Ano 2, No. 2, Janeiro 2007
André MediciIntrodução
A última eleição para Diretor Geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), finalizada em 7 de Novembro de 2006, foi uma das mais disputadas de sua história e marca uma crescente politicação para a escolha de cargos nas instituições globais de saúde. Em organizações como esta, onde as decisões baseadas em evidência podem salvar a vida de milhões de pessoas a cada ano, deveria prevalecer uma condução técnica, ainda que acordos políticos associados ao processo de escolha do Diretor sejam quase sempre inevitáveis. A vencedora nas últimas eleições foi Margaret Chan, candidata da China, que independentemente de seu mérito e historia pessoal, reafirma a crescente hegemonia asiática na condução dessa organização
Treze candidatos se apresentaram para esta organização, sendo que destes, dois representavam a América Latina: Alfredo Palácio Gonzales, presidente em final de mandato do Equador e Julio Frenk-Mora, Secretário de Saúde do México (cargo equivalente ao de Ministro da Saúde no Brasil). Dificuldades associadas à sucessão presidencial no Equador levaram Palácios a desistir da candidatura para dedicar-se com afinco a campanha de seu sucessor. Como representante latino-americano permaneceu até a lista curta final, Julio Frenk-Mora.
A escolha da China não se deu por acaso. Primeiramente, havia uma forte intenção dos países asiáticos em manter a posição de liderança conquistada nas eleições anteriores da OMS. Em segundo lugar, a China passará a ser, nos próximos anos, um importante produtor mundial de medicamentos genéricos, podendo contribuir para reduzir os preços mundiais dos produtos farmacêuticos – um dos fatores responsáveis pelo rápido crescimento dos gastos globais em saúde nos países desenvolvidos - sendo portanto interesse dos líderes mundiais cultivar boas relações políticas e comerciais com aquele país. Assim, é de se esperar que muitas empresas farmacêuticas multinacionais transferiram suas plantas para a China a fim de realizar investimentos produtivos nos próximos anos[1]. As vantagens comerciais oferecidas pela China ainda influenciaram os países africanos, a votar em massa em favor do candidato apresentado por aquele país.
Por motivos diversos a América Latina, nos últimos anos, tem sido progressivamente posta em segundo plano do cenário mundial. Sua posição de “classe média” internacional leva os países ricos a dirigir a ajuda externa para regiões mais pobres da África e da Ásia. No entanto, existem muitos países latino-americanos onde a pobreza extrema se associa às condições precárias de saúde, como Haití, Nicaragua, Guatemala, Honduras e Bolívia. A extrema desigualdade da Região – muitas vezes não traduzida pelas estatísticas dos informes globais – se reflete em sociedades duais, onde doenças transmissíveis e os problemas de saúde da mulher e da criança, (mortalidade materna e desnutrição, entre outros) continuam atingindo proporções elevadas entre os pobres da Região. Além do mais, a mortalidade precoce dos adultos por doenças crônicas, dada a falta de controles preventivos adequados para fatores de risco como hipertensão arterial, diabetis, obesidade e tabaco, necessitam de soluções urgentes, muitas vezes fora do alcance, dos programas, orçamento do interesse e da capacidade técnica dos Ministérios de Saúde regionais.
Doenças como o Mal de Chagas, que segundo estatísticas da própria OMS apresentam uma mortalidade 5 vezes maior do que a malária na América Latina, não são prioridades de programas internacionais da OMS, tendo os países da Região que mendigar recursos para a busca de soluções tecnicamente e economicamente viáveis para seu controle.
E inégavel que muitos países, às custas do trabalho de seus Ministérios de Saúde, lograram avanços importantes na melhoria da cobertura de seus sistemas de saúde, mas muitos problemas ainda persistem. Países como Venezuela tem experimentado recentemente fortes aumentos na incidência de doenças, antes controladas pelos governos anteriores, como o Sarampo. Neste mesmo país, as taxas de mortalidade por violência triplicaram, atingindo os níveis mais altos da Região e os sistemas de saúde se encontram cada vez mais despreparados para enfrentar mais este desafío epidemiológico e social. O dengue se apresenta como uma ameaça endêmica na Região e os países mais pobres não tem recursos para avançar em formas de detecção, prevenção e tratamento de AIDS. Alguns países do Caribe e outras nações insulares como o Haití apresentam taxas de incidência de AIDS entre as mulheres jóvens (15-29 anos) similares a de muitos países africanos. Poucos progressos tem se dado na redução da mortalidade materna e o acesso a meios contraceptivos entre mulheres em idade reprodutiva é claramente insuficiente para uma política responsável de saúde da mulher, agravada pela mezcla populista-conservadora que continua negando direitos fundamentais femininos, que contribuiriam para reduzir a mortalidade materna, como é o caso do aborto terapêutico, proibido recentemente na Nicaragua e não aprovado pelo senado chileno.
A Região vive uma epidemia de violência fora do controle dos governos (e muitas vezes alimentada por suas estratégias populistas de fechar os olhos para o crime organizado, a guerrilha e a desobediência civil) e apresenta os maiores índices mundiais de condições como depressão unipolar entre mulheres e alcoolismo entre os homens adultos.
Boa parte dos problemas de acesso aos serviços continuan agravados, o que se reflete na alta participação dos gastos diretos de seu orçamento com o pagamento de serviços e medicamentos incapazes de resolver seus problemas estruturais de saúde. Estes gastos, por definição, são regressivos e não trazem soluções técnicas viáveis para melhorar a saúde destas populações. Os altos níveis de gastos das famílias ocorrem pela falta de cobertura (ou cobertura incompleta) dos programas públicos nesses segmentos ou pela incapacidade de organizar estratégias de seguro de saúde – públicas ou privadas, mas acessíveis aos pobres - capazes de aumentar a efetividade dos recursos que gastam neste setor.
Julio Frenk, caso tivesse sido eleito, poderia representar uma grande oportunidade para que as Américas fizessem presentes seus interesses e necessidades no cenário da saúde mundial, contribuindo para uma visão regionalmente mais equilibrada do panorama mundial da saúde e também por uma distribuição internacionalmente mais justa da assistência técnica e recursos financeiros internacionais, não só pela sua extraordinária capacidade técnica e administrativa, mas também pelo conhecimento da realidade mundial e regional de saúde e dos canais de acesso aos fundos internacionais para saúde.
Mas porque será que Julio Frenk não foi escolhido, sequer, pelos países latino-americanos que votaram nas eleições?
A economía política das eleições da OMS na América Latina
O Conselho que elege o Diretor Geral da OMS é composto por 34 países que representam seis Regiões Mundiais[2]. Este Conselho, elege uma lista de 5 finalistas, os quais ao fim passam por uma votação final. A diferença de outros anos, a recente eleição caracterizou-se por uma disputa acirrada, onde os temas de geopolítica acabaram por ser prioritários frente aos temas propriamente de saúde. Vejamos porque:
a) As prioridades de intervenção dos fundos internacionais (multilaterais ou bilaterais) para a saúde se destinam cada vez mais para regiões como África e Ásia. América Latina, como mencionado anteriormente, se encontra em segundo plano frente as prioridades mundiais;
b) Europa e Ásia tem dividido a presidência da OMS desde fins dos anos oitenta, contribuindo para um progressivo esvaziamento da América Latina nas prioridades internacionais de fundos e assistência técnica para saúde[3];
c) Ao dedicar parte de sua agenda a países mais pobres com perfil epidemiológico menos complexo, a política da OMS não entrará em conflito com problemas de saúde comuns entre países da América Latina e países desenvolvidos e que levaríam a eventuais conflitos comerciais, como temas de patentes, investimento em pesquisa e desenvolvimento e transferència tecnológica[4].
d) Considerando os recursos internacionais para a saúde, América Latina gasta em média, mais que os países de mesmo nível sócio-econômico em outras regiões. Mas seus sistemas de saúde, com algumas exceções, tem sido dominados e dirigidos por uma visão tradicional, clientelista por um lado e corporativista, por outro, orientada pelos interesses dos médicos e não pelas necessidades da população. Inovações na gestão, na eficiência e na transparência no uso dos recursos raramente são bem vindas nesse contexto.
Poucos foram os países e ministros da saúde que tentaram inovar, no sentido de transmitir uma visão mais pluralista, mais social e mais eficiente para abordar o difícil tema das políticas de saúde no Continente. Podemos citar alguns nomes mais recentes (entre outros), como os de Juan Luís Londoño na Colômbia, José Serra no Brasil e Júlio Frenk no México. Mesmo com visões nem sempre iguais, todos eles trouxeram inovações importantes que aumentaram a cobertura, a equidade e a eficiência dos sistemas de saúde na América Latina. Isso sem contar os avanços contínuos que vem sendo realizados no Chile, que lançou um programa de saúde definido a partir de estudos de prioridades epidemiológicas e carga de enfermidade durante o Governo do Presidente Ricardo Lagos.
Julio Frenk, como Ministro de Salud do México, realizou um esforço inovador para aumentar a cobertura de populações pobres e excluídas, através de vários programas como o do Seguro Popular de Saúde[5]. Mas antes de ser Ministro de Saúde, já havia se notabilizado tanto como intelectual do setor[6], como pela sua passagem como segunda pessoa na hierarquia da OMS durante a administração de Gro Harlem Brundtland. Sua grande inovação durante esta passagem pela OMS foi a de organizar e aplicar, com o apoio de um grupo de renomados pesquisadores e policy makers do setor, uma metodologia para medir conjuntamente o estado de saúde e a condução da política setoral – país a país – a partir de cinco dimensões relevantes para o setor saúde. Como parte deste esforço se teve, pela segunda vêz na história, uma mensuração global da carga de enfermidade – uma poderosa ferramenta para definir prioridades em saúde - permitindo colocar a epidemiologia como centro do processo de planejamento setorial.
No entanto, a difusão dos resultados desse esforço – publicados no Informe Mundial de Saúde do ano 2000 sob a forma de ranking dos países – foi politicamente catastrófica. Algumas das dimensões, como governabilidade e justiça no financiamento do setor, não tinham suficiente robustez na informação coletada para que fossem colocadas sem reservas como critérios de classificação dos países no referido informe. Alguns dos técnicos que participaram do esforço foram contrários a publicação da informação sob a forma de ranking e sem suficientes precauções que levassem os leitores a conhecer a natureza precaria das informações.
Na América Latina, o informe de 2000 desagradou a alta hiearquia política do setor, incluindo mesmo alguns ministros de carater mais técnico. Obviamente desagradou também ao setor tradicional composto pela classe médica (que nunca quer ser avaliada), a burocracia do setor e parte da academia comprometida com o “status quo” setorial. Os motivos foram muitos. Alguns corretamente criticaram o informe pela simples impossibilidade de fazer rankings confiáveis dada a heterogeneidade da base de informação. Países com sistemas de informação mais sólidos obviamente poderiam apresentar uma informação mais próxima da realidade, enquanto que em outros, os dados não eram consistentes e o intervalo de confiança das estimativas era muito amplo. Outros criticaram simplesmente porque a avaliaçáo e a transparência põe a nú realidades politicamente incômodas e traz a baila a necessidade de políticas que, ao melhorar indicadores, poderiam eliminar previlégios e revelar corrupção, clientelismos e ineficiências.
Mas o Informe foi bem recebido por uma minoria de técnicos independentes da Região e mesmo por alguns Ministros que acreditaram na necessidade de continuar aprimorando os sistemas regionais de informação de saúde, para que os novos instrumentos metodológicos disponíveis pudessem ser aperfeiçoados e uma cultura de avaliação de resultados e intercâmbio de experiências exitosas em saúde fosse estabelecida.
Os países latino-americanos tiveram um papel importante na crítica internacional ao Informe 2000. A administração posterior a de Harlem Brundtland progressivamente desmontou a equipe e desmobilizou os esforços internacionais de pesquisa para a continuidade dos estudos iniciados pela OMS que traríam aperfeiçoamentos nas bases nacionais de dados para dar continuidade a aplicação da metodologia proposta. Esta posição se refletiu, portanto, na posição mantida por alguns países latino-americanos nas eleições da OMS.
Conclusões
A falta de unidade na posição latino-americana sobre o papel da OMS e sobre a necessidade de elevar a importância da Região nas políticas definidas por aquela instituição reflete, por um lado, a falta de um debate regional mais integrado sobre temas técnicos associados a como resolver os problemas de saúde específicos da América Latina, e por outro o elevado grau de conservadorismo político e falta de compromisso com os pobres escondidos nas promessas dos governos populistas. Em boa parte das discussões travadas nos fóruns regionais, se observa mais a disposição de cada país em demonstrar o efeito positivo de suas políticas de curto prazo, as quais não necessariamente são sustentáveis, do que a ouvir as experiências dos seus vizinhos, discutir problemas regionais comuns e traçar uma estratégia regional para enfrentá-los.
Mas a principal consequencia que emerge deste tipo de miopia política do setor saúde latino-americano, e que levou os países a não fechar um apoio regional ao nome de Julio Frenk, é a de que, ao não aprofundar no panorama mundial a singularidade da Região, se perde a oportunidade de implementar políticas globais compatíveis com as necessidades Latino-americanas.
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O autor agradece a leitura atenta e comentarios de Gustavo Nigenda da do Instituto Nacional de Salud Publica (INSP) de Mexico.
Notas
[1] Um dos países que mais se beneficiará com esse processo será os Estados Unidos, onde os medicamentos representam uma alta porcentagem dos gastos em saúde e que espera, em 2007, por em funcionamento um ousado programa de subsídios aos gastos com farmacêuticos para a população de terceira idade (el MEDICARE D).
[2] A Africa é representada por 7 votos (Quênia, Lesoto, Liberia, Madagascar, Mali, Namíbia e Ruanda); as Américas por 6 (Bolivia, Brasil, El Salvador, Jamaica, México e Estados Unidos); o Mediterrâneo Leste com 5 votos (Afeganistão, Baharian, Djibouti, Iraque e Libia); Europa, com 8 votos (Azerbaijão, Dinamarca, Latvia, Luxemburgo, Portugal, Romania , Eslovenia e Turquia), o Sudeste Asiático com 3 votos (Butão, Ceilão e Tailandia) e o Pacífico Oeste, com 5 votos (Australia, China, Japão, Cingapura e Tonga)
[3] Os cinco últimos Diretores Gerais da OMS foram Hiroshi Nakagima (Japão), Gro Harlem Brundtland (Noruega), Lee Jong Wook (Corea do Sul), Anders Nordstron (Suécia) e a recém eleita Margaret Chen (China).
[4] Não é por outro motivo que o Fundo de Pesquisa e Desenvolvimento proposto pela Comissão de Macroeconomia e Saúde nunca saiu do papel.
[5] Ver a respeito Nigenda, G. “El Seguro Popular de Salud en México”, Notas Técnicas de Salud SDS-SOC, Banco Interamericano de Desarrollo, Washington, 2005.
[6] O conceito mais importante por ele introduzido no pensamento sanitário latino-americano foi o de pluralismo estruturado, conjuntamente com seu amigo colombiano Juan Luíz Londoño, em meados dos anos noventa.
Um comentário:
Andre,
Fantastico este texto. Tenho notado a perda de espaco para AL nas organizacoes e foi muito bom ler seu ponto de vista.
Um abraco,
Fernanda Machado
Medtronic
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