Ano 8, N0. 60, Julho de 2014
André Medici
André Medici
Introdução
De acordo com a imprensa internacional, o
Governo Cubano anunciou em março último que daria, no dia 1º. de Junho de 2014,
um aumento nos salários dos
profissionais de saúde do país, em alguns casos, superior a 100%. O Jornal do
Partido Comunista Cubano – Granma – disse que os recursos que financiariam este
aumento provem dos US$ 8,2 bilhões de
receitas anuais recebidos como pagamento de dezenas de milhares de
profissionais de saúde cubanos que trabalham em mais de 60 países em todo mundo
- a maioria na Venezuela e agora no Brasil (1). As missões médicas
representarão, segundo projeções macro-econômicas, 64% das receitas da balança
de serviços do governo cubano este ano. Somente no caso da Venezuela, os 30 mil
médicos nas Misiones Barrio Adentro
rendem ao Governo Cubano 92 mil barris de petróleo por dia ou o equivalente a
US$ 3,2 bilhões por ano.
De acordo com o Ministro de Saúde de Cuba –
Roberto Morales – um médico com duas especialidades terá seu salário aumentado
de US$26 para US$67 mensais, enquanto que uma enfermeira no início de
carreira aumentará sua remuneração de US$13 para US$25 por mês. Estes
aumentos farão com que os salários dos profissionais de saúde em Cuba fiquem
bem acima da média dos demais salários no país, ao redor de US$20 mensais. A
medida beneficiará cerca de 440 mil funcionários do setor saúde, permitindo
também a eliminação de 109 mil empregos retundantes, muitos deles já inseridos
como parte das missões de saúde no exterior.
Os funcionários cubanos ocupados nas missões do
exterior, não recebem integralmente os salários pagos pelo seu trabalho. A maior parte do que recebem é apropriado pelo Governo Cubano, o que
corresponde a mais-valia ou valor não pago pela venda de parte de seu trabalho aos
governos do exterior. No entanto, o que recebem ainda é muito mais do que
ganham os profissionais de saúde que estão confinados em Cuba exercendo funções
similares.
Talvez por este motivo ainda existam incentivos para que os 50 mil profissionais
de saúde cubanos trabalhem nas missões médicas no exterior, mesmo tendo que
se sujeitar a humilhação de receber menos do que os demais profissionais (estrangeiros ou nacionais) pelos serviços similares
que prestam em alguns daqueles países.
Sentem que são tratados como cidadãos de segunda classe, mas sabem que
não tem condições imediatas para cortar os grilhões, dado que não são cidadãos
livres – isto é, não tem passaporte ou visto diplomático que lhes permita ter
outra condição que não seja a de voltar para Cuba – e estão servindo em países
que concordam com sua condição de espoliação, onde o Governo fiscaliza cada
passo dado por eles para que esta condição se perpetue.
O Governo Brasileiro tem se caracterizado por defender melhores salários e isonomia salarial,
tendo impulsado nos últimos 12 anos um forte aumento do salário mínimo e a
melhoria das remunerações dos funcionários públicos e condições de vida dos
trabalhadores. Mas para resolver o problema da falta de médicos, tampa o nariz
e aceita as condições impostas pelo Governo Cubano ao espoliar seus trabalhadores
de saúde e pagar salarios muito abaixo dos recebidos por médicos brasileiros para
o desempenho das mesmas funções.
Por que será que o Governo fecha os olhos à
situação de desigualdade dos médicos cubanos frente a outros médicos
estrangeiros ou aos médicos brasileiros que desempenham a mesma função no
Programa Mais Médicos? O Ministério da Saúde responde dizendo que estão
comprando serviços (e não trabalho médico) de Cuba, e que o Governo Cubano é
que pagaria aos médicos de acordo com os padrões salariais decididos por lá.
Mas o trabalho deles é aqui, e não lá em Cuba. A situação se configura,
portanto, como sendo de extrema iniquidade. Ela é contraditória com todo o discurso
que o Governo Brasileiro tem utilizado nos últimos anos em nome da melhoria das
condições de vida e dos direitos dos trabalhadores.
O Programa Mais Médicos e sua Consistência
Legal
Lançado em 8 de Julho de 2013 através de uma
Medida Provisória, o Programa Mais Médicos surgiu como uma alternativa ao Programa
de Valorização dos Profissionais da Atenção Básica (PROVAB), que tinha o
objetivo de levar médicos recém-formados
para regiões carentes, oferecendo-lhes uma bolsa de R$ 8 mil por mês. Tendo
recebido adesão de cerca de 3 mil prefeitos, o PROVAB contabilizou uma
demanda de 13 mil médicos para trabalhar em municípios do interior e periferias
das áreas metropolitanas. Mas o programa fracassou, dado que somente 4,4 mil
médicos se inscreveram, dos quais 3,8 mil assinaram contratos. O PROVAB não levava ao médico as condições necessárias para
o exercício da medicina, como o provimento de equipes profissionais auxiliares, infraestrutura,
equipamentos, insumos, capacitação e assistência técnica.
A partir do fracasso do PROVAB, o Ministério da
Saúde propôs, como alternativa, a vinda de profissionais estrangeiros para
trabalhar no Brasil, mas o grande impecilho para tal era a validação dos diplomas
desses profissionais. O exame que um médico estrangeiro tem que fazer para conseguir
uma licença para trabalhar no Brasil –REVALIDA – exige familiaridade com a
lingua, com as práticas profissionais brasileiras e com a terminologia
utilizada no setor. As entidades médicas poderiam oferecer cursos de preparação
e residências para médicos estrangeiros que habilitassem esses profissionais,
como existe em vários países do mundo, mas isso exige tempo e organização, o
que estava fora do horizonte político do Governo e de sua agenda de curto
prazo.
A opção, neste caso foi buscar um atalho. O Programa
Mais Médicos consiste em uma estratégia onde os médicos estrangeiros recebem uma
autorização provisória, baseada em contratos precários de trabalho disfarçados
como Bolsa, para driblar as regras de validação do diploma e dispensa-los de realizar provas de qualificação para o exercício da profissão no Brasil. Para mitigar eventuais problemas aliados a falta de qualificação, o Governo oferece um
cursinho rápido, com rudimentos da lingua portuguesa, e algumas noções de como
funciona o SUS. Também se restringe o trabalho às ações de atenção básica de
saúde e a regiões delimitadas, evitando assim o uso da medicina especializada e de
atividades complexas que possam por em risco a vida das pessoas e gerar
acusações e processos associados a má
pratica profissional.
O Ministério da Saúde divulgou que os
profissionais brasileiros tiveram prioridade no preenchimento das vagas ofertadas
pelo Mais Médicos, mas esses já estavam fadados a repetir o comportamento
verificado no PROVAB, não pelo salário, mas pela dificuldade das condições de
trabalho. Nesse setido, a opção foi dada aos brasileiros graduados no exterior
(Cuba, Bolivia, etc.) e aos estrangeiros. A jornada de trabalho do Mais Médicos é de 40
horas semanais, para um salário de R$10.400 mensais, pago pelo Ministério da Saúde, complementado por ajuda de custo para
moradia e alimentação, a ser fornecida pelas prefeituras que aderem aos
contratos.
Dos 15 mil contratos previstos para o Mais
Médicos, cerca de 30% são contratos individuais com estas características. Mas
maioria dos profissionais (cerca de 13000 médicos) chegou ou chegará para trabalhar no Brasil com base em grande contrato internacional firmado com o Governo Cubano.
Essa relação contratual do Mais Médicos é intermediada pela Organização
Pan-Americana da Saúde (OPAS). Mas o conteúdo deste contrato não foi divulgado
publicamente, apesar de diversos organismos do poder judiciário e da imprensa
solicitarem sua divulgação.
Segundo reportagem realizada pelo Jornal
Nacional da Rede Globo de Televisão (2), transmitida em cadeia nacional em fevereiro
de 2014, o governo brasileiro repassa mensalmente à OPAS o equivalente a
R$10.400 por médico, recursos que vão para uma empresa ligada ao Ministério da
Saúde de Cuba, responsável pelo pagamento aos médicos. Os cubanos, inicialmente,
teriam salários de cerca de US$ 1000 mensais (equivalente a R$2.270), mas só
poderiam receber no Brasil US$ 400 (R$908) ficando os US$600 restantes retidos em Cuba para poupança ou eventual auxílio a família do médico. No caso do contrato associado aos médicos cubanos na Venezuela,
uma parte dos recursos era retida pelo governo de Cuba, em caráter de poupança
compulsória, que só seria paga após o profissional cumprir os três anos de
contrato e retornar ao país.
De acordo com a reportagem do Jornal Nacional,
não há informação pública sobre o destino da diferença de quase R$ 8 mil por
mês, entre o que o Brasil repassa e o que é efetivamente pago aos médicos cubanos (mesmo considerando a parcela retida em Cuba).
No primeiro semestre de 2014, o Brasil repassou R$ 511 milhões para o contrato do Mais Médicos
com Cuba, mas a especificação das despesas relacionadas a esse valor não foi
detalhada para o público.
O Ministério da Saúde informou que este tipo de
contrato seria um padrão adotado em mais de 60 países que recebem médicos
cubanos, mais a reportagem do Jornal
Nacional mostrou que isto não seria correto.
Na França e no Chile, por exemplo, os contratos são individualmente
firmados entre os médicos e o Governo ou entidade contratante e os
profissionais cubanos tem os mesmos direitos trabalhistas que os nacionais. Entre
os países pesquisados pelo Jornal Nacional, Portugal seria um dos que tem um
programa semelhante ao Mais Médicos (com um contrato entre governos), tendo
fechado um acordo com a OPAS em 2009 para sua intermediação. No entanto, dos 40
médicos cubanos contratados em Portugal, restariam hoje apenas 12. A OPAS
declarou que tem acordos de cooperação
com diversos países e que contratos similares ao Mais Médicos, como o do
Brasil, não existem em outros contextos.
Todos esses problemas levaram o Ministério
Público do Trabaho (MPT), através do procurador Sebastião Caixeta, a investigar
o caso. Depois de tentar sem sucesso um acordo com o Ministério da Saúde, o
referido procurador protocolou, no dia 27 de março de 2014 uma ação civil
pública contra a União para garantir o direito trabalhista dos médicos cubanos.
Segundo ele, “...o que nos interessa aqui nesse inquérito é a legislação
nacional, e ela não possibilita esse tratamento desigual e não possibilita
pretender-se aplicar no Brasil legislação de Cuba”. O MPT também procura
analisar duas ações que questionan se a Lei que criou o Mais Médicos fere a
Constituição. Em 7 Abril de 2014, a Justiça do Trabalho (13ª Vara) se declarou
incompetente para julgar estas ações civis contra a União e enviou o processo
para o Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo a Justiça do Trabalho, a relação
do Mais Médicos não é um contrato de trabalho, e sim de aprendizagem,
semelhante ao Programa de Residência Médica, e por isso não daria direitos a benefícios associados à legislação trabalhista brasileira.
Enquanto o STF não se pronuncia, o Programa
Mais Médicos corre o risco de ser considerado ilegal, do ponto de vista das
relações de trabalho que viola, e provavelmente o MPT continuará a pressão para
provar a correção de seus argumentos em favor da isonomia salarial entre
cubanos e outros estrangeiros associados ao Mais Médicos.
Como muitas críticas começaram a surgir sobre
estas injustiças, além de descontentamento e deserções de alguns dos médicos cubanos contratados, o
Governo Brasileiro conseguiu convencer o Governo Cubano a aumentar o salário dos médicos
cubanos no Brasil de US$1000 para US$1245, sendo que a totalidade do salário passaria a ser recebida no Brasil. Isso representa um aumento real do salário recebido no Brasil de US$400 para US$1245 (dado que anteriormente US$600 ficavam retidos em Cuba). Mas a diferença salarial
continua aviltante em relação aos R$10.400 ou US$ 4.581 recebidos pelos demais estrangeiros ou brasileiros que trabalham no Mais Médicos.
O Programa Mais
Médicos deve Mudar?
A falta de médicos nos municípios do interior e
nas periferias metropolitanas vem de longe. O descontentamento crescente da
população brasileira com a política de saúde do Governo, que passou de 41% para
81% entre 2002 e 2014, segundo os dados do IBOPE-CNI, levou o Governo, ao criar
o Mais Médicos, a pensar que o programa poderá beneficiar 50 milhões de
brasileiros com cuidados médicos no curto prazo. Mas se o problema é antigo,
esta medida deveria ter sido tomada antes, e não faltando apenas um ano para as
eleições.
A idéia de trazer médicos estrangeiros não é descabida,
e muitos países a tem adotado, embora busquem manter princípios mínimos de
equidade e justiça junto aos profissionais de saúde que se inscrevem nestes
programas. Não se trata, portanto, de questionar o Mais Médicos, mas sim a
forma pela qual tem sido contratados os médicos cubanos sob o Programa.
O termo Mais Valia foi utilizado por Karl Marx
– um filósofo socialista – para explicar a espoliação do trabalho no
capitalismo do século XIX. Marx definia como taxa de mais valia, a relação
entre o trabalho não pago (mais valia) e o trabalho pago (salarios), para provar como os capitalistas exploravam os trabalhadores. Considerando
os salários pagos aos médicos cubanos de US$1245 por mês, através do Mais
Médicos, e o valor total que Governo Cubano recebe mensalmente do Governo
Brasileiro por médico contratado (US$4581), chega-se a uma taxa de mais valia de
268%. Comparando-se com os padrões vigentes no século XIX, uma taxa desta
magnitude vis-a-vis as taxas praticadas naquela época, faria qualquer
capitalista industrial inglês ser considerado um socialista fabiano.
O Governo brasileiro deveria introduzir
mudanças no Programa Mais Médicos. Primeiramente, tornando transparente a
informação do Programa e os contratos realizados com Cuba. Em segundo lugar, oferecendo
aos médicos cubanos uma capacitação de boa qualidade para que possam fazer o
REVALIDA e, dessa forma, poderem trabalhar recebendo salários
iguais aos pagos pelo Mais Médicos a outros profissionais brasileiros ou
estrangeiros. Mas o Ministério da Saúde alega que, ao fazer isso, não haveria
condições contratuais aceitáveis para Cuba, o que representaria o fim do Programa.
A realidade que mostramos neste artigo parece
não ser essa. Se Cuba tem aceitado outras formas de contrato que permitem que
os médicos cubanos sejam pagos diretamente por países como a França e o Chile,
recebendo salários equivalentes aos nacionais, porque deveria ser diferente no
Brasil? A aceitação de Cuba vai depender de negociações que podem incluir, em
última instância, a incorporação dos médicos cubanos ao conjunto dos
profissionais de saúde brasileiros, com melhores condições para sua qualificação
profissional e direitos trabalhistas iguais.
NOTAS
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