Ano 6, No. 30, Abril 2011
André Cezar Medici (1)
André Cezar Medici (1)
Financiando a Saúde na Direção Certa
A votação e aprovação pelo Congresso Nacional do Projeto de Lei que regulamenta a Emenda Constitucional número 29 (EC-29), no dia 21 de setembro de 2011, poderá representar um grande avanço para o financiamento da saúde no Brasil (2). Além de gerar mais recursos para o setor, advindos de fixar a participação das receitas correntes da União para a saúde em 10%, foram afastados alguns fantasmas que poderiam comprometer a já inflada carga tributária brasileira, ao eliminar no texto aprovado a proposta de criar (ou recriar) a contribuição social para a saúde (CSS). Em entrevista dada em agosto de 2011 à Revista P&P Saúde Suplementar (3), defendi a não utlização de novos impostos para financiar a saúde pelos seguintes argumentos:
a) O orçamento público brasileiro financia várias ações questionáveis e privilégios institucionais que deveriam ser revistos ou cortados para priorizar o gasto com políticas sociais essenciais como saúde e educação. Se saúde é uma política prioritária, caberia ao Executivo e ao Legislativo entrarem em acordo para garantir mais recursos orçamentários para o setor sem que para isso aumentem os impostos;
b) A carga tributária brasileira é bastante elevada para seu nível de desenvolvimento. Subiu de 23% para 36% do PIB entre 1991 e 2007, mas especialistas dizem que deveria situar-se em torno de 25%. Só assim a sociedade poderá realizar investimentos necessários para um crescimento econômico rápido e sustentável, criando oportunidades para a atração de capitais a serem investidos no setor produtivo e na geração de empregos.
c) Paises desenvolvidos, como a Suíça, Canadá, Reino Unido, Alemanha e Espanha têm carga tributária menor ou igual à brasleira – entre 30% e 36% - e entregam serviços sociais de muito melhor qualidade aos seus cidadãos. Criar mais um imposto colocaria o Brasil com uma carga tributária maior do que a destes países sem necessariamente devolver o nível de serviços que a população por lá recebe;
No entanto, defendi também que recursos adicionais para a saúde deveriam ser oriundos da consciência, tanto do Executivo como do Legislativo, de que saúde é uma prioridade no processo de alocação dos recursos públicos no Orçamento da União. Em outras palavras, se a sociedade brasileira expressa que os recursos para saúde estão sub-representados no orçamento frente a vontade da maioria, haveria que se alocar mais recursos fiscais para o setor, cortando, em contra-partida, os gastos supérfluos, os privilégios, e os gastos com setores que não seriam tão prioritários.
A proposta aprovada pelo Congresso no dia 21 de Setembro de 2011, ao garantir 10% do Orçamento da União para o setor saúde, representaria um adicional de R$ 31,0 bilhões, o que aumentaria o gasto da União em 45,2% comparados com o atual Orçamento do Ministério da Saúde de 2011, fixado em R$ 68,5 bilhões (4). Para que seja viável, este crescimento seria escalonado. Em 2010 o setor saúde consumiu 6,8% das receitas correntes da União. De acordo com a proposta, o aumento da participação da saúde nas receitas correntes da União se daria em quatro anos, de modo que em 2015 se alcançaria o percentual de 10%. Neste sentido, 3,2% para o orçamento federal da saúde seriam adicionados escalonadamente em 4 anos. Resta saber como o Senado vai examinar a questão, mas ao que tudo indica, a proposta teria o respaldo daquela casa legislativa.
Eliminação do Cambalacho na Classificação do Gasto em Saúde
Mas a proposta de regulamentação da EC-29 aprovada pelo Congresso vai além da simples fixação de percentuais e aumento dos recursos. Ela propõe uma definição explícita do que deve ser considerado como gasto em saúde com os percentuais de 10% (União), 12% (Estados) e 15% (Municípios) das receitas próprias (exluídas as transferências) dos orçamentos das distintas esferas de Governo legalmente destinados ao setor. Ao assim fazer, ela elimina o cambalacho que muitos Estados e Municípios brasileiros vinham fazendo ao contabilizar como gastos em saúde do Governo áreas que não deveriam, num conceito restrito, ser consideradas como tal.
O Ministério da Saúde afirma que há pelo menos quatro tipos de gastos que não poderiam ser incluídos na conta dos Estados e Municípios como gastos de saúde, mas que frequentemente aparecem com tal: (a) despesas com saúde dos servidores públicos (incluindo os hospitais exclusivamente dedicados a estes); (b) gastos com saneamento básico e abastecimento de água, onde as tarifas recaem sobre o consumidor; (c) restaurantes populares; e (d) programas de transferência de renda ao estilo do Bolsa Família. O primeiro seria eliminado por ser um gasto privado (ainda que desembolsado pelo setor público) devendo ser considerado como despesa administrativa dos Estados. Os demais, porque estão na área de assistência social e não na área de saúde. A prática corrente considera como despesas de saúde os gastos mais diversos: desde pavimentação de ruas que passam na frente de postos de saúde ou hospitais, até a construção de quadras desportivas, parques e áreas de lazer. Não resta dúvida que, por ter muitos determinantes sociais, várias políticas e investimentos sociais poderiam levar à melhoria da saúde. Mas os recursos direcionados a financiar tais atividades não promovem o custeio do setor. Cabe portanto, levar em conta que a proposta de regulamentação da EC-29 considerou adequadamente um conceito restrito e focalizado de gasto em saúde, o que permitirá garantir mais financiamento para as atividades diretamente relacionadas ao setor.
Como acompanhar a execução adequada do gasto?
Mais complicado ainda será fiscalizar como a nova regulamentação da EC-29 estará sendo cumprida e, no caso de não estar, que medidas deverão ser tomadas. Até o presente momento, muitos Estados e Municípios não estavam cumprindo os percentuais da EC-29 já fixados para suas esferas, mas nada na prática poderia ser feito (além da execração pública) dado que a Emenda não estava regulamentada. Para exemplicar, de acordo com reportagem publicada pela Folha de São Paulo de 19 de setembro de 2011 (5), os Estados brasileiros no ano de 2009 deixaram de aplicar R$ 2 bilhões para em saúde para que chegassem aos 12% de suas receitas próprias previstos pela EC-29. Estados como o Rio Grande do Sul em 2009 gastaram somente 5% das receitas próprias e muitos outros como Pará, Maranhão, Piauí, Goiás, Minas Gerais e São Paulo, gastaram entre 10% e 12% de suas receitas próprias com saúde, não alcançando o mínimo exigido pela EC-29. Isto sem contar o cambalaxo na definição do que era gasto em saúde, com o beneplácito, em mutos casos, dos tribunais de contas, o que diminuia ainda mais este percentual se tomado um conceito mais rigoroso.
Outro problema é como acompanhar a execução do gasto da União. A quantidade de recursos que não são empenhados, ou que são empenhados e não executados aumenta a cada ano. Portanto, aumentar os recursos da União através da EC-29 para 10% das receitas próprias da União, deveria ter como garantia um processo onde a execução do gasto de fato ocorra – e com eficiência. O Ministério da Saúde, nos últimos anos, demonstrou uma deterioração de sua capacidade de execução orçamentária. Os Estados e Municípios, especialmente os mais pobres, também demonstram pouca capacidade não só para gastar mas também para receber todos os recursos da União que potencialmente teriam direito na área da saúde, sob a forma de transferências fundo-a-fundo. Colocar mais recursos a disposição do Ministério da Saúde deveria ser feito em paralelo ao aumento da capacidade de execução orçamentária de toda a esfera pública na área da saúde.
Voto de Confiança
A posição do Congresso na votação da EC-29 poderia indicar que a Casa está sendo madura, ao rejeitar um processo irresponsável de aumento de impostos e ao definir um percentual que crescerá de forma escalonada, dando espaço para que o Governo Federal consiga se reestruturar para gastar melhor com saúde e assegurar que os recursos cheguem e sejam absorvidos pelos Estados e Municípios com eficiência, equidade e qualidade. Para isso, o Ministério deverá se empenhar muito mais em apoiar os Estados e Municípios, dando-lhes assistência técnica sobre como gastar melhor o que recebem e ajudando-os a estruturar as redes de saúde regionalizadas e hierarquizadas, como propõe o Decreto 7508, de responsabilidade do Ministério da Saúde e aprovado também em 2011.
A aprovação da regulamentação da EC-29 pelo Senado, com o texto sugerido pelo Congresso, poderá representar também um voto de confiança no Governo e no SUS. A sociedade brasileira espera que o Governo e gestores do SUS em todos os seus níveis (União, Estados e Municípios) cumpram a sua parte. O Governo deveria assegurar, no mínimo, que está gastando de forma eficiente, equitativa e com qualidade, não apenas os atuais, mas também os novos recursos que irá receber para a saúde, garantindo as prioridades básicas de saúde para os mais pobres. O Governo deveria estabelecer quais são as ações prioritárias que deveriam ser garantidas pelo SUS para todos e zelar para que todos que precisam recebam esses serviços como direitos básicos de cidadania.
Infelizmente, isto até agora não tem ocorrido. Nos últimos anos, milhões de gestantes no Brasil não tiveram garantidas as seis consultas prenatais básicas ou cuidados obstétricos adequados e nossas taxas de mortalidade materna ainda estão em níveis inaceitáveis para o grau de desenvolvimento do país. Em paralelo, o SUS remunera ou aceita que sejam pagos judicialmente procedimentos seletivos e medicamentos de alto custo e de prioridade questionável para pessoas de classe média e alta que estão protegidas por planos de saúde voluntários, os quais deveriam oferecer esses serviços ou pagar por estes medicamentos.
Ainda que gastar mais em saúde seja uma prioridade, as evidências mostram que não é por falta de recursos que o SUS tem falhado em seus compromissos de garantir uma atenção médica de qualidade aos mais pobres em todo o território, mas sim por não colocar a equidade e a eficiência no topo de suas prioridades. É por este motivo que a saúde continua sendo o ponto número um nas listas de desaprovação da população ao Governo Brasileiro. Esperamos que com o estímulo de recursos adicionais, esta realidade possa mudar. Mas a verdade é que já deveria estar mudando mesmo sem estes recursos.
Notas e Referencias:
(1) O autor agradece aos comentários recebidos de Heitor Werneck que foram parcialmente incorporados neste texto.
(2) A EC-29 foi aprovada pelo Congresso no Ano 2000, definindo critérios que permitiriam aumentar o financiamento da saúde no Brasil. De acordo com o projeto aprovado, os Municípios deveriam destinar 15% de suas receitas tributárias próprias para a saúde, os Estados 12% e a União destinaria o valor corrente ajustado pelo crescimento econômico do produto interno bruto (PIB). Na verdade, os Municípios começaram a avançar no cumprimento da emenda antes de sua regulamentação e os Estados estavam no mesmo caminho, ainda que de forma mais lenta. A Emenda previa uma Lei que deveria ser responsável pela sua regulamentação, mas até setembro de 2011 várias foram as tentativas frustradas de tentar levar este projeto para ser regulamentado. Este portanto, é o primeiro movimento concreto na direção da funcionalidade da emenda. O texto aprovado pela Camara pode ser visto em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=394079
(3) Entrevista de Andre Medici à revista “P&P Saúde Suplementar. Ver link: http://www.sindhosp.com.br/noticias/1439/Saude-nao-precisa-de-novo-imposto,-diz-especialista
(4) A maioria dos economistas (inclusive eu), em tese, é contra a vinculação de recursos, seja a fontes fiscais, seja a percentuais dos orçamentos públicos, porque tal vinculação engessa o poder de escolha do Executivo ou do Legislativo, sobre prioridades alocativas da sociedade que podem mudar a cada ano. No entanto, nem mesmo Milton Friedman - o mais liberal dos economistas - cedeu aos argumentos de que, em sociedades onde o Congresso representa mal os interesses da sociedade ou utiliza o orçamento público como uma forma de gerar vantagens a grupos que não representam de fato a vontade da maioria, a fixação de percentuais aos orçamentos seria uma forma de defender os interesses dos mais pobres contra a volupia dos apaniguados ou dos corruptos.
(4) Cruz, V. & Guimarães, L., Estados deixam de aplicar 2 bi na saúde, diz Governo, in Folha de São Paulo, Seção Poder, 19 de Setembro de 2011.
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