quinta-feira, dezembro 07, 2023

O Futuro da Saúde na Argentina Entrevista com o economista Carlos Vassallo Sella

 

Ano 18, Numero 140, Dezembro de 2023

 


No próximo domingo, dia 10 de dezembro, Javier Milei toma posse como Presidente da Argentina. Com uma agenda disruptiva de reformas, Milei tem muitas propostas para tentar melhorar a combalida situação do sistema de saúde argentino sem financiamento, deteriorado e com acesso reduzido pelos anos de depauperamento trazidos pelo populismo dos governos Kirschner-Fernandez. Mas serão as propostas apresentadas por Milei realistas. Minha opinião foi dada em uma postagem realizada em novembro neste mesmo blog. Mas os prognósticos devem ser feitos por aqueles que respiram a economia da saúde na Argentina.

Para esse desafio, convidei Carlos Vassallo Sella, um dos maiores economistas de saúde argentino, também um grande amigo. Conheci Carlos no início dos anos noventa, quando fui presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde e participávamos de encontros acadêmicos para discutir questões desse tema relativos à região.  Carlos é formado em economia pela Universidade Nacional do Litoral e tem pós-graduação na Universidade de Bocconi (Milão, Itália). Ele é professor titular de saúde pública da Faculdade de Ciências Médicas (UNL), professor convidado da Universidade de San Andrés, da Escola de Saúde Pública da Universidade Nacional de Córdoba e da Universidade Nacional de Cuyo (Mendoza). É coordenador científico e professor do Mestrado em Política e Gestão em Saúde do Convênio Europa-América Latina da Universidade de Bologna. Além disso, é Presidente do Pacto Argentino para a Inclusão em Saúde (PAIS), um grupo que congrega vários pensadores críticos do sistema de saúde e propõe soluções para as políticas de saúde da Argentina. Com vocês, as palavras de Carlos Vassallo.



Monitor de Saúde (MS) – Quais os principais problemas que o sistema de saúde argentino enfrenta, no curto, médio e longo prazo?

Carlos Vassallo (CV) – É um momento crítico para a saúde que se vê muito afetada pela situação macroeconómica (inflação elevada, escassez de divisas), a qual se manifesta pela distorção dos preços relativos punindo aqueles que, como a grande maioria dos profissionais do sector, vivem de salários ou honorários recebidos como trabalhadores autônomos ou informais. A crise cambial provoca dificuldades crescentes no acesso a insumos médicos, materiais descartáveis, peças de reposição para manutenção de equipamentos, afetando a qualidade de serviços essenciais para a realização de cirurgias, exames de laboratórios e outras intervenções clínicas. Todos esses fatores causam frustração em todos os recursos humanos da saúde e comprometem o cuidado da população.

A médio e longo prazo, a fragilidade na governação do sistema constitui um dos desafios fundamentais para recuperar a capacidade de manobra e poder levar a cabo um longo processo de reformas e ajustamentos que permitam avançar para um sistema de saúde mais pluralista e integrado.

MS – Os governos Cristina Kirschner e Fernández contribuíram para resolver estes graves problemas do sistema de saúde argentino?

CV – Infelizmente, apesar de ter tido anos importantes de estabilidade e crescimento económico (2003-2010), o governo perdeu uma grande oportunidade de organizar o sistema e sair da emergência no setor privado para reforçar a seguridade social, através de uma reforma laboral. O setor público foi redimensionado buscando reeditar um Ministério da Saúde de um país que não existia mais. A centralização e acumulação de recursos sobrepostos e desperdiçados em programas paralelos e a ausência de uma visão estratégica sobre as funções que um ministério deve desempenhar não permitiram trabalhar em conjunto com o PAMI e a Superintendência dos Serviços de Saúde na construção da governabilidade de um sistema de saúde pluralista e diversificado com todas as consequências de uma forte segmentação social.

A questão ideológica sempre foi mais importante que a realidade para estes governos que perderam uma grande oportunidade. Depois, durante 2011, a economia entrou num processo de inflação e baixo crescimento económico que enfraqueceu a janela de oportunidade perdida no período anterior. Se eu tivesse que resgatar algo, seria o Plano SUMAR como um esquema para modernizar a relação entre a nação e as províncias através de uma modalidade de pagamento que permitisse a incorporação de incentivos e a integração de benefícios.

 

MS – Como o senhor avalia o papel dos organismos internacionais na contribuição para o processo de reforma do sistema de saúde argentino nos últimos anos?

CV - As organizações internacionais desempenharam mais um papel compensatório macroeconómico do que contribuições para reformas estruturais e contribuições qualitativas. Bastou esperar até 2020 para que a rede de critérios fornecesse elementos para a construção de um plano de benefícios, instrumento fundamental para pensar e governar um sistema tão fragmentado e desgovernado.

 

MS – O novo presidente Javier Milei apresentou um conjunto de propostas para a reforma do sector da saúde. O mais importante seria o estabelecimento de um seguro de saúde universal, operado por companhias de seguros privados, com subsídios públicos para que os mais pobres possam pagar os prémios. O que o senhor acha desta e das demais propostas do Governo Miley para o setor saúde na Argentina? Serão viáveis?

CV – A visão de Milei até então era dogmática do pensamento liberal. À medida que se aproximava do poder, começou a ver as coisas de uma forma mais realista e definida. A construção de um seguro universal a nível nacional parece distante e impossível dados os interesses em jogo e a presença relevante das províncias no esquema dos serviços públicos, a perda de relevância da segurança social nacional (devido ao desemprego e aos baixos salários). Há certo desinteresse e incapacidade do sector privado para enfrentar um desafio desta magnitude. O protecionismo e a ausência de concorrência atravessam os mercados da Argentina e, em particular, o setor da saúde, onde existem enormes empresas financeiras pré-pagas e empresas cativas na indústria de dispositivos e medicamentos, pelas quais os cidadãos acabam por pagar grandes somas. Os resultados do sistema não são condizentes com o nível de investimento realizado pela sociedade argentina, quase 10% do PIB. É verdade que existe corrupção, mas também existem elevados custos de transação, aliados aos custos de coordenação e motivação no funcionamento do sistema.

 

MS – O que se espera que aconteça com as Obras Sociais, com o PAMI, com o Ministério da Saúde e com os sistemas provinciais de saúde face às reformas que o governo pretende implementar?

CV - As obras sociais e os sindicalistas têm grande capacidade de adaptação. O seu papel próximo do poder torna-lhes mais fácil eliminar ineficiências e problemas na gestão da seguridade social. Mas negociam salários e condições, têm vantagens para que governos de diferentes tipos tenham atenção especial e evitem a destruição criativa que seria uma redução drástica do número de obras sociais para torná-las mais sustentáveis ​​e cobrir um pool de riscos maior que permita que os altos custos  associados a incorporação de tecnologia médica, que já começam a crescer, sejam controlados nos próximos anos.

Entendo que o Ministério da Saúde irá trabalhar em harmonia com as províncias, irá ajustar-se a uma situação mais real, que é a de já não gerir hospitais ou sistemas de saúde, e deverá ter clareza sobre quais são as suas funções. O que entendo é que estas funções são os cuidados de maior qualidade e segurança dos pacientes, compensação regional das desigualdades via financiamento, apoio aos governos provinciais para fortalecimento institucional, alguma inovação institucional ligada à criação de uma agência tecnológica e um fundo que permita compensar riscos de medicamentos de alto custo e baixa incidência.

 

MS – As propostas do presidente Javier Milei no setor vão ferir muitos interesses de diversos segmentos da sociedade argentina. Quais são as posições, comportamentos e perspectivas dos diferentes atores do sistema de saúde relativamente a estas propostas? Quais serão as formas de resistência e enfrentamento destes atores a estas propostas?

CV – Ainda não há um secretário ou ministro da saúde com programa. Quem trabalhava com Milei caiu há uma semana e agora enfrentamos a perspectiva de substituição. Os nomes que se ouvem estão ligados a diversos setores que fazem lobby para nomear um ministro que deveria ter consciência de governar direta ou indiretamente 10% do PIB. Relativamente às despesas correntes que têm vindo a aumentar nos últimos dez anos, ninguém faz nada para proteger o cidadão dos abusos a que é submetido. A defesa da concorrência é outra área onde poderíamos contribuir para evitar os abusos da indústria farmacêutica nos mercados locais ou o uso de medicamentos genéricos para competir e baixar os preços. Há que melhorar os arranjos para produtos biológicos e outros nichos de pequenos negócios que geram gastos sem valor agregado.

 

MS – No seu ponto de vista, qual deveria ser a trajetória das reformas do sistema de saúde argentino para alcançar o compromisso com a universalização e a equidade na saúde, na perspectiva dos Objetivos de Desenvolvimento Social das Nações Unidas até 2030?

CV - Acho que são:

Iniciar o debate sobre uma lei de saúde que organize o papel de cada jurisdição com base na Lei 23.661 sobre seguro nacional de saúde, e que contribua para evitar os problemas de assistência e financiamento que acarreta a aprovação de leis para a saúde. Definir um plano sustentável de benefícios de saúde para todos os habitantes do país;

 

Reforçar a atenção primária: Acordo com entidades médicas para promoção de modelos cooperativos ou associações de consultórios médicos privados, de forma a poder atribuir uma população a servir e o correspondente pagamento per capita, ajustado pela capacidade resolutiva dos médicos do sistema;

Criar, regulamentar e operar a Agência de Avaliação Tecnológica. Identificar, com o parecer das sociedades científicas, a lista de todas as práticas, procedimentos e medicamentos que não acrescentam valor, para que não sejam financiados nem pelo sector público nem pelo sector das obras sociais;

Propor a descentralização do PAMI com negociações com as províncias para chegar a acordo sobre a transferência de populações e recursos, devendo estas províncias assumir o compromisso explícito de incorporar com plenos direitos os membros da assistência social provincial ou o esquema estabelecido para a cobertura e atenção aos aposentados e pensionistas;

Autonomia dos hospitais e organização de redes de prestadores. Otimizar a gestão da arrecadação de serviços prestados pelo setor público (hospitais) à seguridade social e ao setor privado. Observe-se o modelo de empresa pública criado na Cidade de Buenos Aires para cuidar da arrecadação correspondente. Isto deve ser acompanhado pelo estabelecimento de um mecanismo de distribuição que promova o pagamento aos profissionais e técnicos que efetivamente cuidam e sustentam a prestação nos hospitais (residentes e outros funcionários);

Definir protocolos de segurança para o pessoal de saúde que possam ser aplicados em todos os serviços, de acordo com seu nível de complexidade e reduzir o prazo de cobrança de honorários profissionais para 30 dias com atualização de acordo com o índice de inflação;

Avaliação, controle e acompanhamento do processo de desinstitucionalização de acordo com a Lei de Saúde Mental; criação e planeamento de redes integradas de serviços de saúde mental;

Medicamentos: 1) Estabelecer um sistema que permita a rastreabilidade de medicamentos de alto custo e baixa incidência (medicamentos especiais, doenças raras etc.) e um fundo de financiamento de alto risco 2) Acelerar o processo de bioequivalência e biodisponibilidade necessária para ser poder ter uma política genérica que permita a concorrência.

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