segunda-feira, maio 17, 2010

Registros Eletrônicos de Saúde: Uma Ferramenta a Favor da Universalização e da Transparência

Ano 5, No. 13, Maio 2010 


André Medici




Introdução



Sistemas de saúde tendem naturalmente a ser fragmentados. Essa fragmentação tem sido responsável, em grande medida pelos altos custos de transação e ineficiências nesses sistemas. A fragmentação também resulta do jogo de interesses dos agentes do setor que a utilizam como forma de esconder informação e garantir privilégios financeiros decorrentes da falta de transparência ou da corrupção.

A maneira mas natural de tentar reduzir esta fragmentação seria ter bons sistemas de registros e organização de informações, mas isto era praticamente impossível antes do surgimento de registros eletrônicos em saúde. Formas rudimentares de informatização de serviços de saúde começam a aparecer no final anos sessenta, mas com muitas dificuldades dado que se orientavam basicamente a organizar e cruzar informações existentes sem o devido foco nos pacientes ou usuários. Essa realidade começa a mudar a partir dos anos oitenta, com o surgimento de novas tecnologias gerenciais em saúde como os grupos relacionados de diagnóstico (DRGs), a digitalização de fichas clínicas e o cruzamento destas informações com dados cadastrais de usuários dos sistemas de saúde.

Os registros eletrônicos em saúde (RES) associados a usuários, em suas diversas formas (cartões magnéticos, cartões inteligentes com chip, códigos de barra, etc.), tem sido utilizados crescentemente nos últimos 25 anos como forma de aumentar a cobertura e agilizar o fluxo de pacientes dentro dos sistemas de saúde podendo evitar duplicações de cobertura e fraudes associadas ao pagamento de serviços não prestados e materiais e medicamentos não utilizados pelos pacientes. Eles constituem mais propriamente uma ferramenta que aumenta o acesso, a transparência e o controle dos recursos nos serviços de saúde do que um instrumento para melhorar a qualidade direta da prestação dos serviços(i).

A utilidade dos RES, portanto, se associa não só à sua contribuição para a universalização da saúde, ao incrementar o acesso e o reduzir o tempo de resposta dos serviços às necessidades dos pacientes, mas também à sua essencialidade como meio de aumentar a transparência e a eficiência no setor. Na medida em que os RES permitem um melhor conhecimento das condições de saúde dos pacientes e dos recursos utilizados na prestação de serviços, contribuem dessa forma para um melhor monitoramento e avaliação e para o combate a fraudes e corrupção no setor.

Ainda que sejam caros, e muitas vezes as estratégias utilizadas em sua implementação corram o risco de não serem bem sucedidas, os RES e outros sistemas de tecnologia de informação em saúde, propiciam economias de recursos à médio e longo prazo ao aumentar a eficiência dos serviços, a padronização de procedimentos e o controle e avaliação na aplicação de guias clínicas, e por gerar melhores mecanismos de controle que minimizam fraudes em áreas estratégicas de compras de serviços de saúde, insumos básicos, uso de equipamentos e medicamentos. Permitem, também dessa forma controlar adequadamente o uso das instalações de saúde, especialmente nos níveis de atenção primária e secundária, e reduzir os erros na administração de medicamentos (ii).

Em algumas áreas, como nos serviços de emergência, os sistemas de tecnologia da informação melhoram dramaticamente o tempo de resposta e salvam mais vidas, com um custo incremental operativo pequeno comparado aos benefícios sociais gerados (iii).

Os países desenvolvidos tem realizado altos investimentos na implementação de RES. Uma análise de seis países da OECD (iv) revela que os investimentos anuais percapita em RES em 2005 foram elevados, especialmente em países com sistemas públicos universais como UK (US$192,79), Canadá (US$31,85); Alemanha (US$21,20) e Noruega (US$11,43). Este grande volume de investimentos se justifica pelas funções que os RES podem desenvolver, como ilustra o diagrama abaixo proposto pelo NHS inglês (v) .




Como se pode notar, os RES servem a múltiplos propósitos: desde acesso aos registros pelos usuários, o que reduz a assimetria de informação, até atividades assistenciais, como apoio 24 horas a assistência nas ações de agendamento eletrônico dos serviços e no próprio atendimento rotineiro aos pacientes, onde os profissionais de saúde (especificamente aqueles que tratam do paciente) passam a ter acesso a informações clínicas (histórico do paciente, exames, anamneses, etc.) que melhoram a qualidade das decisões médicas adotadas. Por outro lado, os RES também permitem a produção de agregados de dados desidentificados (anônimos) que permitem melhorar aspectos associados a ações coletivas como o aprimoramento dos programas de saúde, o aumento da eficiência na gestão e controle social sobre os serviços e o avanço de pesquisas epidemiológicas que permitem organizar as prioridades no atendimento dos serviços.

Embora países desenvolvidos com sistemas universalizados tenham aumentado estes investimentos em RES, tais investimentos ainda são muito pequenos em países que tem seus sistemas de saúde mais voltados para o mercado de planos privados como os Estados Unidos (US$0,43). Este fato talvez possa justificar porque o sistema norte-americano segue sendo um dos mais custosos e com menor acessibilidade dentre conjunto dos países desenvolvidos. No entanto, experiências pioneiras como a da Kaizer Permanente da California, mostram que os investimentos em RES podem gerar grandes benefícios mesmo em países baseados em sistemas de mercado de seguros de saúde como os Estados Unidos.

Um breve acompanhamento da imprensa mundial também mostra que nos países onde existe maior resistência ao uso de RES ou de sistemas de controle baseados em tecnologia de informação, existe uma tendência a ocorrer um ambiente de descontrole favorável à corrupção, à falta de regulação no uso de tecnologia médica custosa e desnecessária e ao desestímulo no uso de protocolos e guias clínicas (vi) .

O objetivo deste artigo é comentar sobre os esforços na implantação de uma estrutura eficiente de RES no Brasil, entre 1999 e 2002 – o Cartão SUS - e de como esta estrutura poderia ter alavancado a universalização do SUS nos anos mais recentes, caso não tivesse sido descontinuada a partir de 2003. Mas mesmo assim, ainda existem possibilidades de reverter o processo e recuperar o tempo perdido nos próximos anos. É o que passaremos a ver.

A Experiência Brasileira do Cartão SUS

O médico sanitarista Sylvain Levy, hoje aposentado, é uma das pessoas que durante muito tempo trabalhou incansavelmente com sistemas de informação no Ministério da Saúde do Brasil. Em 1986, quando fui Diretor Adjunto de População do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), coordenamos conjuntamente alguns esforços para a integração das bases de dados produzidas entre o IBGE (AMS - Pesquisa de Assistência Médico Sanitária) e o Ministério da Saúde (CNES - Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde).

Recentemente, o site Domingueira de Gilson Carvalho publicou um excelente artigo de Sylvain (vii) sobre a origem e os problemas enfrentados na implantação do Cartão SUS. O artigo constata varias coisas importantes:

a) Primeiramente, que a idéia do Cartão já estava prevista na Norma Operacional Básica (NOB) de 1996, o que mostrava a intenção do governo em atacar o problema de coordenação do sistema à semelhança do que fizeram alguns países europeus e o Canadá;

b) O então Ministro da Saúde, José Serra, inicia em 1998 a diretriz de cumprir a NOB-96 e avançar na implementação do cartão. Entre 1998 e 2002 se completa o desenho preliminar das informações e formas de operação do Cartão e são realizados estudos piloto para sua implementação em 44 municípios com um total de 13 milhões de usuários;

c) Entre 2003 e 2006 o processo ficou estancado. A partir do primeiro semestre de 2003 a experiência foi desativada pelo governo, com a transferência de dois coordenadores que exerciam papel chave no projeto para outros ministérios e a decisão de interromper o processo para que fosse utilizado software livre ao invés de sistemas proprietários que, por ironia, já haviam sido pagos pelo Governo;

d) Ao final de 2006, o então Ministro da Saúde José Saraiva Felipe resolve ressucitar o projeto, retomando a relação entre estados e municípios, com o apoio do Governo Federal, para a continuidade do projeto do Cartão SUS de forma descentralizada.

e) No entanto, dois fatores tem feito com que este processo tenha avançado lentamente: o primeiro, é a falta de investimentos em informatização dos serviços de saúde na ponta de linha para que o processo se torne efetivo. O segundo é a inexistência de câmaras de compensação financeira pelos serviços prestados entre as distintas esferas de governo (federal, estadual e municipal) o que desincentiva a implantação do cartão como forma de compensar aos serviços municipais ou estaduais de saúde por pacientes que venham de outros municípios, de outros estados, ou até do setor privado, caso estes tenham planos de saúde.

Com o intuito de tentar explicar o processo e avançar em propostas para que o cartão SUS retorne e se torne um efetivo fator de universalização e transparência dos serviços no setor, faremos alguns comentários sobre o ocorrido em cada uma destas fases.

A conceitualização do Cartão SUS no Brasil

A documentação existente mostra que desde os anos sessenta já existia a intenção governamental de criar um sistema estatístico para identificar usuários de saúde e ver como os brasileiros atendiam suas necessidades de saúde. O tema aparece desde o Governo Janio Quadros e é amplamente discutido na III Conferência Nacional de Saúde de Dezembro de 1963, sob o Governo João Goulart, onde se propõe que o IBGE e o Ministério da Saúde se coordenem sobre a criação de um sistema desta natureza.

No entanto, em que pesem as discussões sobre esses temas, não havia tecnologia suficiente para a implantação deste processo e qualquer sistema estatístico a ser criado naquela época não propiciaria os elementos de acesso e gestão clínica que poderiam ser estabelecidos com a concepção do Cartão SUS que surge ao final dos anos noventa. A proposta do Cartão em 1998 vem a atender as necessidades da NOB 1996 que procurava resolver os problemas de saúde no Brasil nas perspectivas de gestão, assistencial, epidemiológica e sanitária.

O início da implementação do Cartão

A implementação de processos de tecnologia da informação em saúde não é fácil. Sistemas de Informação necessitam ser meticulosamente planejados para compatibilizar rotinas, fluxos e processos de obtenção, tratamento e uso dos dados, com a finalidade última que as políticas de saúde se propõe a alcançar. Dadas essas dificuldades, é frequente que a implementação de sistemas de informação de saúde ultrapassem os prazos previstos, sofram perdas de recursos e muitas vezes venham a ter que voltar atrás em algumas decisões (viii).

Os primeiros passos na implementação do Cartão SUS esbarraram em processos licitatórios e organizacionas que foram progressivamente sendo resolvidos. Em 1999 foi feita a primeira licitação para o desenho e implantação do sistema em experiências piloto. A licitação previa a contratação de uma solução de informática global, dividida em três lotes, incluindo o desenvolvimento e instalação de terminais específicos (os terminais de atendimento SUS – TAS), aquisição da infra-estrutura de informática e de comunicação, desenvolvimento de aplicativos, emissão dos cartões, capacitação de recursos humanos, manutenção e assistência técnica, dentre outros. A escolha das experiências piloto privilegiou desde pequenas cidades que ofertavam somente serviços de atenção básica, até grandes centros urbanos, com serviços de alta complexidade (ix) .

O processo de cadastramento proposto pelo Cartão se baseava no cadastro do PIS-PASEP que é reconhecido como um dos que menos permite fraudes. Nesse sentido, para aqueles que não tinham PIS-PASEP (todos os que não trabalhavam ou estavam fora do mercado formal de trabalho), os números do Cartão SUS seriam gerados pelos serviços de saúde e validados pela Caixa Econômica Federal (CEF), sendo posteriormente incorporados a uma base de dados que seria compartilhada entre a CEF e o DATASUS.

O cartão identificaria cada indivíduo vinculando-o a um gestor específico e a um conjunto de serviços de saúde tal qual estipulado pela NOB-96. De acordo com a documentação pessoal de Sylvain Levy, o cartão envolvia várias áreas tais como atenção à saúde, planejamento e programação, regionalização da assistência à saúde, vigilância epidemiológica, vigilância sanitária, controle, avaliação e auditoria. O projeto piloto se destinou basicamente às áreas de identificação e registro do usuário no momento em que se encontrava sendo atendido, localização do prontuário do usuário, registro dos profissionais e estabelecimentos de saúde, agendamento local e remoto de consultas e exames laboratoriais, notificação compulsória dos agravos à saúde, dispensação de medicamentos, registro da execução de exames laboratoriais, prodedimentos coletivos e atualização dos dados cadastrais.

Além do mais, o cartão gerava uma série de possibilidades para a organização do sistema, atendendo a distintas necessidades dos usuários (história clínica, imediata identificação, vinculação à uma unidade de saúde, agendamento automático e aglilização no atendimento, ampliação do acesso a medicamentos), dos profissionais de saúde (facilidade no uso de protocolos, meios para avaliação dos trabalhos de equipe e para a melhoria dos serviços prestados, simplificação de rotinas e processos de trabalho, aumento da velocidade na provisão de insumos) e gestores do sistema (integração de distintas bases de informação, organização dos processos de referência e contra-referência, avaliação e monitoramento da rede prestadora, otimização dos processos de aquisição e dispensação de medicamentos, mecanismos de compensação financeira entre

O Projeto REFORSUS, financiado pelo Banco Mundial e pelo BID, foi utilizado como fonte dos recursos para financiar a proposta, sendo a UNESCO a entidade gestora dos recursos. A Sociedade Brasileira de Informática em Saúde(SBIS) daria o suporte técnico e conceitual para a idealização do cartão e forneceria consultoria especializada. A gestão do processo ficou a cargo da Secretaria de Investimentos em Saúde, com o apoio dos quadros técnicos da área de informática do Ministério da Saúde.

O processo teve algumas complicações associadas à pressa para sua implementação; à natureza dos contratos com as empresas consultoras e aos equipamentos distribuidos entre as Secretarias de Saúde Estaduais e Municipais. Mas mesmo assim, se pode dizer que ao final de 2002 já se contava com 13 milhões de pessoas registradas no Cartão SUS em 44 municípios que foram escolhidos como piloto. No que se refere a equipamentos, foram instalados mais de 10 mil TAS para operar o cartão, além de 27 equipamentos servidores estaduais, 44 municipais e dois federais que agregavam os dados recebidos pelos TAS. Foram treinadas mais de 8 mil pessoas nas secretarias de saúde estaduais e municipais para a operação do Cartão SUS.

Além do mais, duas portarias abriam a possibilidade de que a experiência piloto fosse replicada em outros Estados e Municípios: (a) A Portaria GM 017, de 13 de fevereiro de 2001, que expandia a possibilidade para que qualquer estado ou município pudesse registrar sua população e emitir o Cartão SUS e; (b) A portaria GM 039, de 14 de Abril de 2001, que regulamentou a operacionalização e remuneração do cadastramento de usuários do SUS aos Estados e Municípios, atribuindo o pagamento para cada cadastro realizado e validado pela CEF.

Dadas estas características, o terreno estava pavimentado para que a experiência do Cartão SUS pudesse ser implementada e rapidamente expandida para todo o território nacional. Entre 1998 e 2002 foram gastos recursos equivalentes a R$150 milhões, o que não é muito quando se considera a dimensão e complexidade da tarefa envolvida.

A Paralização do Cartão SUS (2003-2006)

A partir de 2003 o Governo se desinteressa, em dar continuidade e expandir as experiências piloto para a implementação do Cartão SUS. A equipe de técnicos e consultores que estava a cargo do projeto foi desmobilizada, tendo seus principais coordenadores enviados para outros Ministérios.

Mais grave, no entanto, foi a descontinuidade do apoio aos Estados e Municípios na implantação dos softwares desenvolvidos e pagos pelo Governo às empresas consultoras, sob a alegação de que se passaria a utilizar uma política de software livre e de que os softwares anteriormente desenvolvidos e implantados teriam que ser convertudis para novos sistemas em base LINUX. Ainda que seja louvável o uso de uma política de software livre, esta não tinha cabimento no caso do Cartão SUS, dado que o Ministério já havia pago pelos direitos de propriedade dos respectivos softwares às empresas consultoras que os desenvolveram, sendo portanto o proprietário dos códigos fonte dos programas e podendo, portanto, fornece-los gratuitamente aos Estados e Municípios, como aliás já vinha fazendo.

Ao longo destes anos, muitos dos TAS existentes, não recebendo apoio ou estímulo do governo federal, e dada a falta de atualização tecnológica, foram desativados pelas Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, desmontando a proposta original do Cartão SUS (x) . Segundo Sylvain Levy, somente o Município de Aracajú, capital de Sergipe, manteve os conceitos originais do Cartão SUS e pode ser utilizado como exemplo do que se poderia alcançar.

A verdade é que ainda que implicitamente a proposta do Cartão SUS continuasse em vigor, as decisões tomadas a partir de 2003 geraram o abandono dos parceiros estaduais e municipais à ideia e a desconfiança dos mesmos em dar continuidade ao processo. Mas mesmo tendo sido desativada a proposta original, durante este período se manteve a possibilidade de que as Secretarias Estaduais e Municipais seguissem cadastrando sua população com a sistemática de validação estabelecida pelo Cartão SUS, gerando uma base cadastral que em 2006 já chegava a 133 millhões de registros, dos quais somente 23 milhões estavam validados pela CEF.

A lenta e progressiva retomada do Cartão SUS

A partir de fins de 2006, com a posse do Ministro José Saraiva Felipe, o Ministério da Saúde retoma progressivamente a implementação do Cartão SUS. Entre as medidas tomadas para tal fim se destacam: (a) a disponibilização para os Estados e Municípios de um aplicativo CAD-SUS, em base web, permitindo-lhes a consulta on line à base de dados da população cadastrada; (b) a geração de interoperalidade entre o Cartão SUS e o SISREG, utilizado como base para a montagem de centrais de regulação nos Estados e Municípios, permitindo que cada esfera de governo possa dimensionar a população a ser considerada em seus sistemas de regulação e contribuindo para evitar duplicações; (c) Atualmente o Ministério considera a possibilidade de iniciar um RES como piloto nos Hospitais do Rio de Janeiro, utilizando e ampliando a base cadastral existente no Cartão SUS.

Se estima que em 2009 existiam 171 milhões de registros de pessoas no Cartão SUS, dos quais 93 milhões podem ser considerados definitivos porque ja foram revisados pela CEF. Alguns outros municípios estabeleceram por iniciativa própria dar continuidade ao registro de sua população no Cartão SUS, como é o caso de Curitiba (PR), São Paulo (SP), Vitória (ES), Caldas Novas (GO) e Porto Alegre (RS), ainda que com finalidades distintas e com com soluções informáticas diferentes da originalmente proposta. A paralização do processo entre 2003 e 2006 não foi suficiente para reverter uma cultura e uma expectativa que já havia sido criada entre gestores, funcionários e usuários, quando ao uso deste instrumento.

A quem interessava que o Cartão SUS não funcionasse?

Em certa medida, o desinteresse na implantação do Cartão SUS por parte do Governo entre 2003 e 2006, esteve em sintonia com os interesses de boa parte dos atores do sistema de saúde no Brasil em evitar o aumento do controle social sobre a prestação de serviços de saúde. Do ponto de vista dos sindicatos profissionais e dos prestadores de serviços, a existência do Cartão SUS estabeleceria novos patamares de controle social, através de serviços como a marcação automática de consultas e cirurgias e a possibilidade de que os usuários tivessem evidência clara para reclamar por agendamentos não cumpridos ou serviços não realizados.

No Brasil, onde o absenteísmo nos sistemas públicos de saúde costuma ser elevado e o pagamento por procedimentos não realizados ainda é uma prática freqüente, a implementação do Cartão SUS imporia medidas favoráveis ao cumprimento da jornada de trabalho dos profissionais e maior controle sobre a entrega de serviços dos estabelecimentos públicos e privados ao SUS, aumentando indiretamente os meios para a fiscalização dos gestores públicos e da população sobre os profissionais e prestadores de serviços.

No que diz respeito aos fornecedores de equipamentos, insumos e medicamentos, os sistemas associados ao Cartão, na medida em que introduziriam maiores controles sociais e de gestão sobre as compras de insumos e utilização de serviços, também reduziriam a possibilidade de fraudes. E todos sabem que, como demonstra a imprensa, que o nível de fraudes e desvios de fundos públicos em saúde foi bastante elevado no período 2003-2006 (xi) .

Como avançar na Implementação do Cartão SUS?

Em que pesem todos os problemas enfrentados pelo país, deliberadamente ou não, para implementar RES no Brasil, se deve ter em conta todas as vantagens que poderiam estar associadas a implementação do Cartão SUS caso a experiência não tivesse sido descontinuada em 2003. Para avançar na implementação efetiva do Cartão SUS, seria necessário adapta-lo a algumas novas circunstâncias. Abaixo estão propostos alguns dos passos para estas novas circunstâncias.

a) Por um cartão SUS federativo: A idéia de um sistema centralizado ao nivel federal continua a ser importante, mas deveria ser adaptada de forma a não desmontar as experiências anteriormente implementadas ao nível regional e local. Num país federativo, seria natural que os Estados e Municípios que já desenvolveram sistemas de saúde baseados no Cartão SUS, possam mantê-los. No entanto, os sistemas existentes deveriam ser capazes de realizar trocas de informações, com base em conceitos unificados, permitindo organizar uma base de dados única sob o mesmo conceito, compatível com as necessidades de gestão, assistenciais, epidemiológicas e sanitárias.

b) A implantação do Sistema nas Regiões mais Remotas: Caberia ao Ministério da Saúde: (I) incentivar os Estados e Municípios que já desenvolveram seus próprios sistemas a co-financiar as mudanças necessárias para a implantação de um cartão único do SUS, com um conjunto de informações comuns que permitam operar sobre a base de diferentes sistemas e mantenham a comparabilidade e troca de informações entre distintos níveis de governo. (II) Criar uma metodologia simples, rápida e barata de implantar o Cartão SUS nas regiões mais pobres e desprovidas de serviços ou de sistemas desta natureza estabelecendo os mecanismos de financiamento e os incentivos técnicos e de capacitação e retenção de pessoal para que estes sistemas funcionem. Com isso, Estados e Municípios que já avançaram na operatividade de seus sistemas poderiam mantê-los e adapta-los às novas características do Cartão SUS, ao mesmo tempo em que aquelas regiões desprovidas de serviços começariam a se beneficiar com a implantação desses sistemas;

c) Cartão SUS que tenha como referência redes de saúde – Redes de atenção à saúde são arranjos organizativos de unidades funcionais e/ou pontos de atenção de diferentes densidades tecnológicas, que, integrados por meio de sistemas logísticos, de apoio diagnóstico e terapêutico e de gestão, buscam garantir a totalidade do cuidado. A porta de entrada e base para a organização do sistema é a estrutura de atenção primária da saúde. Sendo, por exemplo, territorios que propiciam a integração, referência e contra-referência em todos os níveis de atenção, as redes de saúde, uma vez constituídas, seriam o espaço de referência para a emissão do Cartão SUS para uma dada população que poderia variar entre 200 e 500 mil habitantes. Dessa forma, cada rede de saúde poderia configurar desde um espaço dado num grande município metropolitano até a integração de vários pequenos municípios.

d) Cartão SUS como base para os mecanismos de compensação financeira entre redes de saúde – Cada rede de saúde deve ser o espaço para o atendimento de uma dada população. Isto não significa que as redes de saúde vão negar o atendimento de pessoas que, por circunstâncias diversas, não vivem ou pertecencem geograficamente a esta rede. Para que isso ocorra sem constrangimentos, o Cartão SUS pode ser utilizado como mecanismo para acionar compensações financeiras e transferências de recursos entre distintas redes de saúde. Pode também atuar como mecanismo para compensar as transferências de recursos daqueles que detém planos de saúde quando atendidos nos estabelecimentos que pertencem a uma dada rede de saúde. Assim o Cartão SUS permitiria uma maior justiça na distribuição dos ônus e dos incentivos financeiros para que as redes funcionem como espaços de excelência na organização dos serviços de saúde no Brasil.

e) Cartão SUS e Centrais de Regulação – O Cartão SUS poderá ser visto como o principal elo de ligação entre os direitos de proteção à saúde do indivíduo e familias, as redes de saúde e as centrais de regulação. Para tal, basta que a gestão das bases de dados de cada rede de saúde esteja na Central de Regulação que corresponde a esta rede e que as distintas unidades da rede funcionem como elemento para a constante atualização eletrônica dos cadastros do Cartão SUS, quando apropriado. Neste novo desenho do Sistema, as centrais de Regulação serão organizadas por redes de saúde e integradas ao nível dos Departamentos de Regulação de Saúde, a ser criados nos Estados. Municípios por demais pequenos para comportar uma central de Regulação deverão integrar o Consórcio Inter-municipal que formará as redes de saúde e a Central de Regulação da Rede que administra este Consórcio. Já os municípios que abrangem uma ou mais redes integradas de saúde contarão também com Departamentos de Regulação em suas Secretarias Municipais de Saúde que coordenarão o suporte às distintas redes existentes no Município e eventuais agendamentos de especialidades de cada rede.

NOTAS E REFERENCIAS

(i) Linder, J.A. et al. Electronic Health Record Use and the Quality of Ambulatory Care in the United States, in Arch. Intern Med. 2007; 167(13): 1400-1405. Este artigo, baseado em analyses do National Ambulatory Medical Care Survey dos Estados Unidos de 2007 a 2004, examinou a relação entre o uso de RES e 17 indicadores de qualidade ambulatorial, concluindo que em 14 dos 17 indicadores não existem variações significativas na qualidade dos serviços associadas ao uso de RES pelos centros ambulatoriais. Em dois indicadores, o uso de RES propicia melhor qualidade e em um, pior qualidade.

(ii) Chaudhry, B. et al., Systematic Review: Impact of Health Information Technology on Quality, Efficiency, and Costs of Medical Care, in Annals of Internal Medicine, 2006; 144(10):E12-E22. Embora este paper reconheça os avanços propiciados pelo uso de tecnologia da informação em saúde, eles dizem que as avaliações existentes se limitam a poucas instituições e não há evidencias conclusivas sobre os impactos positivos na redução de custos.

(iii) Athey, S., & Stern, S., The Impact of Information Technology on Emergency Care Outcomes, in Rand Journal of Economics, 2002; 33(3):399-432. (http://www.jstor.org/stable/3087465, accessed on 02/19/2010)

(iv) Anderson, J.F. et al., Health Care Spending and Use of Information Technology in OECD Countries, in Health Affairs, 2006, 25(3):819-831. Este estudo mostra que ainda que não existam evidências robustas de que os sistemas de tecnologia da informação reduzam custos, eles mostram que os Estados Unidos está ingressando no uso desses sistemas com um atraso de quase 12 anos em relação a outros países da OECD.

(v) Extraído de Bandarra, E., Estratégias para a Informática em Saúde no Brasil, Apresentação feita no Seminario Prontuário Eletrônico do Paciente, no Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Sirio Libanês entre 7 e 9 de outubro de 2007.

(vi) De acordo com material publicado no Examiner em julho de 2009, as fraudes nos principais programas públicos dos Estados Unidos (Medicare e Medicaid) podem alcançar valores equivalentes a 10% do total dos recursos alocados nestes programas. Fraudes comuns como médicos que cobram por plantões superiores a 24 horas por dia, empresas médicas que cobram por serviços fantasma prestados, farmácias que cobram por prescrições feitas a pacientes que já morreram, companias de home-care cobrando por serviços prestados a pacientes que se encontravam nos hospitais, e outros, são claramente problemas que se associam ao baixo uso de sistemas informatizados de controle que poderiam ser resolvidos caso os Estados Unidos utilizasse mais intensamente os RES nos programas públicos. Ver http://www.examiner.com/x-2684-Law-Enforcement-Examiner~y2009m7d23-Billions-in-MedicareMedicaid-lost-to-fraud-abuse

(vii) Levy, S., Cartão Nacional de Saúde – 15 Anos de História, in Domingueira, publicação eletrônica distribuida por email pelo Sanitarista Gilson Carvalho, número 514, 2 de maio de 2010. Tenho o texto completo de Sylvain e poderia disponibiliza-lo a quem me solicitar por email.

(viii) Empresas como Kaiser a Permanente, que prestam atenção médica da qualidade a uma parte considerável da população da California, perderam mais de US$2 bilhões nos investimentos iniciais de seus primeiros RES, mas depois acertaram o rumo e hoje tem um dos melhores sistemas do mundo, que associados ao seu modelo assistencial, podem gerar economias de até 30% em relação aos custos de outros planos de saúde nos Estados Unidos associados aos 8,6 milhões de beneficiários desta empresa. Sobre os sistemas RES atualmente utilizados por Kaiser Permanente ver http://xnet.kp.org/newscenter/aboutkp/healthconnect/index.html.

(ix) Ver sobre este ponto Cunha, R. E., Cartão Nacional de Saúde: Os Desafios da Concepção e Implantação de um Sistema Nacional de Captura de Informações de Atendimento em Saúde, in Ciencia e Saúde Coletiva, 7(4) 869-878. http://www.scielo.br/pdf/csc/v7n4/14610.pdf (Acessado em 16/05/2010)

(x) Segundo Reportagem publicada na Revista Época de 02/05/2010, intitulada O cartão que virou cartolina, a capital de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, foi uma das cidades escolhidas para o projeto piloto. A prefeitura da cidade desenvolvia, desde o início dos anos noventa, um cadastro único dos usuários do SUS, e o governo federal resolveu aproveitar a experiência. Em setembro de 2002, Campo Grande recebeu do Ministério da Saúde uma remessa de 500 mil cartões magnéticos e 200 terminais de atendimento. Passados oito anos, os terminais estão estocados numa sala da Secretaria de Saúde da prefeitura. Não se sabe quantos usuários da cidade ainda mantêm os cartões. Os documentos ainda existentes, embora eletrônicos, têm a mesma função de um cartão de papel, pois não há equipamentos que façam a leitura.

(xi) De acordo com a Agência Estado em reportagem de 05/11/2007, intitulada Fraudes na Saúde Pública chegam a R$613 milhões, um levantamento da Controladoria Geral da União (CGU) apontava que entre Janeiro de 2003 e Julho de 2007, o volume de recursos aplicados irregularmente no SUS alcançou a cifra de R$ 613 milhões e que, dentre todos os setores da administração pública, a saúde apresentou o maior volume de fraudes.

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