segunda-feira, julho 10, 2017

A Crise e o Setor Saúde no Brasil




André Medici


Ano 11, Número 87, Julho de 2017



Desde o segundo semestre de 2014, o Brasil tem enfrentado a maior crise econômica da história republicana. Entre 2014 e 2016, o PIB per-capita, que mede a geração de riqueza por habitante no país, havia tido uma queda acumulada de 9,3%, indicando que em média os brasileiros estão quase 10% mais pobres do que ha 3 anos atrás. O anúncio das reformas (trabalhista e da previdência) pelo Governo Michel Temer, com a perspectiva de sua aprovação ainda em 2017, tiveram algum impacto na melhoria do nível de confiança dos investidores, o que tem sempre reflexos positivos na economia. Assim, no primeiro trimestre de 2017, o PIB cresceu cerca de 1% em relação ao mesmo trimestre do ano anterior.


Analisando esse crescimento se conclui que o mesmo foi puxado basicamente pela agropecuária, que apesar de seu baixo peso na composição do PIB (apenas 5,5%, segundo o Instrituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE), registrou a maior expansão em mais de 20 anos, com um crescimento de 13,4% em relação ao trimestre anterior, e a tendência, segundo os prognósticos, é que a expansão do PIB agrícola continuará no segundo trimestre até o fim do ano. A indústria cresceu apenas 0,9% e o setor serviços, onde se inclui o setor saúde, apresentou um decréscimo de 0,7% no primeiro trimestre, mantendo o mesmo rítmo de queda que já apresentava nos dois trimestres anteriores. Vale ainda destacar que, apesar da positiva queda das taxas de inflação no primeiro trimestre de 2017, outros indicadores apontavam que o processo de recuperação necessitaria melhorar outros indicadores. Para exemplificar, o consumo das famílias no primeiro trimestre de 2017 recuou 0,1% e a Formação Bruta de Capital Fixo se reduziu 1,6%. A taxa de investimento do primeiro trimestre de 2017 foi a mais baixa já registrada nos últimos vinte anos (15,6% do PIB).


Mas se haviam perspectivas de crescimento para 2017, estas começaram novamente a ser atenuadas a partir de maio, por motivos de ordem basicamente política. As denúncias de corrupção do Governo Temer, provocadas pela articulação entre a Procuradoria Geral da República (PGR) e a delação premiada dos empresários da JBF, trouxeram suspeitas que podem comprometer não só o Presidente da República, seus acessores e ministros, mas também o presidente do principal partido de oposição aos governos passados, gerando um clima de grande desestímulo e um sentimento generalizado de falta de alternativas entre a população. Aumentam, desta forma, os riscos para os investidores e empresários que apostavam numa recuperação econômica lenta e gradual a partir de 2017.


A maior ameaça com esta nova conjuntura política se encontra na perda da capacidade do Governo em empurrar as primeiras reformas necessárias para ajustar economia, especialmente a da previdência social, dado que a reforma trabalhista, apesar do tumulto criado pela bancada petista no senado, foi aprovada em 11 de julho de 2017. Mas na ausência des reformas como a da previdência e num contexto de baixo crescimento, a arrecadação de impostos se reduzirá. O espaço para a redução dos juros da dívida pública também estará comprometido, aumentando a parcela da arrecadação dedicada ao pagamento dos encargos da dívida. Com isso, se reduzirão os recursos que potencialmente poderiam ser utilizados para que o Governo possa manter seus compromissos com programas sociais, inclusive aqueles associados a saúde pública. Com a queda dos recursos e a rigidez dos contratos de trabalho, boa parte dos gastos em saúde do governo e do setor privado passam a estar associados ao pagamento de salários e encargos trabalhistas, engessando os recursos orçamentários e limitando a compra de medicamentos, insumos e equipamentos necessários para o funcionamento adequado dos serviços públicos de saúde.


A aprovação da PEC-95, como mencionei em artigos anteriores, poderia ter sido uma garantia de que, mesmo com um orçamento público com crescimento vegetativo nos próximos anos, os gastos com saúde poderiam crescer mais se outros gastos públicos ineficientes ou supérfluos se reduzissem, como os de pagamentos de juros da dívida pública, gastos com beneficios previdenciários fraudulentos e o atendimento a emendas parlamentares, por exemplo. Mas sem a reforma da previdência e outras que poderiam vir, como a tributária, que seriam âncoras para sustentar um processo de disciplina fiscal de longo prazo no país, a PEC-95 deixa de ser um instrumento de revalorização das áreas importantes de proteção do gasto público, como saúde e educação, e  a negociação do orçamento passará a ser suscetível aos caprichos dos grupos de interesse representados no Congresso.


Os exemplos que vem ocorrendo em estados como o Rio de Janeiro, onde até mesmo os salários de funcionários da secretaria de saúde deixam de ser pagos e os contratos com organizações sociais são rompidos, podem se generalizar em outros estados, levando os sistemas estaduais e municipais de saúde a uma situação próxima ao caos. Isso poderá afetar, não apenas a rede pública, mas também a rede privada que presta serviços para o SUS, a qual tratará de buscar formas alternativas para financiar seus custos fixos.


No que se refere a saúde suplementar, os problemas já vem se acumulando a algum tempo. Entre dezembro de 2014 e dezembro de 2016, o número de beneficiários de planos médicos de saúde suplementar caiu de 50,7 para 47,9 milhões, ou seja, uma redução de quase 3 milhões de assegurados que deixaram de contribuir em função do desemprego do chefe da família ou do cônjuge, no caso dos planos coletivos, ou por perda de renda familiar, no caso dos planos individuais. Entidades como a Associação Brasileira de Medicina de Grupo de Empresas (ABRAMGE), em seus boletins de conjuntura, prevêem em 2017, com a perspectiva de que haja algum crescimento econômico, que a situação possa melhorar, levando o número de beneficiários de volta ao patamar dos 48 milhões. Mas depois dos incidentes políticos de maio de 2017, não se sabe como se comportará a recuperação do emprego, da renda e, portanto, da capacidade das empresas e da população em financiar planos de seguro de saúde.

Tal situação já afeta a própria rentabilidade do setor de saúde suplementar. Por exemplo, considerando as entidades vinculadas a ABRAMGE, a receita de contra-prestações de saúde cresceu 12,7% entre 2015 e 2016, em função dos aumentos dos prêmios, mas esse crescimento foi inferior ao crescimento das despesas assistenciais, que foi de 14,1%. Isso levou a uma redução do resultado operacional do setor que em 2016 foi menos da metade do registrado em 2015.

Mas os problemas que se observam no setor saúde durante a crise apenas exacerbam tendências que já se colocam a algum tempo, em função de defeitos estruturais da forma como se organiza, tanto o setor público como a saúde suplementar no Brasil.

No que se refere ao setor público, existem os problemas associados à falta crônica de planejamento e gestão, ao crescimento do setor baseado mais no clientelismo político do que nas necessidades da população, à inequidade na forma pela qual os investimentos e os recursos de custeio do setor são distribuidos e à ineficiência de um setor que não se organiza para alcançar resultados, recompensar os sucessos e penalizar os fracassos. O setor público de saúde no Brasil, pela forma como se organiza, nunca terá o financiamento que necessita, porque qualquer recurso adicional que se coloque acaba vazando pelos ralos de ineficiência do sistema.

Por outro lado, no que se refere a saúde suplementar, falta uma regulação que oriente o setor a incorporar mais promoção, prevenção, atenção básica e integração com o setor público. Os planos e seguros de saúde devem ser complementares (não suplementares) no financiamento do sistema, sendo pagos pelas empresas e famílias com capacidade de financiamento de modo a liberar os recursos públicos para subsidiar a população que não tem capacidade de pagamento ou os gastos catastróficos incapazes de serem sustentados com o orçamento das famílias.

O setor saúde no Brasil deve passar por reformas que estabeleçam uma cultura de asseguramento, do ponto de vista do financiamento, e de resultados na gestão setorial. O financiamento da saúde  não deve ser fragmentado entre o SUS, a saúde suplementar e os gastos diretos das famílias, mas sim fazer parte de um sistema unificado de gestão de riscos de saúde que integre de forma harmônica e equitativa as distintas fontes de financiamento. A integração das fontes garantiria a sustentabilidade do financiamento e a coordenação dos recursos disponíveis para a saúde, evitando duplicações, desperdícios e carências e evidenciando que a saúde não é apenas um direito, mas também um dever e responsabilidade de todos, cabendo ao Estado zelar prioritariamente por aqueles que não têm capacidade de se organizar e financiar os recursos necessários ao cumprimento de suas necessidades de saúde.

Os recursos do SUS atualmente financiam uma camada da população que poderia prescindir do suporte público, e ao mesmo tempo deixam sem acesso uma parte expressiva da população mais pobre do país, que ainda vive em regiões com falta de infraestrutura de saúde. Em outras palavras o sistema de saúde no Brasil atende de maneira desproporcional às necessidades daqueles que podem financiar parcial ou totalmente suas necessidades de saúde, através de canais privilegiados do SUS ou de processos de judicialização, e nega o direito dos mais pobres em ter uma cobertura básica que lhes permita garantir assistência em condições de dignidade.

Do ponto de vista da escala de gestão, os municípios (especialmente aqueles com menos de 100 mil habitantes) não cumprem com os requisitos para garantir uma mínima eficiência na entrega de serviços. Se deveriam orgarnizar redes regionais de saúde, geridas de forma empresarial, que atendam a requisitos mínimos para manter um fluxo regular de utilização plena ou quase plena das unidades de saúde e que minimizem o risco atuarial de aumentar desproporcionalmente os custos do sistema sem a correspondente atenção médico-assistencial.

As redes regionais de saúde deveriam harmonizar o financiamento do SUS e dos planos de saúde privados, integrando os serviços através da demanda, onde aqueles com capacidade de financiamento manteriam seus planos enquanto que aqueles sem capacidade de financiamento receberiam subsídios integrais ou parciais para ter acesso aos mesmos serviços, através de estratégias subsidiadas que lhes garantam os mesmos direitos nas mesmas unidades assistenciais. Para tal, a diferença entre ser atendido em uma unidade pública ou privada deixaria de existir. As duas teriam perfil e investimentos similares e seriam financiadas pelos mesmos mecanismos de pagamento e submetidas a mecanismos de regulação, gestão, controle e supervisão similares.

Caberia ao Estado e a gestão das redes regionais, a avaliação, o monitoramento e a geração de incentivos que permitam que o sistema seja orientado para os resultados e remunerado de acordo com o seu alcance. Todas as unidades de saúde estariam submetidas a processos permanentes de garantia de qualidade e acreditação obrigatória, tendo acesso a linhas de crédito para modernizar e adaptar suas instalações, equipamentos, projetos gerenciais e equipes de saúde.  Para que este processo funcione, seria necessário o uso crescente de tecnologias de informação e comunicação e a implantação efetiva de um cartão nacional de saúde acoplado a uma base de dados que permita uma gestão adequada dos benefícios, independentemente do nível de subsídios que os indivíduos recebam, assim como a transição de uma situação de subsídio para outra, quando houver necessidade.  

Por fim, ao contrario do SUS que hoje se caracteriza por recursos humanos mal pagos e desmotivados, o novo sistema deveria se basear em remuneração e progressão funcional acoplada aos resultados,  garantindo oportunidades profissionais, planos de carreira, aprendizagem e aperfeiçoamento.

Muitas vezes as crises podem impedir que os investimentos em transformações desta natureza se realizem no curto prazo. Mas é importante ter a consciência que os momentos de recuperação econômica não devem ser momentos de acomodação ou repetição dos erros passados, os quais geraram no Brasil um dos sistemas de saúde mais impopulares no contexto mundial dos países de renda média e alta.

 

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