domingo, agosto 01, 2010

Cobertura e Qualidade em Saúde: Como Medir...Como Avaliar?

Ano 5, No. 19, Agosto 2010


André Cezar Medici



Cobertura Horizontal x Cobertura Vertical



A cobertura universal dos serviços de saúde tem se tornado uma das principais preocupações dos governos em todos os cantos do mundo. O direito a saúde é essencial para o bem estar e a felicidade. Portanto, mesmo ainda longe da perfeição, todos os países, nos últimos anos, buscam aumentar progressivamente não só a cobertura horizontal, ou seja mais pessoas com acesso aos serviços de saúde, mas também a cobertura vertical, isto é, mais serviços deversificados para cobrir as diferentes necessidades das pessoas cobertas.

Como este processo é contínuo, uma de suas consequências tem sido a iniqüidade. Sempre que se estabelece a cobertura de uma nova doença, procedimento, exame ou medicamento tal cobertura não está necessariamente acessível para todos, mesmo que a Lei o diga. Barreiras geográficas, institucionais ou mesmo econômicas impedem a imediata generalização deste direito. E em muitos casos quando esse direito se cumpre integralmente, outros novos direitos já estão sendo estabelecidos. Num contexto onde a inovação científica disponibiliza constantemente novos tratamentos certificados como efetivos, a cobertura e a equidade em saúde são sempre alvos móveis, mesmo nos países desenvolvidos.

O aumento da cobertura em saúde tem coincidido com o rápido envelhecimento da população, primeiro nos países desenvolvidos e posteriormente nos países em desenvolvimento. Intuitivamente muitos atribuem o aumento dos gastos em saúde ao envelhecimento. No entanto, a realidade mostra que o fato da saúde dos mais velhos necessitar mais cuidados não é o único nem o principal fator responsável pelo rápido crescimento dos gastos com saúde. Um artigo recente de Kotlikoff & Hagist (2005), avaliando o crescimento dos gastos em saúde em 10 países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) entre 1970 e 2002, concluiu que os gastos anuais em saúde cresceram duas vezes e meia mais que o Produto Interno Bruto (PIB) e a extensão vertical da cobertura foi responsável por 89% do crescimento dos gastos em saúde, enquanto que a extensão horizontal por apenas 11%.

Dado que o progresso técnico em saúde, além de desejável é inexorável, não está em questão contê-lo. No entanto, buscar otimizar os resultados em saúde, maximizando o aumento e a qualidade da cobertura por unidade de recursos gasto, passa a ser um dos objetivos cruciais das políticas de saúde. Esta tem sido a principal motivação da criação de sistemas nacionais de saúde e das reformas de saúde desde o século XIX até o século XXI.

O conceito de cobertura horizontal é abstrato e medi-lo não diz muita coisa sobre o que esta sendo coberto e sobre sua qualidade. Para medir cobertura horizontal necessitamos evidências que poderiam ser dadas por Pesquisas Domiciliares. Assim, poderiamos saber se uma pessoa, ao ter um problema de saúde não buscou os serviços de saúde por fatores objetivos, como dificuldade de acesso, falta de transporte, falta de dinheiro, ou por fatores subjetivos, como falta de confiança nos serviços de saúde. Também poderíamos procurar saber se, ao procurar os serviços de saúde essa pessoa foi ou não atendida. Todos os casos poderiam evidenciar ou não a existência de cobertura horizontal aos serviços.

Para exemplificar, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2008, dos 189,9 milhões de brasileiros, cerca de um terço (61,4 milhões) não realizou nenhuma consulta (nem para efeitos de prevenção) em 2008.
Os dados da PNAD 2008 também revelam que nas duas últimas semanas anteriores a pesquisa, 33,9 milhões de pessoas manifestaram problemas ou necessidades de uso dos serviços de saúde. Destas 81% procuraram os serviços de saúde e foram atendidas; 2% procuraram os serviços de saúde e não foram atendidas e 17% não procuraram os serviços de saúde por fatores restritivos tais como falta de dinheiro, o local de atendimento era distante, o transporte era difícil, o horário era incompatível ou o atendimento era muito demorado. A proporção de pessoas que não foram atendidas ao procurar os serviços de saúde variou entre 1% no Rio Grande do Sul e 5% no Ceará, para uma média nacional de 2,5%.

Em outras palavras,supondo que cada pessoa nestas duas semanas somente procurou os serviços uma vez, se pode dizer que em 2008 quase um quinto dos brasileiros não estavam horizontalmente cobertos de fato pelos serviços de saúde. Isto revela problemas de logística, deficiências na qualidade do atendimento e na gestão. Problemas como esse poderiam ser resolvidos, possibilitando o acesso dos que não foram atendidos ou dos que desistiram de procurar os serviços por demoras no atendimento. Entre as medidas necessárias para tal, estaria organizar ou prover recursos para o transporte de pacientes e aumentar o horário de funcionamento das unidades de saúde.

No entanto, cobertura em saúde não é uma coisa abstrata. Ela tem que estar referida ao acesso concreto a um determinado conjunto de serviços que devem ser realizados, monitorados e avaliados. Nesse sentido, a definição de cobertura utilizada, com base em pesquisas domiciliares, avaliando o tempo necessário para chegar do domicílio aos serviços de saúde, e que consideram pessoas cobertas como aquelas que residem a pelo menos uma hora destes serviços, faz pouco sentido. Em geral não se sabe que serviços estão cobertos por estas unidades; se elas dispõe de medicamentos; se elas dispõe de pessoal qualificado e equipamento para atender pelo menos as especialidades básicas ambulatoriais; se elas funcionam continuamente (24 horas por dia) e se chegando lá as pessoas seriam atendidas. Considerar que o tempo ou distância necessária para alcançar uma unidade de saúde é sinônimo de cobertura sem conhecer a disponibilidade de atendimento e a capacidade resolutiva desta unidade não diz muito.

Cobertura Vertical em Atenção Básica: O Caso do PSF

A melhor forma de avaliar a cobertura em saúde está associada ao conceito de cobertura vertical. Mas para tal, teríamos que ser mais específicos. Deveríamos definir uma cesta de serviços de saúde para dizer se as pessoas estariam ou não cobertas pelos serviços. E que serviços deveríamos considerar neste caso?

Se estamos falando em atenção básica, a medida seria mais simples. Deveríamos medir um conjunto de serviços oferecidos como essenciais. O Programa de Saúde da Família (PSF), por exemplo, tem um conjunto de serviços essenciais que poderia ser monitorado, através dos indicadores estabelecidos pelos pactos de saúde, em 2007. Estes indicadores medem, entre outros serviços incluidos, o número de consultas pre-natal, consultas por habitante nas especialidades básicas, taxas de mortalidade infantil, exames preventivos de cancer de colo de útero entre mulheres em idade fértil, proporção de óbitos entre mulheres em idade fértil, internações por AVC, incidência de diabete melitus, cobertura de primeira consulta odontológica, taxa de mortalidade materna, baixo peso ao nascer, internações por infecções respiratórias agudas e por diarréia aguda, mortalidade neo-natal tardia, proporção de partos cesareanos e internação por insuficiência cardíaca congestiva. Os parâmetros do PSF deveriam ser seguidos para avaliar se efetivamente as equipes estão cobrindo ou não ao que se propõe contratualmente a cobrir. Em síntese, as equipes do PSF buscam ampliar ações básicas e medidas de promoção e prevenção da saúde, visando a melhoria da saúde e a redução das internações hospitalares.

É inegável o efeito positivo que o PSF tem tido entre as populações mais pobres. Estudos e análises econométricos, como os de Reis (2009), mostram o efeito positivo do PSF na saúde dos menores de um ano em virtude de um maior número de consultas pré-natal, quando se comparam populações cobertas e não cobertas pelo programa. Outros estudos como os de Rocha (2008) mostram também impactos importantes do PSF na redução da mortalidade em várias fachas etárias e na redução da fecundidade, quando se comparam populações cobertas e não cobertas. Seguramente o PSF tem impacto na cobertura nacional de consultas pré-natal, onde o número aumentou de 9,8 para 18,2 milhões de consultas entre 2003 e 2008; na cobertura nacional de consultas de planejamento familiar, que aumentou de 30,2 milhões para 34,5 milhões no mesmo período, e na redução das taxas de mortalidade materna, que embora ainda sejam altas, se reduziram de 52,1 para 50,3 mortes maternas por 100 mil nascidos vivos entre 2003 e 2007.

Entretanto, a ausência ou deficiência das redes de saúde com sólidos processos de referência e contrarreferência dificultam a resolutividade final do programa. Programas como o Programa de Agentes Comunictários de Saúde (PACS) e o PSF não tem crescido muito rapidamente nos últimos anos. O gráfico 1, construído com base nos dos dados do Departamento de Atenção Básica do Munistério da Saúde (DAB-MS) mostra a cobertura formal (não necessariamente efetiva) da população pelo PACS e pelo PSF entre 2002 e 2009. Pode-se verificar claramente que desde 2005 a cobertura formal do PACS se estagnou em torno de 60% e a cobertura do PSF também não tem aumentado muito desde 2006, alcançando pouco mais da metade da população brasileira em 2009.

Gráfico 1 – Taxas de cobertura dos Programas de Agentes Comunitários da Saúde (PACS) e de Saúde da Família (PSF) no Brasil (% da população coberta): 2002-2009



Os dados administrativos do PSF mostravam que o Programa, em 2007, realizava somente 1,1 visita domiciliar em média por ano entre seus beneficiários. Os parâmetros da Portaria 1101 de 2002, definem que o número de visitas (se estas estão associadas a consultas médicas) deveria estar entre 2 e 3 por ano, principalmente quando se considera que em áreas remotas não há outra possibilidade de acesso aos serviços de saúde que não sejam tais visitas.

Ainda que a cobertura completa do ciclo de vacinação entre estes beneficiários fosse adequada (95,3%), quase 10% das mães afiliadas ao PSF não tinham cobertura pré-natal naquele ano. A prevalência de desnutrição entre menores de dois anos cobertos pelo PSF se situava em 2,8% e a mortalidade por diarréia estava em torno de 4,2 por 1000 nascidos vivos entre os menores de um ano.

Avaliação de Qualidade e Cobertura

Uma análise mais detalhada da qualidade da cobertura deve ser feita em relação ao PSF. Pelo menos para saber se o conjunto de serviços que ele deveria entregar esta sendo entregue com a qualidade necessária. Mas faltam iniciativas adequadas, não apenas para monitorar, mas também para medir a qualidade dos programas de saúde como o PSF.

O Ministério da Saúde, desde 2005, implantou uma estratégia de auto-avaliação de qualidade do PSF e desenvolveu um Aplicativo para a Melhoria de Qualidade (AMQ) que procura testar como as equipes do PSF se auto-avaliam de acordo com determinados parâmetros esperados de conduta e qualidade. Esta estratégia busca, através de um instrumento de auto-avaliação e de auto-aprendizagem, qualificar as equipes do PSF, dado que, ao conhecer os parâmetros de qualidade, se supõe que estas equipes passariam a buscar alcançar estes parâmetros.

Os resultados esperados são: (i) a medição e registro dos avanços de qualidade na gestão do PSF e o fortalecimento da capacidade de avaliação do Programa pelas Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde; (ii) a identificação de processos implantados nas unidades do PSF que deveriam ser melhorados; (iii) o estímulo à capacitação das equipes para a gestão eficiente das Unidades de Saúde da Família (USF), e; (iv) a institucionalização de processos que favoreçam a solução das falhas encontradas e a garantia de sustentabilidade futura na aplicação desses processos.

Sob a base destes padrões foram definidos instrumentos de medida que se aplicaram, através de um pre-teste, realizado em 2004, em 24 municípios distribuidos entre as 5 Regiões brasileiras. Os resultados foram revisados e avaliados e os padrões foram ajustados e validados por especialistas internacionais em temas de qualidade em saúde. Estes resultados permitiram definir mais de 160 padrões de qualidade e excelência distribuidos em cinco estágios para a classificação das equipes de saúde de família, de acordo com os padrões encontrados: Estágio E – Qualidade Elementar (somente alcançam elementos fundamentais da estrutura e realizam as ações mais básicas da estratégia de saúde da família); Estagio D – Qualidade em Desenvolvimento (introduzem ao estágio anterior alguns elementos organizacionais iniciais e aperfeiçoamento de processos de trabalho em algumas atividades e ações básicas); Estágio C – Qualidade Consolidada (consolidam alguns processos organizacionais e realizam algumas avaliações iniciais de cobertura e resultado das ações); Estágio B – Qualidade Boa (gerenciam ações de maior complexidade com processos organizacionais definidos e alcançam resultados duradouros com constante monitoramento e avaliação de casos); e Estágio A – Qualidade Avançada (as equipes passam a ser referência em temas de estrutura, gestão e resultados alcançados).

Três padrões são utilizados pela estratégia de AMQ para a auto-avaliação do PSF: (a) os padrões de estrutura (capacidade estrutural as USF para prover cuidados de saúde em seus aspectos físico e organizacional); (b) os padrões de processo (que medem a eficácia de como se realiza cada atividade do ponto de vista da racionalidade e eficiência do fluxo de trabalho) e; (c) padrões de resultado (que medem a eficácia e os progressos alcançados na melhoria da qualidadde da saúde dos indivíduos de acordo com parâmetros de cobertura estabelecidos). Estes padrões se aplicam a dois eixos que compõe a estratégia de saúde da família: o componente de gestão (isto é, o papel dos gestores municipais no processo) e o componente das equipes de saúde da família (que se responsabilizam pelas estratégias de promoção, prevenção, acesso e qualidade aos serviços).

O sistema de AMQ carece de incentivos para ser utilizado. No que se refere às Secretarias Estaduais, os resultados deste processo não se integram facilmente com as atividades desenvolvidas nos Planos Estaduais de Monitoramento e Avaliação da Atenção Básica. No plano das Secretarias Municipais, embora seja auto-avaliativo e de livre adesão, os gestores municipais devem sensibilizar e mobilizar os coordenadores das equipes do PSF a participarem. No entanto, o sistema não oferece incentivos (premiações) e sanções (punições) financeiras ou outras relacionadas aos resultados. Além do mais, poucas unidades do PSF contam com equipamentos para utilizar o aplicativo digital e para a alimentação do banco de dados – elementos necessários para emitir relatórios por internet associados ao registro e avaliação dos processos de AMQ.

Por todos estes motivos, o processo tem avançado lentamente. Entre 2005 e 2010, de acordo com informações do DAB-MS, somente 1.086 (20,7% dos municípios brasileiros) estavam cadastrados para o processo de AMQ. Destes apenas 246 (4,7% dos municípios brasileiros) finalizaram a primeira autoavaliação. Assim, em seis anos de vigência da iniciativa muito poucas equipes do PSF foram avaliadas para saber se melhoraram a qualidade de seu trabalho.

Portanto, não há estímulo para o cadastramento de novos municípios e equipes do PSF ao processo de AMQ, nem incentivos (e recursos) para que os municípios cadastrados realizem a auto-avaliação. É por este motivo que alguns estados como o Ceará – um dos primeiros a implantar o PSF - estão inovando na aplicação da metodologia de AMQ em uma dupla via. Primeiramente, criando incentivos financeiros estaduais para que os Municípios implantem a estratégia e, em segundo lugar, criando um processo de avaliação externa para conferir e validar o processo de auto-avaliação realizado pelas equipes do PSF.

Conclusão

Avaliar a cobertura em saúde depende de muitos aspectos. O primeiro dêles, associado a cobertura horizontal, se baseia apenas em saber se as pessoas que necessitam buscaram ou não os serviços e se buscaram, determinar se foram ou não atendidas. Depende também de uma análise de quais os meios que devem ser implementados para se ter acesso aos serviços. Também se deveria realizar uma análise detalhada das razões do não atendimento para aqueles que chegam aos serviços de saúde.

No que se refere a cobertura vertical, falta uma análise em sintonia fina do acesso a um dado conjunto de serviços de saúde definito como essencial. Prometer uma cobertura integral de serviços de saúde sem avaliar nem mesmo o que está sendo entregue a população, de acordo com sua necessidade imediata, é um tiro na água. Portanto, é necessário avaliar, dentre o conjunto de serviços de saúde que fazem parte da promessa do SUS, qual a real condição de acesso e a qualidade relacionada à cobertura de cada um desses serviços.

Referências

IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios, 2008, Rio de Janeiro (RJ), 2010.

Kotlikoff, L.J & C. Hagist (2005), Who is going broke? Comparing Health Care Costs in Ten OEDC Countries, National Bureau of Economic Research, Working Paper No. 11833, Cambridge, MA, December 2005.

Ministério da Saúde, DATASUS, Caderno de Informações de Saúde, Versão eletrônica.

Reis, M. (2009), Public Primary Health Care and Child Health in Brazil: Evidences for Siblings. IPEA, Rio de Janeiro, 2009.

Rocha, R. (2008), Três Ensaios em Análises de Intervenções Sociais com o Foco Comunitário e Familiar, Tese de Mestrado em Economia, PUC-RJ, Rio de Janeiro, 2008.

Nenhum comentário: