sexta-feira, novembro 03, 2023

Inovações na Produção Farmacêutica: Estará o Brasil preparado?

Ano 18, Número 136, Novembro de 2023

André C. Medici

 

A inovação e as promessas para a indústria farmacêutica brasileira

Nos últimos anos, a indústria farmacêutica tem passado por grandes transformações, não apenas pela progressiva substituição da indústria de base química pelas de base biotecnológica e genômica, mas também pelo desenvolvimento de novos processos de fabricação e controle de qualidade de medicamentos. Entre estas inovações podemos destacar os processos de produção contínua (em substituição à tradicional produção em lotes), a impressão 3D, e o uso massivo das tecnologias de informação, como a inteligência artificial, aprendizagem de máquina (machine learning), internet das coisas, produção inteligente, big data, processos robóticos, block chain, realidade virtual e muitas outras. Estas inovações têm impulsado a eficiência global da indústria farmacêutica nos últimos anos, com implicações, inclusive, na melhoria da qualidade, velocidade de produção, redução do desperdício, aumento da flexibilidade e maiores possibilidades de otimização e controle dos processos produtivos.

Estaria a indústria farmacêutica brasileira preparada para operar com base em inovações como os processos de produção contínua ou o uso das tecnologias de informação na fabricação de medicamentos? A resposta não é automática. Segundo os dados da Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (INTERFARMA), o Brasil seria em 2022 o sexto maior mercado farmacêutico mundial, e as maiores empresas farmacêuticas nacionais[1] tem incorporado inovações, não apenas pela sua dimensão e dinamismo, mas também pela sua relação com a produção e o mercado internacional.



No entanto, a eficiência da indústria farmacêutica no Brasil tem sido influenciada por uma série de fatores, incluindo regulamentação pública, recursos para a pesquisa e desenvolvimento e acesso da sua produção aos mercados nacionais e internacionais. Algumas empresas brasileiras têm uma boa reputação internacional, enquanto outras enfrentam desafios em termos de eficiência e competitividade.

Os anuários estatísticos produzidos pela Secretaria Executiva da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (SCMED) do Ministério da Saúde mostram que, ainda que o acesso a medicamentos básicos seja um grande problema no Brasil, a atividade industrial no setor parece ter se contraído, especialmente durante os anos da pandemia do Covid-19, como mostra o gráfico ao lado. Verifica-se que entre 2015 e 2022 houve uma redução no número de produtos farmacêuticos comercializados no Brasil. O número de empresas farmacêuticas ativas no país, ainda que tenha aumentado entre 2015 e 2019, teve uma redução a partir de então, apesar do pico verificado no ano de 2021. Entre 2021 e 2022, o faturamento da indústria farmacêutica brasileira se reduziu de 135,3 para 131,2 bilhões de reais, com uma perda de 3%, e o número de embalagens comercializadas se reduziu de 7,7 para 5,7 bilhões no mesmo período (quase 26% de redução).

O mercado de produtos biológicos tem crescido lentamente no Brasil, apesar da crise pandêmica. A percentagem de biológicos comercializados aumentou de 4.5% para 4.6% entre 2019 para 2022 e o faturamento de produtos biológicos chegou a 26% do faturamento total da indústria farmacêutica em 2022, o que não é tão diferente dos Estados Unidos, que está na ponta deste mercado, onde o faturamento dos biológicos alcançou 37% do mercado farmacêutico.

Outro fato positivo a ser destacado é o crescimento do número de produtos farmacêuticos genéricos presentes no mercado brasileiro, que passou de 35% para 38% do total de produtos farmacêuticos disponíveis entre 2019 e 2022. O faturamento no mercado de genéricos evoluiu de 12% para 41% do total de vendas de medicamentos no país, no mesmo período. Os genéricos respondem por 36,7% das vendas em unidades no conjunto do mercado farmacêutico brasileiro[2]. Em países como Espanha, França, Alemanha e Reino Unido, onde o mercado de genéricos já está mais maduro, a participação desses medicamentos é de 51%, 62%, 57% e 74%, respectivamente. Nos EUA, onde os genéricos têm mais de 50 anos de existência, o índice é de aproximadamente 60% de participação em volume[3].

A atual política de saúde no Brasil tem, entre uma de suas principais ações, o fortalecimento do Complexo Industrial da Saúde (CIS), abrangendo não apenas a indústria farmacêutica, mas também a produção de equipamentos médicos, dispositivos médicos e produtos para a saúde. O objetivo do CIS é promover o desenvolvimento econômico, a inovação e a melhoria do acesso a produtos de saúde no Brasil.

Em tese, o fortalecimento do CIS teria o potencial de promover a integração e a diversificação da indústria de saúde brasileira, para reduzir a dependência de importações e aumentar a capacidade de resposta durante crises de saúde e evitar problemas de desabastecimento como os ocorridos durante a pandemia do Covid-19. Na área de inovação, o governo pretende contribuir para o desenvolvimento de novos medicamentos e tecnologias de saúde, tornando a indústria mais dinâmica e competitiva. Com isso, se pretende também fomentar o acesso da população a medicamentos e produtos de saúde para garantir que cubram suas necessidades de forma mais eficaz e efetiva.

Mas o fortalecimento do CIS na área farmacêutica somente será efetivo ao melhorar a regulação e o ambiente de negócios da indústria, através da simplificação e redução da burocracia para a aprovação de novos medicamentos e da agilização de recursos para o investimento e para o desenvolvimento de parcerias entre o setor privado e instituições acadêmicas e de pesquisa. A indústria farmacêutica é altamente regulamentada no Brasil, e a conformidade com as regulamentações, ainda que fundamental para garantir a segurança e a qualidade dos produtos, pode criar barreiras para inovações e para a introdução de novas tecnologias, como os processos de produção contínua e o uso de inteligência artificial, levando a necessidade de adaptações nos processos de conformidade regulatória.

Por outro lado, a adoção de tecnologias inovadoras requer investimentos significativos em equipamentos, treinamento e pesquisa. Algumas empresas farmacêuticas inovadoras no Brasil, especialmente as de médio porte, não dispõem de recursos suficientes para investir em novas tecnologias e os recursos públicos fiscais para o apoio a pesquisa contribuem de forma limitada para estes investimentos na atual conjuntura onde é necessário controlar a gigantesca pressão fiscal do país, em um contexto em que o governo tende a utilizar os recursos públicos existentes para acomodar os interesses dos donos dos três poderes da república.

A implantação de inovações baseadas na inteligência artificial requer pessoal qualificado, tanto para operá-las, como para mantê-las e otimizá-las. Mas há forte escassez, no Brasil, de centros de formação para capacitar especialistas em tecnologias da informação na quantidade necessária para trabalhar nestes processos. Essa escassez poderia, de alguma forma, ser suprida se são implementadas políticas de parcerias e colaboração com instituições de pesquisa, universidades e órgãos regulatórios, o que necessita ser melhor especificado nos planos de governo, para que passem das listas de intensões para a realidade.  

Por fim, vale mencionar que a globalização colocou por terra a ideia de substituição de importações a qualquer custo. A divisão internacional do trabalho busca se organizar a partir de vantagens comparativas e da inserção dos países com boas políticas e relações externas nas cadeias produtivas globais. Para competir globalmente, a indústria farmacêutica brasileira pode precisar adotar inovações que melhorem sua eficiência, qualidade e capacidade de produção. Se isso não ocorrer, produzir por um custo maior do que o que se pode adquirir no mercado global seria mais uma forma de desperdício e geração de ineficiências.

Portanto, ressalvadas todas essas observações, o fortalecimento do CIS poderá ser uma parte importante da solução para os desafios enfrentados pela indústria farmacêutica no Brasil, mas é necessário que seja implementado de forma eficaz e complementado por outras medidas, incluindo melhorias regulatórias, investimentos em pesquisa e desenvolvimento e melhoria no acesso a medicamentos para a população brasileira.

 

Os processos de produção farmacêutica contínua (PFC)

Uma das revoluções que recentemente tem aumentado a eficiência da indústria farmacêutica nos países mais ricos são os processos de produção farmacêutica contínua (PFC). Este tipo de processo difere da fabricação tradicional em lote, presente na maioria das empresas farmacêuticas brasileiras. Na fabricação tradicional em lotes, os produtos farmacêuticos se produzem através de lotes separados, onde as matérias-primas são misturadas, processadas e depois coletadas em lotes antes de passar para a próxima etapa. A fabricação contínua rompe com esta lógica de produção industrial já que é um processo mais simplificado e contínuo no qual as matérias-primas são continuamente alimentadas no sistema de fabricação e o produto é continuamente produzido, monitorado e controlado sem interrupções.

Em outras palavras, ao contrário da fabricação em lote onde os ingredientes farmacêuticos ativos (IFA) ou produtos farmacêuticos finais são produzidos em etapas intermitentes e geralmente ocorrem em muitos locais diferentes, a PFC permite que cada elemento da fabricação ocorra em um processo contínuo em uma única instalação. Assim, a tecnologia PFC pode ajudar a aumentar a eficiência, reduzir custos, reduzir a pegada ambiental, acelerar a produção e aumentar a escala em resposta a emergências, bem como reduzir a dependência de fornecedores estrangeiros e ajudar a prevenir a escassez, principalmente de IFA, em momentos de crises de abastecimento das cadeias produtivas globais.

As principais vantagens da PFC estão na melhoria da qualidade, agilidade, aumento da eficiência e redução de custos, redução do desperdício, flexibilidade e adaptação frente as flutuações da demanda. Isto porque a PFC permite o monitoramento e controle em tempo real de vários parâmetros, levando a uma qualidade do produto mais consistente. Reduz o tempo e aumenta a eficiência geral da produção, com efeitos de curto prazo na redução dos custos. Minimiza o desperdício, pois há menos necessidade de limpeza entre lotes e qualquer produto fora das especificações pode ser identificado e retirado imediatamente da linha da produção. Ao mesmo tempo, os fabricantes podem ajustar rapidamente a produção para atender às mudanças na demanda, tornando o processo mais customizado as exigências quantitativas e qualitativas do mercado. Exige o uso da inteligência artificial na linha de produção, fornecendo constantemente dados e insights sobre o processo de fabricação e permitindo otimizar, a cada momento, o controle do processo.

Os custos associados à PFC diferem da fabricação tradicional em lotes por vários motivos, os quais podem variar dependendo dos produtos, processos e da extensão da automação e técnicas de otimização da produção. Para exemplificar, no que se refere aos custos de capital a implementação da PFC pode exigir um investimento inicial significativo em equipamentos especializados, sistemas de automação e tecnologias de controle de processo. Neste sentido, seus custos iniciais de implantação podem ser maiores do que os da fabricação tradicional em lotes, a qual demanda menos equipamentos.

Isto se compensa, a médio prazo, pela redução dos custos operacionais, dado que a PFC tende a reduzir os custos de mão de obra, pois muitas vezes exige menos trabalho manual e supervisão do que fabricação em lote, onde os custos de mão de obra são mais elevados devido a operações manuais e requisitos de limpeza e configuração do produto lote a lote. Contudo, os custos de operação e manutenção da PFC podem ser elevados devido ao uso de equipamentos sofisticados.

A PFC minimiza o desperdício de material e reduz o consumo de matéria-prima, uma vez que há menos necessidade de material adicional para compensar variações de lote para lote, os quais geram mais resíduos devido à necessidade de limpeza de equipamentos entre lotes e ao risco de geração de produtos fora das especificações.

Ao mesmo tempo, a PFC geralmente resulta em maior eficiência de produção, reduzindo os tempos do ciclo de produção e melhorando o rendimento geral, diferentemente do que ocorre na fabricação em lotes, baseada em ciclos de produção mais longos e procedimentos complexos de limpeza e configuração. Dessa forma a PFC garante maior qualidade do produto e reduz os custos associados ao retrabalho ou rejeição de lotes fora das especificações. Os processos tradicionais demandam testes e análises de controle de qualidade mais extensos, o que pode aumentar os custos.

A PFC pode oferecer maior flexibilidade na adaptação às mudanças na demanda e às variações do produto, reduzindo potencialmente os custos de trocas e reconfigurações. Na fabricação tradicional em lote os processos são mais rígidos dificultando respostas às variações na demanda do produto ou às mudanças nas formulações dos produtos, aumentando potencialmente os custos relacionados às trocas.

 

Motivos e restrições ao uso de processos de PFC

A relação custo-benefício na comparação entre a PFC e a fabricação tradicional em lotes dependerá das circunstâncias individuais do fabricante farmacêutico. Uma análise completa de custo-benefício deve ser realizada para determinar qual abordagem é mais adequada para um determinado produto ou instalação de fabricação.

A PFC tem sido aplicada, nos últimos anos, em diversos segmentos da indústria farmacêutica, incluindo a produção de IFA, medicamentos orais sólidos, como comprimidos e cápsulas e até mesmo biofármacos. Nos Estados Unidos muitas empresas farmacêuticas conhecidas, como Pfizer, Eli Lilly, Glaxo Smith Kline e outras, vêm adotando os métodos de PFC e comprovando seus méritos comerciais, e as agências reguladoras, como o FDA, têm incentivado a implementação da PFC pela simples razão de melhoraria da qualidade dos produtos, aumento de eficiência, redução de custo e menor risco de escassez de medicamentos.

Embora a extensão do uso da PFC possa variar de uma empresa para outra, pois depende de fatores como o tipo de produto farmacêutico fabricado e os processos de fabricação específicos em vigor, sua adoção tem sido implementada em diversas instalações de produção farmacêutica em todo o mundo. Além do mais, os desafios da cadeia de abastecimento de medicamentos agravados pela pandemia da COVID-19 levantaram preocupações sobre a concentração geográfica das instalações de produção farmacêutica globais e enfatizaram a necessidade de produzir mais medicamentos em mais locais para ajudar a garantir a resiliência da cadeia de abastecimento. Por sua maior eficiência na organização da produção farmacêutica, os métodos de PFC tem recebido cada vez mais atenção da indústria e dos decisores políticos como uma forma de ajudar a expandir a produção de medicamentos essenciais nos países de renda média, como o Brasil. Assim, nos próximos 10 anos, a PFC deverá ser a regra de ouro para a produção farmacêutica, especialmente no que se refere a produtos inovadores, biológicos e genéricos.

Mas alguns fabricantes, mesmo nos Estados Unidos, têm hesitado em adotar a PFC devido aos desafios econômicos, tais como os custos dos investimentos up front necessários e a falta de capacidade da força de trabalho associados às atividades iniciais de implantação dos processos de PFC. Se somam, ainda, as incertezas relacionadas aos processos de PFC, tais como a percepção de riscos regulatórios que poderiam trazer atrasos na comercialização, maior escrutínio fiscal e obstáculos pós-comercialização.

No entanto, uma recente auditoria da FDA comparando o PCF com os resultados regulatórios da fabricação em lote, demostrou que os fabricantes que enviaram pedidos de PFC lograram tempos relativamente menores para aprovação e comercialização, em comparação com pedidos de lote semelhantes, o que foi traduzido em benefícios estimados de antecipação de receita. Esta auditoria também não encontrou nenhuma barreira regulatória substancial para aplicações de PFC relacionadas a mudanças no processo de fabricação ou inspeções de pré-aprovação[4].

A questão de fundo é como podem ser superadas essas barreiras à adoção do PFC? Uma rápida análise dos argumentos mostra que as soluções se vinculam à aceleração do conhecimento científico e técnico, à disponibilidade de recursos para investimento e a geração de incentivos regulatórios adicionais. Por exemplo, instituições como a USP, nos Estados Unidos, tem criado programas de educação e treinamento para desenvolver a próxima geração de especialistas em PFC e estudam o campo da produção farmacêutica para desenvolver padrões que redefinam o que é qualidade e explorem onde há necessidade e oportunidade para desenvolver novas diretrizes, melhores práticas e padrões de qualidade. Trabalham com parceiros para certificar e validar os processos de fabricação relacionados.

Nos Estados Unidos, a administração Joe Biden tem apoiado o aumento do financiamento do PFC para ajudar a reforçar a cadeia de abastecimento farmacêutico, e as propostas legislativas bipartidárias na Câmara e no Senado incluíram disposições para acelerar a revisão das antigas e o desenvolvimento de novas abordagens na fabricação de medicamentos compatíveis com a PFC, que incluem a criação de centros de excelência em tecnologias de PFC para facilitar a colaboração na partilha de conhecimentos e na formação da força de trabalho.

Neste particular, a definição de novos padrões de qualidade é muito importante quando se trata de inovação e adoção de PFC, pois ajudam os fabricantes e reguladores farmacêuticos a garantir que os medicamentos são seguros, funcionam conforme pretendido e estão disponíveis quando necessário para apoiar a confiança do público, ajudando as partes interessadas a definir os requisitos para demonstrar a compreensão e a qualidade do processo, a fim de trazer mais produtos com qualidade garantida ao mercado de forma mais rápida e eficiente para melhorar a saúde global.

 

Processos de PFC e saúde baseada em valor

A produção farmacêutica baseada em métodos de PFC tem uma série de proximidades com os temas de saúde baseada em valor (value-based healthcare ou VBHC), especialmente com as técnicas que revolucionaram a produção e mensuração de custos sob os temas de VBHC, como é o caso do custeio baseado em atividades orientado ao tempo (time driven activity-based costs ou TDABC). Embora PFC e TDABC sejam dois conceitos distintos, eles estão relacionados no contexto da otimização dos processos de fabricação e da compreensão da estrutura de custos da produção farmacêutica.

O TDABC é um método de contabilidade de custos, desenvolvido no âmbito do VBHC, que ajuda as organizações a determinar o custo de várias atividades dentro de seus processos. Ele fornece uma análise detalhada dos custos associados a atividades específicas e permite uma compreensão mais precisa dos direcionadores de custos. Na fabricação farmacêutica, o TDABC pode ser usado para avaliar a estrutura de custos tanto dos processos de PFC, ajudando na identificação dos direcionadores de custos para cada atividade envolvida no processo de fabricação e fornecendo insights sobre como os custos mudam durante a transição da fabricação em lote para a fabricação contínua.

A PFC concentra-se na simplificação do processo de produção, reduzindo desperdícios e melhorando a eficiência. Ao utilizar o TDABC, os fabricantes farmacêuticos podem identificar atividades que consomem uma quantidade significativa de tempo e recursos. Essas informações podem ser usadas para otimizar o processo de fabricação e torná-lo mais econômico. O TDABC pode ajudar na avaliação do impacto das mudanças nos processos e na adoção da fabricação contínua nos custos gerais.

Compreender os custos associados à PFC é crucial para tomar decisões informadas sobre a adoção desta abordagem. O TDABC pode ajudar a comparar os custos da fabricação tradicional em lote com a fabricação contínua, levando em consideração vários elementos de custo. Esta análise pode orientar as empresas na determinação da viabilidade económica e dos benefícios da transição para a PFC.

Tanto a PFC quanto o TDABC são ferramentas para melhoria contínua na produção farmacêutica. O TDABC pode ser usado para monitorar e analisar a relação custo-benefício do processo de fabricação contínua ao longo do tempo. Isso permite que os fabricantes refinem continuamente seus processos, reduzam custos e melhorem a qualidade do produto.

Em resumo, embora a produção contínua e o TDABC sejam conceitos distintos, podem estar relacionados no sentido de que o TDABC fornece uma metodologia valiosa para avaliar a estrutura de custos dos processos de produção farmacêutica, incluindo tanto a produção tradicional em lotes como a produção contínua. Os insights do TDABC podem informar decisões sobre a adoção da fabricação contínua e a otimização do processo de fabricação para obter economia de custos e melhorias de eficiência.

Inteligência artificial e processos complementares ao PFC

O uso da inteligência artificial (IA) e machine learning (ML) complementa os métodos de PFC gerando ferramentas para otimização de processos (controle de qualidade e detecção de desvios), qualidade e segurança, manutenção preditiva de estoques e de peças sobressalentes e rastreamento e controle de estoques. Algoritmos orientados por IA podem analisar vastos conjuntos de dados e identificar padrões difíceis de perceber, melhorando a eficiência e reduzindo custos[5].

A indústria farmacêutica gera vastas bases de dados durante a pesquisa, desenvolvimento e fabricação de seus produtos. O uso de big data e analytics permite gerar insights valiosos desses dados, para a tomada de decisões e a eficiência da produção, desde a descoberta de novos medicamentos, até o desenvolvimento clínico, gerenciamento da cadeia de suprimentos e farmacovigilância[6]. Permite ainda a modelagem de dados e a criação de algoritmos para o desenvolvimento de novas moléculas, melhorando a eficácia e a segurança dos produtos.

A automação robótica de processos foi integrada à fabricação de medicamentos para aumentar a velocidade e a precisão em vários aspectos do processo de produção. Os robôs são utilizados para tarefas como distribuição, etiquetagem e embalagem, reduzindo o potencial de erro humano e aumentando a eficiência da produção[7].

A tecnologia de impressão 3D fez avanços significativos no setor farmacêutico, sendo utilizada para formulações personalizadas de medicamentos, fabricação de dispositivos médicos e sistemas de administração de medicamentos. Ao permitir a produção de estruturas complexas de medicamentos com precisão, a impressão 3D tem o potencial de revolucionar a fabricação e personalização de medicamentos[8].

A Internet das Coisas (IoT) chegou à indústria farmacêutica, conectando máquinas, sensores e dispositivos para melhorar os processos de fabricação. A fabricação inteligente depende de dados e análises em tempo real para monitorar e controlar a produção, garantindo a consistência e a qualidade do produto[9].

O uso de blockchain na produção farmacêutica tem sido responsável por aumentar a rastreabilidade de cada etapa da cadeia de suprimentos farmacêutica, desde a fabricação de matérias-primas até a entrega ao paciente, ajudando a evitar produtos falsificados, a melhorar a autenticidade dos medicamentos e a garantir a segurança do paciente. Permite também a assinatura de contratos inteligentes para automatizar processos de aquisição de matérias-primas, distribuição de produtos e o monitoramento de prazos de validade, melhorando a eficiência e reduzindo erros humanos. O blockchain também pode ser usado para proteger e compartilhar com segurança dados clínicos de pacientes, garantindo privacidade e precisão nas informações o que será extremamente útil nos processos de fabricação de medicamentos individualizados.

A realidade virtual na produção farmacêutica é uma crescente iniciativa utilizada no treinamento e capacitação de pessoal e colaboração remota, design de fábricas e seus layouts, simulação de processos de fabricação, tornando mais fácil identificar áreas de melhoria, otimizar a eficiência e reduzir desperdícios.

 

A indústria farmacêutica brasileira está preparada para adotar o PFC?

Esta é uma questão difícil de ser respondida sem uma avaliação em profundidade das empresas do setor. No entanto, tanto para melhorar a oferta do mercado interno como para competir globalmente, a indústria farmacêutica brasileira precisará adotar inovações que melhorem a eficiência, a qualidade e a capacidade de produção, assim como aumentem a resiliência da cadeia de suprimentos farmacêuticos. Inovações, como a PFC podem melhorar essa resiliência de forma a contribuir para evitar as restrições que o país sofreu durante a pandemia da COVID-19.

Os processos de PFC começam a ganhar atenção da indústria farmacêutica no Brasil nos últimos anos, mas sua adoção não foi, até agora, tão difundida como nos países de renda alta. No entanto, tem havido esforços para promover o uso da PFC e melhorar a regulação de modo a facilitar a sua implementação. Atualmente, instituições acadêmicas e organizações de pesquisa brasileiras têm explorado métodos de fabricação contínua de produtos farmacêuticos. Eles conduzem estudos e ensaios para avaliar a viabilidade dos métodos de PFC e os investimentos necessários para sua implementação. Profissionais e especialistas da indústria farmacêutica brasileira têm participado de conferências e fóruns internacionais para aprender com experiências de países onde a fabricação contínua está mais consolidada.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) – órgão que regula a produção brasileira de produtos para saúde - tem anunciado seus esforços para alinhar suas regulamentações com as diretrizes internacionais, incluindo aquelas relacionadas à fabricação contínua. Isso é importante para incentivar as empresas farmacêuticas no Brasil a adotar esses métodos avançados de fabricação.

Além disso, alguns fabricantes farmacêuticos no Brasil têm demonstrado interesse em implementar processos de PFC, desenvolvendo projetos-piloto para buscar apoio e colaboração de autoridades reguladoras e instituições de investigação que permitam facilitar a adoção desta abordagem.

No entanto, a adoção de processos de PFC na indústria farmacêutica no Brasil ainda está em estágio muito inicial. Embora algumas empresas farmacêuticas em todo o mundo tenham começado a implementar processos de fabricação contínua, isso não foi ainda difundido no Brasil.

Em geral, a indústria farmacêutica no Brasil está ciente da importância dos processos de PFC, dos avanços na inteligência artificial e das tecnologias de informação na inovação e eficiência da fabricação de medicamentos. No entanto, a implementação bem-sucedida dessas inovações dependerá de diversos fatores, incluindo apoio regulatório, recursos financeiros, capacitação da equipe e parcerias estratégicas. A adoção de tecnologias como a PFC e a IA pode trazer benefícios significativos em termos de eficiência, qualidade e competitividade, mas requer planejamento e comprometimento a longo prazo. Portanto, o foco do CIS na indústria farmacêutica brasileira deveria estar voltado para a preparação gradual para operar com base nessas inovações.



[1] As 20 maiores empresas farmacêuticas brasileiras em faturamento seriam, nesta ordem, Eurofarma, EMS Pharma, Aché, Sanofi, Neo Química, Novo Nordisk, Mantecorp Farmasa, Cimed, Libbs, Novartis, Biolab Sanus Farma, Medley, FQM Grupo, União Química, Bayer Pharma, Hypera Pharma, Nestle, Astrazeneca Brasil, GSK Farma, Boehringer Ingelheim.     

[2] Dados sobre o mercado de genéricos no Brasil podem ser vistos na página da Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos e Biossimilares – Pró-genéricos. https://progenericos.org.br/genericos/mercado/#:~:text=Os%20gen%C3%A9ricos%20respondem%20por%2036%2C70%25%20das%20vendas,em%20unidades%20no%20conjunto%20do%20mercado%20farmac%C3%AAutico%20brasileiro.

[3] De acordo com os dados do Food and Drug Administration (FDA) nos Estados Unidos, 91% das prescrições farmacêuticas naquele país são feitas através do uso de medicamentos genéricos.

[4] Ver as guias para a implantação de PFC produzidas pela United States Pharmacopea (USP), link: https://www.usp.org/supply-chain/pharmaceutical-continuous-manufacturing-usp-technical-guide

[5] Em 2019, a Insilico Medicine demonstrou o poder da IA ao criar uma molécula direcionada a uma proteína relacionada à fibrose em apenas 46 dias. Desde então, eles alcançaram os ensaios clínicos de Fase II para o INS018_055, um medicamento antifibrótico descoberto pela IA, após o sucesso da Fase 0 e da Fase I. Este marco destaca o potencial da IA para acelerar o desenvolvimento de medicamentos, abordando necessidades médicas não atendidas em tempo recorde.

[6] Empresas como a Accenture e a Biogen tem utilizado computação quântica para agilizar o processo de descoberta de medicamentos. Eles adotaram um algoritmo de comparação molecular estrutural com a ajuda do 1QBit, demonstrando como a computação quântica pode potenciar a descoberta de medicamentos na indústria farmacêutica, permitindo a comparação de moléculas maiores e levando, em última análise, a avanços e curas potenciais para várias doenças.

[7] Em 2020, a Eli Lilly e a Strateos, Inc. lançaram o laboratório Lilly Life Sciences Studio em San Diego (California) - um laboratório robótico de última geração projetado para acelerar a descoberta de medicamentos. Este laboratório integra vários aspectos da descoberta de medicamentos, como design, síntese, purificação e análise, em uma plataforma totalmente automatizada, acessível através da plataforma baseada em nuvem da STRATEOS. Os pesquisadores podem controlar experimentos remotamente, promovendo experimentos reproduzíveis em tempo real, e a parceria visa ampliar o acesso à tecnologia do laboratório.

[8] Em 2015, a Aprecia Pharmaceuticals foi pioneira no primeiro medicamento impresso em 3D aprovado pela FDA, o SPRITAM, projetado para dissolução rápida em água, facilitando a ingestão por pacientes com dificuldades de deglutição. SPRITAM destina-se ao tratamento de crises parciais, crises mioclônicas e crises tônico-clônicas generalizadas primárias. Essa conquista resulta da inovadora tecnologia de impressão 3D da Aprecia, conhecida como Tecnologia ZipDose, que permite que o comprimido se desintegre na boca com o mínimo de água, destacando o potencial da impressão 3D para melhorar a fabricação farmacêutica e a adesão do paciente.

 [9] Por exemplo, muitas empresas farmacêuticas, como Pfizer, AstraZeneca, GSK, Novartis, Roche, Johnson & Jonhson, Merck, Sanofi, Eli Lilly e AbbVie, incorporaram dispositivos IoT e análise de dados em tempo real nas suas instalações de produção para garantir resultados precisos. controle sobre o processo de produção, melhore a qualidade do produto e agilize as operações.

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