Ano 5, No. 16, Junho 2010
André Medici
A Regionalização do SUS num Período de Transição
Como visto na postagem anterior, a expansão dos Consórcios Intermunicipais de Saúde (CIMS) ocorreu rapidamente na segunda metade dos anos noventa, especialmente nos municípios de menor porte. Através deles, estes municípios puderam oferecer a sua população, acesso a consultas especializadas e exames com uma tecnologia mais avançada e até mesmo com uma maior complexidade e/ou resolutividade mais apurada. No entanto, o crescimento dos CIMS praticamente estancou entre 2001 e 2005. Que fatores poderiam explicar esta estagnação? Algumas hipóteses poderiam ser aventadas a respeito.
De acordo com estudo recente de Teixeira, McDoweel & Bugarin (1) a sustentabilidade financeira dos CIMS depende, fundamentalmente, de dois tipos de incentivos: mecanismos de punição financeira introduzidos aos participantes que saiam do consórcio e ganhos tecnológicos incorporados aos serviços de média e alta complexidade para as populações residentes em municípios que não dispõe destas facilidades.
A legislação dos SUS estimula a formação de consórcios, através de regras de financiamento que permitem agregar recursos de diversos municípios na gestão de um fundo comum de saúde. Mas esta legislação não prevê mecanismos de punição, caso um município deseje sair do consórcio, como é o caso de negar o acesso de sua população a um serviço que se situa em outro município também pertencente ao consórcio.
Até o início da presente década, os incentivos financeiros à formação de consórcios – especialmente para o financiamento de serviços alta e média complexidade – estavam postos, e tanto os municipios que ofertavam como os que demandavam estes serviços saiam satisfeitos em participar do consórcio sem acumular perdas ou no acesso ou na restituição financeira. As regras ficaram ainda melhor definidas com a aprovação, por parte do Ministério da Saúde da Norma Operacional de Assistência a Saúde (NOAS-SUS), em janeiro de 2001.
Os incentivos gerados pela NOAS(2)
A NOAS-SUS definia a regionalização como a principal estratégia para estabelecer um conjunto de redes integradas de saúde no páis. Para ter acesso aos recursos do SUS, as Secretarias Estaduais de Saúde passariam a elaborar Planos Diretores de Regionalização, definindo Regiões Integradas de Saúde. Com base neste plano, à cada Região corresponderia recursos relacionados a um Plano de Atenção Básica Ampliada (PABA), que incluia procedimentos de média e alta complexidade, reduzindo os recursos repassados sob a forma de ressarcimento e aumentando aqueles transferidos sob critérios per-capita. Cada Estado seria dividido em Regiões de Saúde que deveriam prover, pelo menos, serviços de atenção básica e de média complexidade para que se qualificassem às transferências do PABA.
Os serviços de alta complexidade seriam definidos e ou ofertados de acordo com arranjos especiais entre os Estados e o nível federal de Governo e seriam financiados por meio de um Fundo para Ações Estaratégicas de Compensação (FAEC). Os hospitais públicos deixam de ser financidos através da produção de serviços e passam a depender das metas estabelecidas em comum acordo entre Estados e Municipios.
Por outro lado, a NOAS aumentava o poder dos Estados em regular a autonomia financeira dos Municípios em matéria de gasto em saúde, na medida em que vinculava tetos financeiros para as transferências de recursos associados ao cumprimento de metas por resultados. Também redefinia os critérios de habilitação de estados e municípios para o recebimento automático de recursos fundo a fundo do SUS. Assim, ela passou a ser vista pelas Secretarias Municipais de Saúde como um retrocesso no processo de municipalização da saúde.
Com vistas a obter apoio dos Municípios ao processo, a NOAS-01-2001 foi revogada e substituida pela NOAS-01-2002, de fevereiro de 2002, que busca construir alternativas para os impasses com os secretarios municipais de saúde, surgidos com a discussão da NOAS-01-2001 e melhor especificar tarefas e atividades sob responsabilidade dos três niveis de Governo, com ênfase no papel dos municípios. São definidas responsabilidades especificas e ações estratégicas para a atenção básica. São introduzidas melhorias no sistema de informações ambulatoriais, um elenco mínimo de procedimentos de média complexidade e internações hospitalares a ser ofertados pelos municípios-sede de módulos assistenciais, estabelecidos os termos de compromisso entre o município-sede e os demais municípios do polo (praticamente regulando a natureza dos CMIS existentes e futuros) e definidos os critérios e processos detalhados para a habilitação de Estados e Municípios.
As NOAS foram as primeiras normativas que avançam concretamente no processo de regionalização ao estabelecer estratégias de planejamento para a constituição de redes regionais de saúde com o objetivo de “promover maior eqüidade na alocação de recursos e no acesso da população às ações e serviços de saúde”. Introduziram a concepção dos módulos assistenciais, microrregiões, macrorregiões e regiões de saúde expressas, expressas nos Planos Diretores de Regionalização (PDR).
No entanto, com o final do Governo Fernando Henrique Cardoso e o início da Presidencia de Luiz Ignácio Lula da Silva, a implantação da NOAS-01 ficou no limbo. A visão do Ministério da Saúde durante o Governo Lula, ao ser mais favorável a autonomia dos municípios, levou o tema da regionalização a ser rediscutido.
Assim, entre 2003 e 2006 começa a se gestar uma nova concepção que, embora resgate alguns aspectos da NOAS, prevê um processo mais participativo, sob a condução dos municípios, na definição da Regionalização em Saúde no Brasil.
Os Pactos pela Saúde
A orientação da gestão do SUS, sob a égide do Governo Lula, retomou o apoio ao processo de municipalização, considerando como princípios (a) o respeito à cada esfera de governo como gestora do SUS, (b) a qualificação dos municípios, segundo o porte e suas características, na operacionalização de seu papel como gestor do SUS e (c) a necessidade de articular a colaboração das três esferas de governo: os Municípios entre si, dos Estados com os Municípios e entre si e da União com todos, com ênfase nos resultados da saúde(3).
Para operacionalizar estes princípios, se iniciou um amplo processo de consultas populares – conselhos municipais, estaduais e nacional de saúde; comissões bi-partites (em cada estado e tri-partite) e com forte participação de entidades representativas dos Secretarios Municipais (CONASEMS) e Estaduais (CONASS) de Saúde que se extendeu de 2003 a 2006.
A principal conclusão destas consultas foi a de que cada região tem suas pecularidades e não caberia ao nivel central de governo – no caso o Ministério da Saúde – definir como se configurariam as responsabilidades pela gestão do SUS em seus diferentes níveis de complexidade, sem um estudo caso a caso.
Como produto deste processo, ao invés de processos técnicos de definição de responsabilidades entre esferas de Governo, foram definidas as seguintes premissas: (a) os municípios se responsabilizariam sempre e integralmente pela atenção básica; (b) as referencias para ações de alta e média responsabilidade seriam negociadas e pactuadas em articulações entre Municípios, Estados e até mesmo ao Nível Federal, expressando em cada Região uma responsabilidade consensuada e compartilhada pelas três esferas de Governo e considerando, como pano de fundo, a qualificação do gestor municipal; (c) o monitoramento e acompanhamento de problemas fundamentais de saúde (como mortalidade infantil e materna, por exemplo) como co-responsabilidade de entidades federadas (compartilhados técnica e financeiramente pelas três esferas de Governo). Para tal se elaboraria um elenco de indicadores de resultado em saúde que acompanhariam estes programas.
Pontos importantes deste debate foram a Carta de Natal, assinada no encontro nacional dos secretarios municipais de saúde, em 2004, onde se expressava a necessidade de construir um novo pacto para a gestão do SUS, substituindo a normatização excessiva pela adesão de compromissos por resultado e superando o repasse fragmentado dos recursos e estimulando a solidariedade entre as três esferas de governo no financiamento, com ênfase numa maior co-participação dos Estados no financiamento das ações de saúde, incluindo aquelas desenvolvidas no âmbito municipal.
Com base neste movimento, se formulou um grupo de trabalho, composto pelo CONASS, CONASEMS e Ministério da Saúde que formulou as Diretrizes Operacionais do Pacto pela Saúde e Consolidação do SUS . Os Pactos substituem vários controles que antes feriam a autonomia dos municípios. Por exemplo: substitui a habilitação dos municípios (a ser concedida de acordo com as NOB-NOAS como permissão do Ministério da Saúde) por um termo de compromisso, que é uma relação contratual onde cada esfera de governo se compromete com sua parte a melhorar a gestão municipal; substitui a fragmentação das transferências financeiras por transferências em bloco (block grants) estruturadas em cinco categorias: (i) Atençao Básica, (ii) Atenção de Média e Alta Complexidade e Hospitalar; (iii) Vigilância em Saúde; (iv) Assistência Farmacêutica e (v) Gestão do SUS.
Pelo menos três pactos foram assinados até o momento: Pacto pela Vida (incluindo prioridades como saúde do idoso, cancer de colo uterino e de mama, mortalidade infantil e materna, doenças emergentes e endemias e promoção da saúde); Pacto em Defesa do SUS, orientado pela defesa dos direitos dos pacientes e comunicação social, regulamentar a Emenda Constitucional 29 (EC-29), garantir o aumento dos recursos financeiros do SUS e; Pacto de Gestão do SUS (definindo responsabilidades de cada esfera de governo, estabelecimento de diretrizes para a gestão do SUS, processos de participação e controle social, planejamento e programação pactuada integrada e gestão do trabalho e educação na saúde).
A Regionalização da Saúde no Contexto dos Pactos
Com a estrutura dos Pactos, o Ministério da Saúde passa a ser um ator mais coadjuvante e menos central na definição dos arranjos necessários ao processo de regionalização. Mas mesmo assim, dado seu carater central, as consultas realizadas com entidades como o CONASEMS e o CONASS, tem permitido ao Ministério avançar em algumas linhas gerais de como se orientará o processo futuro de regionalização. Deixando, portanto de se orientar pela oferta, o Ministério passa agora a formular uma proposta mais orientada à demanda dos Estados e Municípios, de seus gestores e de suas comunidades.
A proposta de qualificar a regionalização da saúde feita pelo Ministério, a qual surge das discussões travadas na proposta de Pactos de Saúde, é uma proposta solidária e cooperativa. Conforme expressa o Ministério, “seu avanço depende, porém, da construção de desenhos regionais que respeitem as realidades locais, estabelecendo os Colegiados de Gestão Regional (CGR) como espaços ativos de co-gestão e estimulando estados e municípios a potencializar seus
trabalhos, em uma dinâmica de regionalização viva” (4).
Com este novo enfoque (5), a regionalização objetiva garantir o direito à saúde da população, reduzindo as desigualdades sociais e territoriais por meio da identificação e reconhecimento das Regiões de Saúde. Segundo o Ministério da Saúde, os princípios que delineiam esta nova visão no processo de regionalização seriam basicamente os seguintes:
1. Territorialização - Consiste no reconhecimento e na apropriação, pelos gestores, dos espaços locais e das relações da população com os mesmos, expressos por meio dos dados demográficos e epidemiológicos, pelos equipamentos sociais existentes (tais como associações, igrejas, escolas, creches etc.), pelas dinâmicas das redes de transporte e de comunicação, pelos fluxos assistenciais seguidos pela população, pelos discursos das lideranças locais e por outros dados que se mostrem relevantes para a intervenção no processo saúde/doença – como o próprio contexto histórico e cultural da região;
2. Flexibilidade - Consiste em respeitar as diversidades regionais próprias a um país de grandes dimensões, como o Brasil, no processo de identificação das Regiões de Saúde;
3. Cooperação – É a ação conjunta realizada entre esferas de governo, entre gestores e entre as equipes técnicas no processo de implementação regional do SUS, por meio do partilhamento de experiências, do estabelecimento de ações de apoio ou na busca de soluções solidárias para as dificuldades enfrentadas em cada território;
4. Co-gestão – Consiste na efetivação, por meio do Colegiado de Gestão Regional (CGR) – de arranjos institucionais que propiciem um novo significado às relações entre os gestores da Saúde, permitindo que se desenvolvam, de forma solidária e cooperativa, as funções relativas a planejamento, programação, orçamento, coordenação, execução e avaliação das ações, das estratégias e dos serviços regionais;
5. Financiamento Solidário – Se refere à clara definição dos recursos financeiros destinados a apoiar os processos e iniciativas para priorizar os processos e investimentos que fortaleçam a regionalização, respeitando as estratégias nacionais e estaduais, assim como o Plano Diretor de Investimento (PDI) e o mapeamento atualizado da distribuição e oferta de serviços, nos espaços regionais. Desse modo, garante-se acesso amplo às ações e serviços de saúde, reduzindo as desigualdades de oferta existentes nas Regiões de Saúde;
6. Subsidiaridade - É um princípio que deve nortear as tomadas de decisão, pelo qual uma função não deve ser repassada à esfera subseqüente sempre que puder ser exercida pela esfera local. entre municípios, não deve ser repassado para outro o que pode ser realizado no município de origem. Isso pressupõe pactuação sobre quais sejam as esponsabilidades mínimas não-compartilhadas e as responsabilidades que devam ser objetos de ompartilhamento, entre as esferas de gestão;
7. Participação e Controle Social – Como princípio básico do SUS, deve ser respeitado e reproduzido ao nível das regiões de saúde criadas sob a égide do processo de regionalização.
Dados estes princípios, o processo de regionalização proposto nos Pactos prevê não só incorporar as propostas realizadas pelos Estados, através de suas instituições colegiadas, como também grande flexibilidade na organização de distintas regiões. São discutidos também temas de como configurar regiões e macro-regiões de saúde como áreas de extensão territorial contigua, as quais não devem ser entendidas como áreas de intervenção somente administrativa. Assim, três tipos de regiões de saúde se propõe ao longo desse processo: a) as intramunicipais, para aqueles municípios de grande extensão territorial ou grande densidade populacional; b) as intraestaduais, que abarcam mais de um município dentro de um mesmo Estado; c) as inter-estaduais, compostas por municípios contiguos entre dois ou mais Estados e; d) as fronteiriças, que em tese poderiam incorporar um ou mais países vizinhos.
As Regiões de Saúde seriam regidas por processos de planejamento regional, onde se estabeleceriam os seguintes instrumentos: a) O Plano Diretor da Regionalização (PDR), que conteria o desenho final do processo de pactuação com os gestores; b) O Plano Diretor de Investimentos (PDI) que expressaria os recursos de investimento tripartite para operacionalizar o PDR da Região considerada e; c) a Programação Pactuada Integrada (PPI) que definiria e quantificaria as ações de saúde para os residentes no territorio regional.
O Ministério da Saúde ainda define, em carater preliminar, uma lista das funções específicas de cada esfera de governo (União, Estados e Municípios) e enfatiza o papel dos Colegiados Regionais de Gestão, os quais O CGR deve ser composto por todos os gestores municipais de saúde dos municípios que integram a Região de Saúde e por representantes do(s) gestor(es) estadual(ais). Nas Regiões de Saúde de Fronteiras, o gestor federal também deverá compor o Colegiado.
Assim, os novos contornos do processo de regionalização procuram, mais do que fortalecer o papel dos municípios, dar continuidade a uma linha de gestão participativa que tem marcado o desenho das políticas públicas brasileiras nos últimos anos. Ainda que este processo esteja em construção, de forma lenta e gradual, ele tem gerado um maior protagonismo, tanto dos Estados como dos Municípios, na estrutura e definição dos processos de organização do SUS. Assim, nos últimos anos, os Estados tem aumentado fortemente seu papel da geração de soluções compartilhadas com os municípios para enfrentar processos concretos de regionalização. Este processo, ainda que seja assimétrico, vem progressivamente se construindo sob a liderança de alguns Estados da Federação, muitos deles utilizando as redes de saúde como processo de estruturação temática e regional no setor.
Na próxima postagem procuraremos abordar os novos conceitos de redes de saúde utilizados pelo Ministério da Saúde e a Importância do Projeto QUALISUS-Rede neste processo
Notas e Referências
(1) Teixeira, L; McDowell, M.C. & Bugarin, M. (2003), “Consórcios Intermunicipais de Saúde: Uma Análise à Luz da Teoria dos Jogos”, Revista Brasileira de Economia, Ed. FGV, 57(1) 253-281, Jan-Mar 2003, Rio de Janeiro (RJ)
(2) Ver Medici, A.C., (2002), “O Desafio da Descentralização: Financiamento Público da Saúde no Brasil”. Ed. Banco Interamericano da Saúde, Washington (DC),
(3) Ver: Ministerio da Saúde (2007), “Regionalização Solidária e Cooperativa: Orientações para a sua Implementação no SUS”, Série Pactos pela Saúde Vol. 3, Ed. Ministério da Saúde, Brasilia (DF), 2007. A atual gestão do Ministério da Saúde reconheceu o caráter inovador das NOAS, ao dizer que ela “representou um marco importante de instituição de uma lógica de estruturação de redes regionalizadas como um sistema de saúde integrado regionalmente, uma vez que trouxe elementos estratégicos de integração intermunicipal como a delimitação de referências territoriais para a elaboração de políticas, programas e sistemas organizacionais (módulos, microrregiões e regiões) e o estabelecimento de instrumentos de planejamento integrado como os Planos Diretores de Regionalização e de Investimentos. A NOAS propôs ainda mecanismos de promoção da racionalidade sistêmica como a análise de capacidade instalada, projeção de realocação otimizada de recursos e investimentos, processos de controle e regulação, etc. Todos esses elementos pretendiam o estabelecimento de bases de organização regional mais consistentes para o SUS estruturadas a partir da ampliação das prerrogativas de coordenação da esfera estadual”. Mas ao mesmo tempo, considerou inapropriada sua visão centrada nos Estados, ao dizer que “...alguns aspectos de sua formulação resultaram em insuficiências em sua capacidade de fundamentar processos consistentes de integração regional como o excessivo grau de normatização, a centralização na esfera estadual nos processos de planejamento e regulação, a ênfase na dimensão assistencial, a padronização dos recortes territoriais de organização dos serviços, a ausência na definição de um modelo de atenção, de sistemas de suporte logístico, entre outros”
(4) Idem, Ibidem
(5)Ministerio da Saude (2008), “Redes Regionalizadas de Atenção à Saúde: Contexto, Premissas, Diretrizes Gerais, Agenda Tripartite para a Discussão e Proposta de Metodologia para Apoio à Implementação”, Ed. Ministerio da Saúde, Secretaria de Assistência a Saúde, Departamento de Articulação de Redes de Saúde, Versão Para Debate, Brasilia (DF), Novembro de 2008.
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