saúde
decorreu, em grande medida, da necessidade de se reduzir o impacto econômico sobre
as famílias de uma eventual doença que pudesse atingir algum de seus membros. A
depender dos gastos com a assistência médica, todas as reservas financeiras
poderiam ficar comprometidas e as famílias falirem. O plano de saúde ao reduzir
esse risco seria, em sua origem, um tipo de seguro. Por sua vez, a lei setorial
brasileira estabelece que os serviços de assistência à saúde podem ser
contratados junto às operadoras de planos de saúde em forma de pré-pagamento ou
pós-pagamento, sem limite financeiro. Estabelece ainda que as operadoras devem
estar suficientes em termos de garantias ao equilíbrio econômico-financeiro de
forma a não comprometer a continuidade e a qualidade do atendimento à saúde. Assim,
a lei também reproduz elementos essencialmente securitários ao entender que um
plano de saúde pressupõe a existência de um grupo (ou pool) de contratantes que não querem ficar expostos ao risco de
falência pessoal ou familiar na eventualidade de uma doença e, portanto, que as
operadoras precisam administrar os recursos destes contratantes para garantir o
equilíbrio econômico-financeiro daquele mútuo, de forma a cobrir despesas decorridas
e a decorrer. A regulação econômico-financeira emitida pela ANS reflete, em grande
medida, o entendimento técnico de que a operação de planos de saúde possui em
sua origem e no que foi também estabelecido no marco legal, diversos elementos
tipicamente securitários.
De fato, o que aproxima tecnicamente os diversos ramos de seguros dos
planos de saúde é que, em essência, são instrumentos para lidar com o mesmo
problema econômico fundamental: como diminuir os riscos financeiros associados
a despesas inesperadas, porém essenciais e que precisam ser cobertas. A solução
para esse problema econômico foi dada há centenas de anos[2]
através de um arranjo financeiro que redistribui os custos das despesas
inesperadas entre todos os membros de um pool,
qual seja, através do mecanismo do seguro. O organizador desse arranjo
financeiro (o segurador) recolhe então pagamentos (prêmios) dos contratantes
(segurados) com a promessa de pagar (ou cobrir) eventuais despesas (sinistros) previstas
em contrato. O conceito que une, portanto, planos de saúde e seguros é o de
cobertura de riscos.
O conceito de risco desenvolvido aqui é essencialmente o de risco
financeiro que pode advir da ocorrência de um evento com elevado impacto em
termos de custo. Nesse sentido, quanto maior o grau de risco que o segurador se
propõe a cobrir, maior deve ser o seu preço (ou prêmio). Existem, na prática,
quatro grandes fatores a serem considerados na composição de um prêmio de
seguro:
I.
O custo atual das
perdas/sinistros;
II.
As despesas administrativas e
operacionais para a manutenção do pool;
III.
O possível ganho financeiro decorrente do
recebimento antes do desembolso; e
IV.
O fator de risco associado ao pool.
Quanto maior a variação em torno de uma perda esperada média, maior
o risco. Ou seja, se a partir da lei dos grandes números pode-se calcular a
esperança matemática da ocorrência de um determinado percentual médio de perdas
(sinistros) em um determinado pool, uma
elevada variância em torno desse percentual médio torna maior o risco de perda para
o segurador. Assim, o fator de risco associado ao pool está ligado à variação de possíveis resultados de um evento
aleatório naquele pool, o que deve
estar adequadamente refletido no prêmio para fins de manutenção da solvência do
segurador.
De todo o exposto até aqui, resta claro que os mesmos cuidados que devem
ter as seguradoras em torno do estabelecimento do prêmio (precificação), do
gerenciamento de riscos, da administração prudente dos recursos que estão sendo
administrados para que possam ser honradas as despesas de eventos cobertos
contratualmente e da manutenção de capital suficiente para reduzir o risco de
insolvência também precisam ser observados pelas operadoras de planos de saúde.
Por isso a regulação econômica do setor de saúde suplementar tem grande
semelhança com a normatização do setor de seguros.
Em linhas gerais, a regulação econômico-financeira das operadoras de
planos de saúde estabelece uma série de exigências em termos de garantias
financeiras e de capital, visando a preservação da liquidez e da solvência das
operadoras. No que diz respeito às garantias financeiras, as chamadas provisões
técnicas se fazem necessárias para induzir uma gestão de recursos adequada para
lidar com os riscos esperados da operação – principalmente, provisões de eventos
ou sinistros já ocorridos, tendo sido avisados ou não. Estas provisões, por sua
vez, precisam ter sua contraparte em ativos garantidores, tipicamente de
elevada liquidez e baixo risco. Já a regra de capital, além de estabelecer um
patamar mínimo para entrada no setor, requer um capital adicional proporcional
ao tamanho da operação. Tal capital adicional ou margem de solvência tem o
intuito de servir como uma “rede de segurança” caso os fatores de risco
associados ao pool sofram alguma
variação não prevista que exija um dispêndio além do esperado pela operadora. Interessante
notar aqui que para a regulação, quanto mais capitalizadas as operadoras de
planos de saúde, melhor, pois estão menos expostas ao risco de insolvência;
enquanto que para os controladores, quanto menor o capital a ser investido,
melhor, pois o retorno sobre o capital investido (ROIC, no acrônimo em inglês)
tende a ser maior.
Tomando-se a evolução histórica da regulação da saúde suplementar,
pode-se notar fases distintas. A primeira fase da regulação, até 2010, foi mais
intensamente dedicada à regulação econômico-financeira. Obviamente, diversas
normas de cunho assistencial foram expedidas pela ANS no período, todavia,
pode-se dizer que a maior intensidade em termos de intervenção na atividade
veio da regulação econômico-financeira. A segunda fase da regulação, a partir
de 2010, por sua vez, foi mais intensa no aspecto assistencial. Novamente, isso
não quer dizer que normas de aspectos econômico-financeiro não tenham sido
expedidas, mas sim que tiveram como linha-mestra apenas ajustes finos nos
pilares regulatórios já existentes em termos de garantias financeiras e
exigências de capital. A regulação no período pendeu mais intensamente para as
questões assistenciais, notadamente ampliando coberturas mínimas e aumentando o
enforcement regulatório para que as
operadoras garantissem acesso aos serviços de saúde e atendimento adequado ao
usuário de planos de saúde.
Para os próximos anos, uma pergunta adicional que surge é se a
regulação deve se voltar para os aspectos econômico-financeiros, em um novo movimento
do pêndulo regulatório. Difícil dizer, tendo em vista que as decisões de
normatização setorial são tomadas em uma estrutura colegiada e, portanto,
diversas visões sobre o que deve ser priorizado precisam ser compatibilizadas.
Pode-se dizer, contudo, que há um elenco de temas de viés econômico-financeiro
que podem ser objeto de regulação. Por exemplo, a evolução da atual regra geral
de capital mínimo exigido para uma regra que privilegie modelos próprios de
capital baseado em riscos (de subscrição, operacional, de crédito e de
mercado), a indução para uma melhora da qualidade deste capital em termos de
maior liquidez, a regulamentação do compartilhamento de risco entre operadoras
ou seguradoras e resseguradoras e a criação de incentivos à adoção de boas
práticas na gestão e na governança das operadoras, com foco em risk management.
O importante aqui é entender que não há que se falar em uma disputa
sobre qual deve ser a regulação setorial – se apenas dedicada aos aspectos
relacionados à origem securitária dos planos de saúde ou se com foco apenas no
consumidor e nos serviços de assistência à saúde. Cabe aos formuladores de
políticas, especialistas e estudiosos do setor superarem a discussão de como
deveria ser o marco regulatório do setor. A realidade que se impõe, tanto em
função do marco legal quanto da expectativa da sociedade, é que a regulação
deve ter esse duplo foco – técnico e social. Portanto, no Brasil, plano de
saúde é uma modalidade de seguros, mas também é um serviço contratado para
continuamente prover assistência à saúde. O entendimento dessa realidade como
algo com baixíssima probabilidade de mudar pode permitir uma discussão mais
pragmática acerca dos aprimoramentos regulatórios para fins de desenvolvimento
setorial. Um planejamento de ênfase regulatória nas diferentes dimensões que
caracterizam o plano de saúde pode, nesse sentido, diminuir a percepção de
movimentos pendulares em favor de um projeto de longo prazo para o setor.
[1]Artigo escrito em 4 de fevereiro de 2016. Ressalve-se que as
opiniões aqui expressas são de responsabilidade do autor e não são
posicionamento institucional do órgão em que atua.
[2] Na história Ocidental do seguro, atribui-se seu surgimento à
necessidade de cobrir os riscos dos empreendimentos marítimos europeus que
ocorreram na época da Renascença.
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