Ano 11, Número 85, Abril de 2017
André Medici
Introdução
Ainda que tenha a oferta de saúde
tecnologicamente mais avançada do mundo, o sistema de saúde norte-americano
apresenta muitos problemas quando comparado com o de outros países da
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em termos de
gasto com saúde, é de longe o país que gasta mais (16,9% do PIB em 2015). O
segundo colocado na lista dos trinta e cinco países que participam do clube dos
países ricos – a Suiça - está muito abaixo desse percentual, com 11,5% (2015).
Os Estados Unidos é o país com maior gasto percapita anual com saúde: US$ 9451
em 2015 - quase dois mil dólares a mais do que o segundo colocado no ranking da
OCDE (Luxemburgo com US$ 7765).
Mas como todos sabem, apesar do gasto elevado,
o sistema norte-americano não apresenta os melhores resultados em saúde entre
os países ricos. Suas taxas de mortalidade infantil e neonatal ocupavam a 4ª
maior posição entre os países da OCDE em 2014, só sendo inferiores às da
Turquia, México e Chile. Os Estados Unidos detém a oitava mais baixa
expectativa de vida ao nascer entre os países da OCDE (78,8 anos em 2014) –
quase cinco anos menor que a do país melhor situado neste indicador (Japão,
83,7 anos).
Portanto, entre os países considerados ricos,
os Estados Unidos é o que mais gasta com saúde, mas muitos de seus importantes
indicadores de resultado sanitário estão entre os piores. Qual a explicação?
Entre outros fatores, o mais gritante é bem simples de apontar. O país, apesar
de rico, ainda não garante a cobertura universal de saúde para sua população.
Em 2015, dos 35 países da OCDE, um pouco mais
da metade (18 países) cobria 100% de sua população com alguma forma de seguro
público ou privado de saúde. Os demais alcançavam distintos graus de cobertura
entre 86% e 100%. Mas os Estados Unidos, em 2015, era o segundo país da OCDE
com a menor cobertura de seguro saúde (90,9%)[i].
Era o primeiro, a alguns anos atrás, mas duas coisas aconteceram. Em primeiro
lugar, a devastadora crise que se abateu sobre a Grécia a partir de 2008 colocou
aquele país com o nível mais baixo cobertura de saúde no universo da OCDE
(86%). Em segundo lugar, uma revolução nas formas de proteção à saúde nos
Estados Unidos reduziu a população sem cobertura de 20,3% em 2012 para 11,5% em
2016, segundo os dados do Bureau of
Census norte-americano[ii].
Portanto, a baixa cobertura de saúde nos
Estados Unidos estava progressivamente se revertendo desde 23 de março 2010,
quando o Presidente Barak Obama conseguiu aprovar no Congresso o Affordable
Care Act (ACA), que também ficou conhecido como Plano Obama de Saúde ou Obamacare. Mas a eleição do Presidente Donald Trump
parece ameaçar essa trajetória, ao propor derrubar o ACA e voltar a uma
situação de precariedade de cobertura de saúde. Em seu afã em realizar seu
slogan American First, o Presidente
Trump parece estar interessado em fazer com que os Estados Unidos volte a ser
novamente o primeiro país com mais baixa cobertura de saúde para sua população
entre os pertencentes a OCDE. Para entender este processo e recuperar a construção incremental do direito à saúde nos Estados Unidos, vale a pena voltar um pouquinho ao passado.
A longa marcha pelo
direito à saúde nos Estados Unidos
A luta pela conquista de direitos à saúde nos
Estados Unidos se associa, de um lado, ao movimento espontâneo de asseguramento
através de empresas e trabalhadores para a formação de seguros por empresa ou
categorias profissionais, e de outro, às lutas pelos direitos civis e sociais. Foi
ainda no século XIX que agricultores da costa oeste dos Estados Unidos começaram
a se organizar para oferecer seguro saúde aos trabalhadores agrícolas e suas
famílias, construindo hospitais e contratando médicos para consultas e
hospitalizações da população beneficiária.
O movimento veio do campo para a cidade e
empresas e sindicatos começaram a estruturar as organizações de gestão de saúde
(HMOs) que garantiam a administração da atenção médica às familias de distintas
categorias profissionais, de forma mais racional e a custos mais baixos do que
seria obtido de forma avulsa pelas famílias no mercado de bens e serviços de saúde. Nesse processo foram criadas a Kaiser Permanente, a Blue Cross, Blue
Shield e muitas outras. Esse movimento de cobertura via asseguramento se deu
por um misto de organização da sociedade civil, dos prestadores de serviços e
das empresas, mas cobria somente aqueles que estavam inseridos no mercado
formal e era insuficiente por não cobrir grupos de maior vulnerabilidade, como
idosos aposentados, pobres e crianças cujos pais não se inseriam no mercado
formal de trabalho.
Foi somente em 1965 que o Presidente Lyndon Johnson
encaminhou ao Congresso o projeto do Social Security Act, aprovado em junho daquele ano, que continha os programas públicos de seguro-saúde
para pessoas acima de 65 anos de idade e para os mais pobres [iii].
Estes programas receberam respectivamente os nomes de Medicare, em referencia a
um outro programa já existente que fornecia cuidado médico para as famílias de
militares e seus dependentes, criado em 1956, e Medicaid, destinado a cobrir
pessoas em condições precárias, como pobres e deficientes.
Medicare
O Medicare (título XVIII do Social Security Act), instituido com
financiamento do governo federal norte-americano, aumentou significativamente o
acesso à saúde para a população idosa. Antes de sua criação, aproximadamente
60% dos maiores de 65 anos não tinham seguro-saúde ou o tinham de forma
limitada, porque pagavam mais do que três vezes o que os jóvens desembolsavam
para ter uma cobertura de saúde adequada às suas necessidades.
Mas as raizes que geraram esta decisão remontam
a quase duas décadas antes da assinatura do Social
Security Act. Em 1950, o presidente Harry S. Truman convocou uma conferência
nacional sobre o envelhecimento, promovida pela Casa Branca. O objetivo era
avaliar os desafios colocados por uma população idosa em crescimento, à luz de
numerosas mudanças nos programas de direitos sociais promulgadas durante os
anteriores 20 anos. A meta desta conferência, sob influência da Declaração dos
Direitos Humanos de 1948[iv], era propor formas de assistência financeira
para as necessidades de pobres, idosos, portadores de deficiência física e
doentes mentais. Com base nas resoluções desta conferência, o presidente
Eisenhower, em 1956, criou o Conselho
Federal-Estadual sobre o Envelhecimento com vistas a propor alternativas
para mobilizar recursos dos estados e do governo federal para atacar os
problemas do envelhecimento.
Em 1958, o congressista John E. Fogarty
solicitou à Casa Branca uma nova conferência sobre
envelhecimento para gerar consenso sobre as políticas destinadas a aumentar a segurança econômica
desse grupo demográfico. Esta nova conferência se realizou em 1961, com mais de 3.000 delegados representando cerca de 300 organizações. As
propostas da Conferência tiveram como resultado, nos anos subsequentes, várias melhorias na proteção social dos idosos, como a lei
sobre habitação de 1962, a lei sobre serviços e instalações de saúde
comunitária e a criação de um seguro de saúde para idosos (Medicare). Este ultimo tinha como
objetivo prevenir gastos catastróficos e mortalidade precoce deste grupo
populacional pela falta de cobertura de saúde. Mas pelo menos quatro anos se
passaram até que a proposta se cristalizou na implementação do Medicare, em
1965, com a aprovação do Social Security
Act.
Como parte da luta pelos direitos civis, o
Medicare desde 1966 estimulou a integração racial de milhares de salas de espera,
centros hospitalares e práticas médicas que até então se maintinham separadas
por uma medicina orientada pelo aparthied[v],
gerando incentivos financeiros para os prestadores de cuidados de saúde que
promoviam a integração racial.
O Medicare, em sua origem, incluía as Partes A
(Seguro Hospitalar) e B (Seguro Médico). Mas progressivamente a elegibilidade
do programa aumentou, incluindo, a partir da reforma de 1972, novas condições
anteriormente não cobertas tais como pessoas mais jovens que, por terem
incapacidade permanente, recebiam pensões do seguro social (SSDI), e pessoas com
menos de 65 anos portadores de doença renal-crônica terminal, para o
financiamento de hemodiálise e transplantes de rim (ESRD), além de acesso a
serviços de fisioterapia e quiroprática. Em 1982, o governo adicionou à
cobertura do Medicare benefícios provisórios de cuidados paliativos que em 1984
se tornaram permanentes.
Mas o nível de subsídio do Medicare, até hoje, chega
somente a 80% daquilo que é considerado usual e costumeiro pelas tabelas dos
sistemas de seguro de saúde dos Estados Unidos. A diferença de 20% é um custo
que os idosos devem subsidiar, ou com seguros complementares de saúde, ou com
seus próprios recursos.
Ainda nos anos 1980, o Medicare ampliou o direito de livre-escolha
de seus beneficiários em eleger organizações gestoras de saúde (HMO). Esta
ampliação, inicialmente em carater experimental, só foi formalizada pela administração do
Presidente Clinton em 1997, como a Parte C do Medicare, e permitiu aos idosos que tinham planos de
saúde pagos pela empresa durante sua vida ativa, continuarem, depois da
aposentadoria, com seu próprio plano de saúde em regime de co-financiamento
pelo Medicare.
Novas inclusões continuram num regime
progressivo de incorporação de direitos. Em 2001 o Congresso votou a expansão
do Medicare para cobrir os trabalhadores antes dos 65 anos portadores de arterio-esclerose.
Em 2003, o Presidente George Bush assinou o
Medicare Prescription Drug, Improvement and Modernization Act (a parte D do
Medicare), destinado a financiar medicamentos de prescrição para os
beneficiarios do programa, cuja a implementação efetiva ocorreu em 2006. Em
2010, com a assinatura do ACA pelo Presidente Obama, novos aperfeiçoamentos
foram realizados no Medicare para a garantia de serviços de qualidade com
controle dos custos.
Portanto, a história do Medicare em seus 52
anos de implementação é um bom exemplo de ampliação incremental e progressiva
da cobertura em saúde. Com isso o programa foi ganhando progressivamente mais
densidade e resolutividade, sendo uma das políticas públicas mais valorizadas
pela sociedade norte-americana, a qual só não caminha mais rapidamente para o
envelhecimento em função do pêso da migração em sua estrutura demográfica .
Isto nos leva a pensar que a garantia legal da
integralidade como ponto de partida, como ocorreu com o SUS no Brasil, pode não
ser a forma mais sensata de chegar à cobertura universal, dado que cria
expectativas impossíveis de serem alcançadas, gerando grandes frustrações por parte da população, como demonstram as pesquisas de opinião. Além do mais, a integralidade, como ponto de partida da cobertura universal, cria confusão na provisão dos serviços sobre quais são as prioridades epidemiológicas e os procedimentos que devem ser
cobertos primeiramente e quais os que poderão ser progressivamente cobertos quando se tornarem prioritários e mais recursos estejam disponíveis para financiá-los.
Medicaid
Na sua configuração original em 1965, o Medicaid
(Título XIX do Social Security Act) oferecia
seguro médico para famílias consideradas pobres através de mecanismos de
reembolso da assistência médica recebida. Sendo parcialmente financiado pelo
Governo Federal e complementado pelos Estados, os recursos eram transferidos
sob a forma de orçamentos compartilhados (matching
budgets) entre estas esferas de Governo. Progressivamente, o Medicaid
passou a incluir, além das famílias de baixa renda, mulheres grávidas, deficientes
leves e pessoas que necessitam de cuidados de longa duração (long term-care), com níveis de renda
acima da linha de pobreza. Pessoas com deficiências mais graves são em geral
elegíveis para o Medicare, independentemente de sua idade.
Dado ser um programa compartilhado, o governo
federal estabelece parâmetros para seu funcionamento, mas cada estado
administra o Medicaid de forma diferente, resultando em variações na cobertura e
no nível de benefícios oferecido pelo programa em cada canto do país.
A partir de 2014, já sob a égide do Obamacare, foram introduzidas reformas
no Medicaid abrindo, a critério de cada Estado, a expansão da elegibilidade do programa para
famílias com rendimentos abaixo de 133% da linha de pobreza definida pelo
governo federal (FPL). Com isso, um grupo de “quase-pobres” (near-poor)
que não tinha acesso a seguros de saúde passou a ser beneficiado pelo programa.
As reformas de 2014 também buscaram padronizar
as regras para determinar a elegibilidade e a concessão de benefícios do
Medicaid através do mercado de seguros de saúde. Em outras palavras, as HMOs em
cada estado podem se associar ao Medicaid proporcionando opções de
asseguramento que seriam parcialmente ou integralmente financiadas pelo
programa. Com isso aumenta o leque de parcerias entre o Medicaid, enquanto
seguro público, e os seguros privados de saúde de cada estado, não apenas para
aumentar a cobertura mas também para coordenar e integrar o cuidado.
Seguro de Saúde da
Criança
O Programa de Seguro de Saúde da Criança (CHIP)
foi criado em 1997 durante o Governo Clinton, oferecendo seguro médico e
cuidados preventivos para quase 11 milhões, de crianças norte-americanas entre
1 em 7 anos de idade que não estavam asseguradas pelos programas públicos ou
seguros privados de saúde.
Muitas dessas crianças pertencem a famílias de
trabalhadores sem seguro médico, as quais estão acima da linha de pobreza e,
portanto, não são elegíveis para o Medicaid, mas não tem cobertura de seguro
saúde de sua empresa ou renda suficiente para financiar, se seu próprio bolso,
um plano de saúde privado.
Todos os 50 estados, o Distrito de Columbia e
os territórios aderiram aos planos de seguro CHIP que também recebem subsídios
federais complementados por recursos das esferas regionais de Governo. Muitos
Estados, por restrições orçamentárias, delimitaram um teto em até duas vezes a linha
de pobreza (FLP) para a elegibilidade das famílias que vão aderir ao CHIP.
Cobertura de
Urgência e Emergência
Existem outras formas nas quais pessoas sem
cobertura do Medicare, do Medicaid ou do CHIP podem utilizar para beneficiar-se
de cobertura de saúde, em casos de urgência e emergência. A Lei de Tratamento
Médico de Emergência (EMTALA), aprovada pelo Congresso em 1986[vi],
determinou que a nenhuma pessoa podem ser negados serviços médicos de urgência
e emergência, independentemente desta ter ou não capacidade para pagar pelos
serviços, ou de sua cidadania e status imigratório. Por este ato legal, todos
os hospitais que aceitam pagamentos do Medicare ou do Health and Human Services Department do Governo Federal Norte
Americano (ou seja, quase todos os hospitais norte-americanos) devem propiciar exames
que averiguem condições clínicas (MSE) e, se diagnosticados em condições
críticas, tratamento médico até sua estabilização. Em outras palavras, os
hospitais não podem transferir ou dispensar pacientes que necessitem de
tratamento de emergência, exceto em três circunstâncias: (a) quando há o
consentimento informado destes pacientes; (b) após estabilização da condição
médica do paciente e; (c) quando sua condição requer uma transferência para um
hospital melhor equipado para administrar
e concluir o tratamento.
O custo de atendimento de emergência exigido
pela EMTALA não é diretamente coberto pelo governo federal. Devido a isso, esta
lei sempre sofreu muitas críticas, inclusive do Colégio Norte-Americano de
Médicos de Emergência, pelo fato de ser de cobertura obrigatória e com recursos
limitados para seu financiamento, gerando custos adicionais para os hospitais
participantes. Mas como os hospitais dependem fortemente das contas pagas pelo
Medicare e Medicaid, acabam absorvendo parte dos gastos não reembolsados nos
cuidados de emergência como custos, os quais representam 6% dos custos
hospitalares totais[vii].
Estes problemas, embora persistam, começaram a ser resolvidos com a expansão do
asseguramento e das medidas racionalizadoras do ACA.
As mudanças introduzidas
pelo Obamacare
Apesar do processo incrementalista de expansão da
cobertura, a oferta de saúde nos Estados Unidos, antes do ACA, era fragmentada
e desestruturada. Os programas públicos, oferecidos para grupos vulneráveis na
estrutura da seguridade social, e os seguros privados de saúde, os quais eram
regulados de forma diferenciada em cada Estado norte-americano, não cobriam a
totalidade das necessidades dos cidadãos.
Algumas tentativas para implementar programas
que fechassem o círculo da universalidade foram tentadas anteriormente, tais
como aquela iniciada pelo Presidente Bill Clinton[viii],
que em sua campanha eleitoral em 1992, prometeu um programa de saúde com um
duplo objetivo: extender a cobertura de saúde para todos os cidadãos
norte-americanos e ao mesmo tempo reduzir os elevados custos que o sistema de
saúde representava para o orçamento público e para as familias norte-americanas.
Isto seria feito através da obrigatoriedade de todas as empresas extenderem
planos de saúde a seus empregados e aos próprios empregadores, incluindo
aqueles em condição de autônomo. Definia regras de funcionamento das HMOs e
administradoras de planos e aplicava princípios de competição administrada
entre planos e provedores. Mas, após quatro anos de discussão, o Congresso
norte-americano rejeitou a proposta, embora alguns Estados passaram, como
legado, a aplicar parcialmente ou de forma modificada, algunas das idéias
contidas no Plano Clinton (como é o caso do plano implementado por Mitt Romney,
governador republicano de Massachussets, que em parte inspirou Barack Obama na
definição do ACA).
Os Estados Unidos não tem, como tradição a
criação de um sistema único de saúde, como a Inglaterra. A concepção de que
deve haver livre-escolha em ter uma cobertura de saúde (e qual cobertura ter)
faz parte da cultura norte-americana. O prêmio nóbel Paul Krugman, em artigo
recém escrito no New York Times[ix],
afirmou que para atingir cobertura universal em contextos onde não há um
sistema único de saúde, são necessárias três condições, todas elas cumpridas
pelo Obamacare: (a) Regular as seguradoras ou operadoras de planos de saúde
para que admitam sem custo adicional os pacientes com condições médicas
pre-existentes; (b) impor penalidades (multas) para as pessoas ou famílias
saudáveis que não querem aderir a um plano de saúde, de forma a diluir o risco
coletivo; e (c) subsidiar as pessoas de baixa renda que não podem pagar por
planos de saúde.
O Affordable
Care Act (ACA), aprovado pelo Congresso norte americano em 2010, retomou
alguns dos princípios de cobertura universal do Plano Clinton e trouxe muitas
inovações em prol de uma estruturação deste pluralismo da oferta:
(a) contribuiu para integrar os mercados
fragmentados de seguros de saúde de forma que as empresas e famílias pudessem
se inscrever em planos de seguros privados de saúde, aumentando a transparência
sobre o que oferecem os planos e reduzindo a assimetria de informação entre as
operadoras de seguro, as empresas e as famílias, de forma a facilitar o
processo racional de escolha dos planos mais adequados a cada situação;
(b) gerou inovações para
racionalizar o uso, melhorar a gestão, integrar o cuidado e reduzir custos,
como é o caso das Accountable Care
Organizations (ACOs), contratadas como porta de entrada dos planos de saúde,
promovendo atenção primária de qualidade, promoção e prevenção e buscando
resolver o máximo de situações de cuidados em níveis de menor complexidade, e;
(c) gerou inovações para garantir maior
e melhor cobertura aos beneficiários de programas como o Medicare e Medicaid. O ACA extendeu a
cobertura do Medicaid aos filhos de familias abaixo da linha de pobreza até os
26 anos de idade e estabeleceu critérios para que os beneficiários do Medicaid e
do Medicare possam ter livre escolha a planos de saúde, através do mecanismo de
health care exchanges.
O ACA tornou compulsória a adesão dos
trabalhadores a um plano de saúde que cubra a sua família, recebendo incentivos
fiscais (dedução do imposto de renda) ou pagando multas, no caso de não aderir
ao plano. Estabeleceu um Programa Básico de Saúde que permite aos Estados a
opção de cobrir benefícios de saúde para residentes individuais de baixa renda,
não cobertos por empregadores, os quais passam a ser elegíveis para comprar um
seguro neste mercado integrado de asseguramento em saúde (Obamacare market place), proporcionando cobertura acessível e
melhor continuidade de atendimento para aqueles que cuja renda, em sua história
laboral, flutua acima e abaixo dos níveis de pobreza. Como resultado, a
população norte-americana sem cobertura de saúde foi reduzida à metade do que era antes
do plano. Por trás dessa grande conquista, estão entre 20 e 22 milhões de
beneficiários que em cinco anos passaram a ter a uma cobertura racional de
seguro de saúde. O gráfico 1 abaixo mostra alguns resultados do Plano Obama na
redução da porcentagem de pessoas sem cobertura de saúde entre 2010 e 2016, em
duas situações: pessoas sem cobertura na data da entrevista e em mais de um ano
até a data da entrevista. Como pode ser visto, em ambos os casos, a população
sem cobertura de seguro saúde se reduziu drasticamente, passando de 16% para
8,8% entre 2010 e 2016.
Fonte: Michael E. Martinez, Emily P.
Zammitti e Robin A. Cohen, Health
Insurance Coverage: Early Release of Estimates From the National Health
Interview Survey, January–September 2016, U.S. Department of Health and
Human Services, Centers for Disease Control and Prevention, National Center for
Health Statistics, Released 2/2017, Atlanta, USA, 2017.
Determinados grupos tiveram uma ampliação ainda
mais expressiva, cabendo destacar os jovens, pessoas próximas à linha de
pobreza e hispânicos-latinos. Tomando como data os períodos de dezembro 2010 até
setembro de 2016, se pode registrar que:
- Entre jovens de 19 a 25 anos, a cobertura de seguro saúde aumentou de 66,1% para 85,4%, garantindo a inclusão de um grupo mais saudável para melhorar o perfil de risco dos planos de saúde;
- Entre as pessoas abaixo da linha de pobreza, a cobertura aumentou de 70,5% para 81,6%;
- Entre aquelas com até duas vezes a linha de pobreza, a cobertura aumentou de 67,7% para 82,7%;
- Entre hispânicos-latinos, a cobertura cresceu de 69,1% para 81,1%;
- Entre negros a cobertura aumentou de 79,2% para 88,1%;
- Entre asiáticos, aumentou de de 83,2% para 93,4%;
- Mesmo entre os brancos, o aumento da cobertura foi de 86,3% para 92,6%.
Portanto, embora ainda haja muito por fazer no
caminho iniciado pelo ACA, o plano trouxe um aumento sem precedentes no número
de pessoas cobertas por seguros saúde em grupos com maior necessidade,
revertendo a tendência que se colocava de crescimento do número de não
assegurados nos anos anteriores a 2010. Mais de 95% das crianças e adolescentes
com menos de 17 anos e a quase totalidade das pessoas com mais de 65 anos
passam a ser cobertas por alguma forma de seguro de saúde, como pode ser visto
no gráfico 2. Mas ainda existem muitas brechas de coberutura entre a população
em idade ativa, especialmente entre 25 e 44 anos de idade, aonde se deveria
trabalhar para incluir-los dentro da idéia de cobertura obrigatória de saúde.
Fonte: Michael E. Martinez, Emily P. Zammitti e Robin A.
Cohen, Health Insurance Coverage: Early Release of Estimates From the National
Health Interview Survey, January–September 2016, U.S. Department of Health and
Human Services, Centers for Disease Control and Prevention, National Center for
Health Statistics, Released 2/2017, Atlanta, USA, 2017
Mas muitas famílias de classe média,
anteriormente já cobertas pelos planos de seguro saúde, passaram a reclamar do
crescente valor pago pelos prêmios de seguro, os quais aumentaram como forma de
compensar o risco dos planos em serem obrigados a aceitar, sem diferenciação no valor dos prêmios, as condições pré-existentes e coberturas
mínimas antes não obrigatórias nos mecanismos de regulação existentes nas
legislações implementadas pelos Estados.
De acordo com o Milliman Medical Index (MMI),
os custos anuais de seguro saúde para uma família de 4 pessoas subiu de US$
20,7 mil para US$ 25,8 mil entre 2011 e 2016. Em média, estes custos em 2016
estavam divididos na seguinte proporção: 57% são prêmios pagos pelas empresas, 26%
são prêmios pagos pelos empregados e 17% são despesas financiadas diretamente
pelas famílias com co-pagamentos, medicamentos, exames e outras despesas. Mesmo
assim, entre 2011 e 2016 (até junho) o percentual de pessoas com menos de 65
anos de idade que tiveram problemas com o pagamento de contas médicas nos
Estados Unidos, se reduziu de 21,3% para 16,2%.
O aumento dos custos dos planos de saúde e dos
gastos públicos tem sido os principais argumentos utilizados pelos republicanos
para atacar a proposta do Obamacare, como será visto adiante.
O que mudaria com a
proposta de Trump?
Durante sua campanha eleitoral, Donald Trump
disse sequencialmente que o Obamacare era um desastre e que deveria ser
substituido por algo totalmente novo. O principal argumento dos republicanos
foi focalizar nos
aumentos expressivos no valor dos prêmios dos seguros de saúde mensalmente
pagos pela classe média.
Mas depois das eleições, a equipe de Trump
elaborou uma proposta que, em geral, aceitava a lógica do Obamacare, na medida em que mantém a regulação que obriga as
seguradoras e planos a aceitar sem custos adicionais as condições pré-existentes
e impõe penalidades fiscais para aqueles que não compram seguro saúde, mesmo
quando se enconram em condições saudáveis.
A diferença está no corte dos subsídios aos
mais pobres para que tenham planos de saúde e sua substituição ou por créditos
fiscais para ajudar a pessoas com renda insuficiente (mas que pagam impostos) a
comprar planos de saúde ou estimulá-los a investir seus parcos recursos em medical savings accounts, que lhes
garantiriam algum nivel de proteção a saúde em momentos de necessidade. A
proposta, em seus detalhes, implicaria em grandes cortes orçamentários de
programas públicos como o Medicaid, o CHIP e outros através de propostas
similares a que foi aprovada pelo Congresso em Janeiro de 2016 (Reconciliation Bill), mas vetada pelo
Presidente Obama.
Os subsídios pagos pelo ACA aos mais pobres estão
ligados tanto ao rendimento como ao custo do seguro, o que definitivamente ajuda aos mais pobres. Mas
os créditos fiscais não valem para pessoas de baixa renda que necessitam de
recursos prévios para a compra dos seguros, antes de receberem os
créditos fiscais. Esse tipo de movimento poderá fazer com que os pobres saudáveis
que hoje recebem subsídios e deixem de receber, abandonem seus seguros de saúde,
reduzindo a efetividade do grupo de risco de cada seguro. Com o aumento do
risco, os preços dos seguros disparariam, gerando um efeito contrário ao que os
republicanos criticam atualmente no ACA.
Em recente trabalho publicado pelo Urban
Institute[x],
um importante think-tank norte
americano, foram feitas algumas projeções de que tipos de implicações poderiam
ocorrer com o advento da proposta do Presidente Trump. De acordo com este
estudo, a aprovação de uma proposta similar a do Reconcliliation Bill proposto
pelos republicanos em janeiro de 2016 teria os seguintes efeitos na cobertura e
nos custos de saúde:
- O número de pessoas sem seguro aumentaria de 28,9 milhões em 2016 para 58,7 milhões em 2019 e a parcela de pessoas sem seguro aumentaria de 11% para 21%, eliminando todos os efeitos de expansão de cobertura que haviam ocorrido com o ACA;
- Os individuos que perderiam seu seguro ou se desestimulariam a ter um seguro individual, estariam nesta condição como resultado da eliminação dos subsídios aos prêmios, da redução da cobertura do Medicaid e do fim da obrigatoriedade de ter um seguro, além do colapso do mercado de seguros individuais criado pelo Obamacare;
- Cerca de 82% dos que perderiam seguro estariam nas famílias trabalhadoras. Desses, 38% seriam jovens entre 18 e 34 anos; 56% seriam brancos não-hispânicos e 80% dos adultos que perderiam o seguro não teriam diploma universitário;
- Cerca de 12,9 milhões de pessoas perderiam a cobertura do Medicaid ou do CHIP em 2019 e aproximadamente 9,3 milhões de pessoas perderiam o subsídio publico para ter um seguro médico;
- Os gastos do governo federal em cuidados de saúde para aqueles com menos de 65 anos se reduziriam em US $ 109 bilhões em 2019 e em US $ 1,3 trilhão entre 2019 e 2028, porque a expansão do Medicaid e os subsídios aos prêmios seriam eliminados;
- Os gastos públicos com o Medicaid e o CHIP cairiam em US$76 bilhões entre 2019 e 2028 e os que perderiam as respectivas coberturas passariam a gerar pressões financeiras sobre os governos estaduais, locais e prestadores de saúde, especialmente em carater de urgência e emergência, gerando um adicional de US $ 1,1 trilhão em cuidados descompensados entre 2019 e 2028.
- A eliminação da obrigatoriedade dos indivíduos e empregadores em cobrir seguros de saúde para as famílias levaria a uma crise significativa do mercado de saúde, trazendo perdas financeiras substanciais para as seguradoras, estimadas em cerca de US $ 3 bilhões por ano. Muitas, senão a maioria das seguradoras, provavelmente não participariam das ofertas de planos individuais no mercado já em 2018, mesmo com a manutenção ainda em vigor dos subsídios e redução de custos, levando o governo a ter que providenciar compensações financeiras para as seguradoras se manterem no mercado
Felizmente, em 24 de março de 2017, o Partido Republicano, buscando evitar a perda de muitos votos entre seus próprios correligionários, retirou da pauta de votação do Congresso o projeto de reforma de saúde apresentado pelo Presidente Trump para desmontar o Obamacare. E a razão é muito simples: muito republicanos não estão convencidos de que a proposta apresentada pelo executivo seria melhor do que o Obamacare e a vasta maioria da população, mesmo com algumas críticas a pequenos aspectos da operação do ACA, consideram que o mesmo ampliou em larga escala o direito a uma das grandes aspirações da população norte-americana. Para a maioria, as conquistas do Obamacare passam a ser um direito irreversivel e a questão reside mais em aperfeiçoamentos em alguns aspectos do plano do que em planos alternativos. Mas a marcha da insensatez, refletida na tentativa de desmontar o Obamacare, está somente começando e muitos embates ainda estão por vir.
NOTAS
[i] Até o México e o Chile tinham
em 2015 níveis de cobertura de saúde superiores ao dos Estados Unidos (92,3% e
92,6%, respectivamente).
[ii] Estes dados diferem dos
apresentados nas Estatísticas do OECD de 2016, onde a população sem cobertura de
saúde em 2016 alcançava 9,1%.
[iii] Este programa foi considerado
inicialmente pelo Presidente Eisenhower que
organizou a primeira conferência da Casa Branca sobre envelhecimento nos
Estados Unidos (em janeiro 1961), onde foi
proposta a criação de um programa de cuidados de saúde para os beneficiários da
Social Security Administration (SSA).
[iv] A Declaração Universal dos Direitos
Humanos, adotada pelas Nações Unidas em 1948, promulgou que todos têm direito a
um padrão de vida adequado, à saúde e ao bem-estar de si mesmo e de sua
família, incluindo alimentação, vestuário e cuidados com higiene.
[v] Existe extensa documentação
mostrando o longo processo de extinção do apartheid e discriminação de médicos
e pacientes negros nos serviços de saúde nos Estados Unidos. Até 1910, existiam
escolas de medicina separadas e serviços de saúde separados para negros e
brancos. Em geral, negros eram atendidos por médicos negros formados em escolas
médidas para negros. O relatório Flexner, em 1910, um dos marcos da história
moderna da medicina nos Estados Unidos, para efeitos de unificar as escolas
médicas, analisou todas as existentes no país e fechou quase todas as ecolas
negras, deixando abertas somente duas. Tal fato reduziu o mercado para os
médicos negros, gerou uma política sistemática de exclusão de médicos negros da
Associação Médica Norte-Americana (AMA) e criou barreiras para o acesso da
população negra aos serviços de saúde, assim como manteve diferenciação nos
espaços físicos de atendimento de negros e brancos, até os anos sessenta,
quando se intensificam as lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos.
Somente em 2008, a AMA pediu publicamente perdão à população negra norte-americana por anos de intolerância e exclusão.
[vi]
Conhecido como EMTALA – Emergency Medical
Treatment and Active Labor Act.
[vii] De acordo com os Centros de
Serviços de Medicare e Medicaid, 55% dos cuidados de emergência nos EUA não são
financeiramente compensados pelos hospitais. Quando estas contas médicas não
são pagas, os hospitais acabam transferindo os custos para outros programas
públicos ou deduzindo-os de impostos que deveriam ser pagos, o que tem um
efeito no aumento dos custos da saúde e, consequentemente, dos impostos gerais pagos pelas famílias. Com o aumento dos
cuidados administrados nos hospitais, se reduzem essas possibilidades de
transferência de custos para outros programas. A racionalização do uso de instalações, contribui para a superlotação
das salas de emergência. Entre 1993 e 2003, a demanda por emergências médicas
nos EUA cresceu 26 por cento enquanto fecharam 425 salas de emergência nos
hospitais.
[viii] Ver MEDICI, A.C. O “ Capítulo 2 - Plano Clinton e a Cultura do Pluralismo Estruturado”, em “A Economia Política das Reformas de Saúde”,
Ed. IACHS, Porto Alegre, 1997, pp. 29-38.
[ix] Ver
KRUGMAN, P. A Plan Set Up to Fail, The
New York Times, March 7, 2017.
[x] Ver
BLUMBERG, Linda J., Matthew Buettgens,
and John Holahan, Implications of Partial
Repeal of the ACA through Reconciliation, The Urban Institute, Washington
D.C., December 2016.
Nenhum comentário:
Postar um comentário