quinta-feira, outubro 25, 2018

Em Busca da Eficiência: O SUS na Encruzilhada - Ano 12, Número 90, Outubro de 2018






A presente postagem é um artigo de Edson Correia Araujo, economista senior de saúde do Banco Mundial, responsável por projetos e pelo diálogo na área de saúde no Brasil. O artigo complementa a postagem passada (relacionada ao tema dos baixos níveis de financiamento à saúde no Brasil) enfocando o tema da baixa eficiência dos serviços de saúde no país, o qual deveria ser objeto central das políticas de saúde  para o próximo governo. Edson se graduou em economia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e tem mestrado em Economia da Saúde pela Universidade de York (Reino Unido) e Doutorado pela Queen Margaret University (Edimburgo, Reino Unido). Tem vários anos de experiência em áreas de financiamento, eficiência e reformas de saúde na América Latina, África e Ásia. É coordenador e principal autor dos estudos do Banco Mundial sobre eficiência dos gastos públicos em saúde no Brasil, realizados ao longo dos últimos anos.


Em Busca da Eficiência: O SUS na Encruzilhada
Edson Correia de Araújo

 

O periodo eleitoral coincidiu com a celebração dos 30 anos da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), um dos principais avanços introduzidos pela Constituição de 1988.  Os 30 anos do SUS oferecem uma oportunidade única para o debate sobre as conquistas e os desafios do sistema público de saúde brasileiro e  opções para seu aperfeiçoamento.  Este debate é importante tanto para melhorar a atenção à saúde, garantindo serviços que satisfaçam às necessidades e expectativas da população basileira, como para o equilíbrio das contas públicas, na medida em que a saúde tem um dos maiores orçamentos do governo brasileiro (R$231 bilhões em  para os três níveis de governo em 2015,  R$115 bilhões apenas a União em 2017). Mantido o padrão atual de crescimento nominal dos gastos, a conta do SUS alcançará mais de R$700 bilhões em 2030.[1]

Figura 1 - Projeção Nominal dos Gastos do SUS (2014-2030)
Fonte: Banco Mundial, 2018

É indiscutivel que a criação do SUS melhorou a vida dos brasileiros, notadamente os mais pobres.  O estabelecimento da cobertura universal a partir da criação do SUS expandiu a rede de prestadores o que permitiu o acesso a serviços de saúde em locais onde não estavam acessíveis.  A expansão da oferta e do acesso aos cuidados de saúde foram acompanhados de melhorias em indicadores, como, por exemplo, reduções significativas na mortalidade infantil e materna.[2] O SUS tem também um papel importante na redistribuição de recursos sociais. Recente análise do Banco Mundial mostra que os gastos com saúde beneficiam os grupos de mais baixa renda – os 40% mais pobres recebem mais de 50% dos gastos públicos com saúde.[3] No entanto, são muitos os desafios para consolidar essas conquistas e responder às necessidades de saúde da população. 
 
O SUS é frequentemente apontado como superlotado, de baixa qualidade e com escassez de profissionais de saúde. A saúde é frequentemente apontada como uma das principais preocupações da população brasileira, seja entre os mais de 170 milhões de brasileiros que dependem exclusivamente do SUS, seja dos outros 25 milhões que tem planos ou seguros de saúde e dependem, mesmo que forma parcial, do sistema público.  Dados da pesquisa IBOPE-CNI de Avaliação do Governo de Setembro de 2018 apontam que a 89% do população avalia o sistema público de saúde como ruim ou péssimo.[4] 


A explicação frequente para esses problemas é que o governo não gasta suficiente com saúde, porém as evidências apontam para uma realidade mais complexa.  Em relação ao seu PIB, o Brasil gasta com saúde 9.1%, ou seja, tanto quanto a média entre os países da OCDE (9%) e mais do que a média entre seus pares econômicos e regionais (6,7% e 7,2%, respectivamente).[5]  Entretanto, ao contrário da maioria de seus pares, menos da metade do gasto total com saúde no Brasil, mais precisamente 42%, é gasto público.  Este percentual é inferior à média entre os países da OCDE (73.2%) e àquela entre os países de renda média comparáveis ao Brasil (59%), estando o percentual de gastos públicos em saúde do país apenas acima da média dos BRICS (46%).  No entanto, comparações internacionais mostram que esses países obtêm melhores resultados dos gastos com saúde do que o Brasil.  Relatório do Banco Mundial aponta que existe claro escopo para fazer mais com os recursos atuais.[6]  As ineficiências do sistema público de saúde custam R$22 bilhões por ano aos cofres públicos (aproximadamente 20% de todo o gasto federal com saúde no Brasil). Mais eficiência poderia resultar em ganhos (nominais) acumulados de aproximadamente R$989 bilhões até 2030.

Melhorar a eficiência do SUS significa que mais pessoas poderiam ter acesso aos serviços de saúde (ou mais serviços poderiam ser oferecidos) e melhores resultados de saúde poderiam ser alcançados.  Por exemplo, melhor eficiência poderia aumentar o número de consultas médicas por habitantes em mais de quatro vezes (do atual 1.72 para mais de 8.36 consultas por habitante ano).  Isso ajudaria a reduzir um dos grandes gargalos do sistema atualmente que são as listas de espera para consultas com especialistas. No setor hospitalar, o SUS poderia aumentar em quase 80% o número de internações ao ano sem necessidade de mais recursos financeiros. Se todas as cirurgias de revascularização do miocárdio do SUS fossem realizadas em hospitais de alto volume, cerca de mil óbitos teriam sido evitados entre 2014 e 2016.  Na atenção primária à saúde (APS), a cobertura da ESF (estratégia de saúde da família) poderia aumentar em média 40% e a cobertura de vacinas em 42% apenas com o uso mais eficiênte dos recursos existentes. Mas a eficiência significa também mais efetividade, ou seja, que mais vidas poderiam ser salvas. Uma APS mais eficiente poderia reduzir em 15% o número de mortes evitáveis entre a população de 5-75 anos de idade e em 8% entre a população de zero a cinco anos de idade.  


Tabela 1: Resultados de Eficiência APS e MAC, Brasil e Regiões – 2013




Atenção Primária à Saúde (APS)


Região


Escore Médio Eficiência


Folga (R$)a, b


Projeção de Consultas Médicas (%)


Cobertura PSF (%)


Gasto per capita (R$)b


Centro-Oeste


0.58


877.35


73.40


60.9


253.2


Nordeste


0.75


1,301.33


55.70


72.5


153.1


Norte


0.69


354.78


43.60


54.7


145.6


Sudeste


0.58


4,267.59


63.90


60.5


214.3


Sul


0.53


2,328.48


76.40


69


283.7


Brasil


0.63


9,129.53


63.60


64.6


205.3


Média e Alta Complexidade (MAC)


Região


Escore médio

Eficiência


Folga (R$)a, b


Projeção - Internações Ajustadas (%)


% Hospitais < 50 leitos


Gasto per capita (R$)b


Centro-Oeste


0.24


869.03


85.30


0.71


246.9


Nordeste


0.31


2,793.98


79.50


0.61


166.5


Norte


0.35


297.19


65.00


0.62


108.6


Sudeste


0.28


6,910.19


78.70


0.42


250.1


Sul


0.26


1,808.50


83.00


0.54


226.8


Brasil


0.29


12,678.89


78.6


0.55


211.1


Fonte: CONASS, 2018 – dados do Banco Mundial, 2017; Araujo et al., 2017.

Notas: a) recursos que são perdidos devido às ineficiencias (perdas); b) valores em Reais de 2013.

 

Muitos são os fatores que causam este cenário de ineficiências. Entre eles estão, sem dúvida, a corrupção, a má gestão e o mau uso e alocação dos recursos existentes.  Porém, as principais fontes de ineficiência são resultado de problemas sistêmicos, de como o sistema está estruturado e de como funciona, e requerem mudanças nas formas de gestão, financiamento, e organização da atenção à saúde.  Para superar esses desafíos, o SUS necessita urgentemente de reformas estratégicas que resolvam os problemas atuais como a baixa qualidade da atenção e as ineficiências, ao mesmo tempo em que previnam futuros riscos trazidos pelo envelhecimento da população e pela crescente carga das doenças crônicas. 

 

Os pilares mais importantes dessas reformas são: (i) Racionalizar a oferta e a gestão dos serviços ambulatoriais e hospitalares para maximizar escala, qualidade e eficiência; (ii) Melhorar a integração e a coordenação dos cuidados dentro do SUS, através da implantação de redes integradas de atenção à saúde (RAIS); e (iii) Aumentar o desempenho dos serviços e da força de trabalho em saúde, com expansão da oferta de profissionais, mudanças nas relações contratuais de trabalho, introdução de incentivos para aumentar a produtividade dos profissionais e mudança nos sistemas de pagamento a provedores baseados em volume para outros baseados em valor e resultados. Essas reformas têm por objetivo aumentar a eficiência, a efetividade, e a qualidade dos serviços do SUS, de forma a garantir a sua sustentabilidade no médio e longo prazos.[7]

A rede de servi­ços ambulatoriais e hospitalares do SUS é altamente ineficiente. Os serviços operam com elevada capacidade ociosa (ou seja, baixas taxas de ocupação de leitos hospitalares), há deseconomias de escala devido ao pequeno volume de serviços (a maio­ria dos hospitais é pequena e/ou de escala limitada - 80% dos hospitais do SUS tem até 100 leitos, 55% tem até 50 leitos) e existe concorrência entre prestadores de serviços (as Unidades de Pronto Atendimento – UPAs – frequentemente compen­tem por pacientes com a APS e hospitais e não se integram plenamente em sistemas de referência e contra-referência).  As taxas de ocupação de leitos hospitalares são muito baixas, em média, 45% para todos os hospitais do SUS e apenas 37% no caso dos leitos de alta complexidade.[8]  As taxas de ocupação observadas no SUS são muito inferiores à média da OCDE, de 71%, e muito abaixo da taxa de ocu­pação desejável, entre 75% e 85%.  Portanto, há espaço para reduzir o número de hospitais e ambulatórios, para maximizar economias de escala e para implantar sistemas funcionais de referência e contra-referência.




Figura 2: Os hospitais brasileiros são tipicamente pequenos e ineficientes, Brasil – 2018

a) Tamanho do hospital, proporção cumulativa       b) Tamanho do hospital e eficiência


 

Fonte: Banco Mundial, 2018.

A gestão da saúde enfrenta de­safios persistentes relacionados a rigidez imposta por regras estritas de adminis­tração pública. O arcabouço legal limita a capa­cidade dos provedores e formuladores de políti­cas em introduzir inovações no sistema de provisão de serviços.  São muitas as evidências de que os hospitais que funcionam com gestão autô­noma, tais como as Organizações Sociais em Saúde (OSS) têm melhor desempenho do que os que estão sob administração pública direta, desde que bem es­tabelecidos mecanismos de regulação. No estado de São Paulo, comparações sistemáticas realizadas entre hospitais gerais estaduais da administração direta e OSS, demonstram que os hospitais administrados por OSS obtém melhores resultados em termos de tempo médio de permanência, taxa de ocupação, renovação de leitos, utilização de salas de operação, taxa de cesáreas, in­fecção hospitalar e gastos em relação a produção.[9]  Na APS, há evidências de que a estratégia de contratação, também através de OSS, aumenta o número de con­sultas na APS em aproximadamente uma consulta por usuário do SUS por ano e reduz o número de internação evitáveis[10]. A falta de autonomia também limita a capacidade dos provedores de gerir a força de trabalho eficientemente, pagar por desempenho e/ou demitir em caso de baixo desempenho.

A fragmentação dos cuidados é um gargalo fundamental na rede de prestação de serviços do SUS. Atualmente existe pouca coor­denação entre os níveis de atenção e a fragmentação da rede do SUS resulta em duplicação de serviços e excesso de capacidade, além de perda de economias de escala e custos operacionais mais altos. A experiência internacional demonstra que a formação de redes integradas é a melhor maneira de assegurar a coordenação da atenção à saúde em diferentes contextos e ao longo do tempo.  Nos países da OCDE, a coordenação da atenção é uma resposta política fundamental para aumentar a eficiência da prestação de serviços de saú­de com menos internações (e reinternações), atenção de mais alta qualidade e menos erros médicos, além de prescrição e uso mais apropriados de medicação.   

A implantação das RAIS necessaria­mente terá de racionalizar o acesso aos serviços especializados e otimizar os sistemas de referência e contra-re­ferência de pacientes. A Estratégia de Saúde da Família (ESF) visou introduzir na APS a função de porta de entrada (gatekeepers), mas as relações funcionais concretas en­tre as equipes de saúde da família e os especialistas e hospitais são limitadas ou inexistentes. Países como Alemanha, Reino Unido, França e Dinamarca implan­taram arranjos em que os médicos da APS são os gatekeepers – os pacientes são obrigados, ou incentivados, a cadastrar-se junto a um clínico geral (ou médico da família) e precisam ser encaminhados por este clínico geral para ter acesso à atenção especializada.

Para estruturar o sistema de prestação de serviços do SUS em torno das RAIS será preciso introduzir mudanças nos fluxos de financiamento do sistema de duas maneiras: primeiro, redirecionando recursos da atenção hospitalar e ambulatorial para a APS. Com base na análise de eficiência, seria possível realocar aproximadamente R$13 bilhões por ano e manter os serviços (e resultados) de MAC nos níveis atuais. Em segundo lugar, os atuais repasses federais para a APS de estados e municípios - Piso da Atenção Básica (PAB) - poderiam ser adaptados para incluir um componente de pagamento por desempenho baseado em um conjunto de indicadores previamente acordados entre o nível federal, os municípios e os prestadores de serviços de saúde (unidades de APS, ambulatórios e hospitais). 

Propor uma agenda de eficiência ao SUS é essencial para consolidar e expandir os avanços dos últimos 30 anos.  Alcançar melhores resultados dos gastos com saúde é um desafio global.  A maioria dos países enfrenta desafios para prover serviços de saúde eficientes e sustentáveis para sua população. A experiência dos países que consolidaram seus sistemas de saúde, com reformas periódicas, mostra que a consolidação do SUS depende da capacidade de adotar medidas avançadas para sua modernização, indo além das amarras ideológicas que têm impedido reformas estruturais.  Propor uma agenda de eficiência ao SUS é buscar soluções para o consolidar ‘SUS real’, o SUS do cotidiano de usuários e gestores.

NOTES




[1] Araujo et al., (2018). SUS 30 anos (no prelo). 
[2] A redução da mortalidade infantil ficou mais lenta nos últimos anos  e cresceu 11% entre 2015  e 2016.
[3] Banco Mundial (2017). Um Ajuste Justo - Análise da Eficiência e Equidade do Gasto Público no Brasil. https://www.worldbank.org/pt/country/brazil/publication/brazil-expenditure-review-report
[4] http://www.portaldaindustria.com.br/estatisticas/rsb-44-saude/
[5] Os pares econômicos são os países de renda média e os regionais, países da América Latina como Chile, México e Colômbia.
[6] Banco Mundial (2017). Um Ajuste Justo - Análise da Eficiência e Equidade do Gasto Público no Brasil. https://www.worldbank.org/pt/country/brazil/publication/brazil-expenditure-review-report [7] http://pubdocs.worldbank.org/en/545231536093524589/Propostas-de-Reformas-do-SUS.pdf
[8] Araujo et al., (2018). SUS 30 anos (no prelo). 
[9] Mendes e Bittar (2017). Hospitais Gerais Públicos: Administração Direta e Organização Social de Saúde. BEPA, 14(164):33-47.
[10] Greve e Coelho (2017). Evaluating the impact of contracting out basic health care services in the state of Sao Paulo, Brazil. Health Policy and Planning, 32, 2017, 923–933.

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