Ano 5, No. 14, Maio 2010
André Cezar Medici (1)
1. A Economia da Oferta e suas Limitações
Jean Baptiste Say foi um dos intelectuais francêses que se debruçou sobre os estudos da economia nos finais da época mercantilista (segunda metade do século XVIII). Pertencente a escola posteriormente denominada fisiocrata (2) , descobriu que numa economia insipiente, ainda em formação, a oferta de novos produtos, estimulava a demanda. O papel do Estado em organizar a expansão do comércio além das fronteiras locais, internacionais e ultramarinas fazia com que todos os novos produtos locais, oriundos da especialização do trabalho trazida pela manufatura, e coloniais, frutos da troca mercantilista, tivessem grande aceitação entre a burguesia nascente em distintos países, estimulando a troca nacional e alimentando o comércio internacional. No entanto, o papel ainda limitado da produção e a curiosidade das novas classes afluentes na busca por novos produtos levou o pensador a formular uma máxima conhecida como a Lei de Say: toda a oferta cria sua própria demanda.
A economia política clássica começou sua história desbancando a Ley de Say. Décadas após a publicação dos escritos de Say, David Ricardo, um dos pais da economia política clássica, no incício do século XIX, ao estudar as formas pelas quais se estruturava a economia de mercado na Inglaterra recém ingressa na Revolução Industrial, descobriu que a sociedade havia mudado com o agigantamento da divisão do trabalho e a consequentemente expansão dos mercados. A troca, antes um complemento à produção de subsistência, passava agora a ser a norma e a economia mercantil dava lugar a sociedade de consumo. O acelerado processo de industrialização e a intensificação da divisão do trabalho, numa sociedade onde a escala de produção econômica aumentava em proporções geométricas, mostrava que a demanda – e não a oferta – era o grande motor da economia. Esta tese foi consagrada pelos economistas posteriores e continua vigente nos dias de hoje.
Sob estas condições, a normalidade do mercado e a garantia de que a demanda orientaria a oferta deveriam estar asseguradas por pelo menos duas premissas: (a) o carater concorrencial da economia, garantindo uma diversidade de produtores, baixos graus de monopólio e preços sensíveis às variações de demanda e; (b) a informação simétrica entre quem vende e quem compra, relacionada ao conhecimento mútuo de compradores e vendedores sobre a natureza do mercado e as características dos produtos.
No entanto, imperfeições de mercado sempre existiram, fazendo com que em alguns setores, a produção industrial e de serviços não atendesse às premissas necessárias para que a demanda determinasse a oferta. Como bem demonstrou Joseph Shumpeter, economista austríaco que produziu grande parte de sua obra entre os anos vinte e os anos quarenta do século passado, a inovação é a alma do capitalismo. É ela que garante a conquista de novos mercados e norteia a volúvel preferência dos consumidores. Novos produtos garantem ganhos diferenciais que se baseiam na ausência da concorrência e na assimetria de informação entre quem vende e quem compra e, dessa forma, fazem com que a oferta – mesmo que por um curto período de tempo – determine a demanda nestas áreas de inovação.
Além do mais, em setores específicos como aqueles que garantem serviços essenciais - energia, transporte, educação - as relações entre oferta e demanda são quase sempre complicadas, exigindo, em quase todas as sociedades, a presença do Estado para garantir sua oferta regular e para assegurar a informação adequada e a modulação da demanda de acordo com a tecnologia e os meios de comunicação disponíveis.
As imperfeições de mercado são uma característica do setor saúde. Nele, as assimetrias de informação entre quem compra e quem vende (ou quem entrega o serviço e quem o demanda) são de grande proporção. Kenneth Arrow (3) , premio Nóbel de Economia, escreveu um artigo em 1963 que praticamente fundou o campo da economia da saúde. Neste artigo se destaca que o setor saúde é marcado pela existência de imperfeições de mercado e forte assimetria de informação, associada à natureza da demanda, ao comportamento dos médicos, à incerteza quanto ao produto, às condições da oferta e ao processo de estabelecimento dos preços no setor. Além do mais, é o setor que por mais de quatro décadas tem liderado no campo das inovações científicas e tecnológicas, fazendo com que os ganhos diferenciais de inovação sejam praticamente uma constante em empresas industriais e de serviços associadas ao setor.
Detalhando ainda mais este ponto, Donabedian (4) afirma que o modelo de livre mercado pressupõe a existência de um consumidor soberano, que decide o que comprar ou não, quando e aonde fazê-lo. Mas no caso da atenção médica, estes preceitos não se cumpririam, dado que: (a) doenças são involuntárias e imprevisíveis; (b) serviços de atenção médica são necessários e insubstituíveis; (c) serviços de atenção médica tendem a ser indivisíveis; (d) a necessidade dos serviços coincide com perdas da capacidade de trabalho e do poder aquisitivo dos indivíduos; (e) o médico é que decide, em nome do paciente, que serviços ele necessita; (f) a disponibilidade de alternativas de atenção médica a diferentes preços é limitada e (g) não há informação para que os pacientes comparem os preços de um mesmo ou de diferentes serviços.
Portanto, a assimetria de informações leva a economia da oferta a seguir orientando a dinâmica do setor saúde, trazendo como consequências o desconhecimento dos pacientes quanto aos protocolos e serviços a que estão submetidos,, deficiências de cobertura, disperdício no uso dos recursos e o crescimento desproporcional dos gastos em saúde. Dadas essas circunstâncias, a regulação do mercado, a presença do Estado como financiador da inovação e difusão científica (como demonstra o papel de instituições como o NIH nos Estados Unidos ou da FIOCRUZ no Brasil) e a integração entre as esferas públicas e privadas passaram a ser imperativos ao setor saúde. Mesmo representando importantes mercados privados em muitos países e alcançando partes consideráveis do Produto Interno Bruto, o setor historicamente tem sido pautado pela forte presença de políticas públicas e intervenção do Estado: de um lado, para garantir a oferta equitativa, a disponibilidade do serviço e evitar perdas financeiras das famílias e índivíduos oriundas de gastos catastróficos em saúde e de outro, para assegurar o funcionamento e a inovação em setores essenciais como a indústria farmacêutica e de equipamentos médicos.
Assim, desde o século XIX, o setor público e a sociedade civil começam a se organizar para garantir saúde, como proteção básica à população e garantia de regularidade do mercado de trabalho. Somente para citar alguns exemplos, a forte presença do Estado em saúde aparece em muitas sociedades de mercado: na Alemanha em fins do século XIX sob o governo de Bismarck; nos Estados Unidos, com os planos de saúde ofertados por instituições não lucrativas, como a Blue Cross, Blue Shield, a Kaiser Permanente, durante a grande depressão dos anos trinta; na Inglaterra, com a medicina de família (primary health centers and general practitioners) de Bertrand Dowson, nos anos 1920, e o Plano Beveridge, ao fim da Segunda Guerra Mundial; nos Estados Unidos novamente, com as reformas que introduziram o Medicare e o Medicaid nas décadas de sessenta e setenta; e no Brasil, com a criação das CAPS, nos anos vinte, dos IAPS, nos anos trinta, do INPS-INAMPS nos anos sessenta e setenta e com o advento do SUS, ao final dos noventa. Em nenhuma destas tratativas o Estado esteve de fora na construção da proposta, seja para o seu financiamento, na regulação e geração de incentivos ou na administração direta dos serviços.
O grande dilema é que, mesmo contribuindo para a redução do sofrimento humano e prolongamento da vida, os processos regulatórios em saúde tem sido tímidos no uso de modelos de gestão que aumentem a eficiência nos gastos com melhores resultados assistenciais. Por este motivo, surgiram correntes de pensamento que passaram a buscar formas de integração de diferentes níveis de atenção e esferas do sistema de saúde que poderiam levar a uma maior coordenação de esforços para melhorar a eficiência e a eficácia do setor do ponto de vista sistêmico e garantir que a informação setorial seja melhor distribuida entre unidades, atores relevantes do sistema e pacientes, com vistas a reduzir os custos de transação e aumentar a capacidade resolutiva do sistema.
2. Consequências da Economia da Oferta em Saúde
Ainda que os processos regulatórios possam levar a soluções que minimizem os efeitos da economia de oferta na assimetria de informações e na gestão dos serviços, esses processos devem ser aplicados, de forma coordenada, em redes que atuem de forma integrada na solução dos problemas de saúde de uma determinada Região. A ausência de processos regulatórios associados a integração de serviços de saúde de distintas naturezas (público, filantropico e privado) e de distintos níveis de complexidade (atenção básica, especializada e de alta complexidade) levam a perpetuação das consequências negativas da economia da oferta no setor saúde, as quais descrevemos abaixo:
a) Fragmentação:
Sem a existência de processos coordenados de integração, todas as unidades de saúde, independentemente de seu porte e complexidade, passam a atuar como porta de entrada do setor. A assimetria de informação sobre o nivel de resolutividade requerido para distintos problemas de saúde, leva os indivíduos a buscar unidades de maior porte e complexidade dado que estas transmitem a impressão (muitas vezes falsa) de que são mais resolutivas, resultando em superlotação nas emergências de hospitais e esvaziamento de unidades básicas.
No caso do Brasil, por exemplo, parte desse processo também se associa a inexistência de unidades resolutivas de média complexidade, funcionando dia e noite durante todos os dias da semana, as quais permitem resolver eficazmente problemas que normalmente são levados para as urgências e emergências hospitalares. As familias urbanas pobres, onde ambos os cônjuges trabalham sem mecanismos de proteção social, tem seu acesso à saúde limitado pelo fato de que as unidades públicas de atenção básica à saúde funcionam somente em horário comercial. Assim, quando necessitam de cuidado médico noturno tem como única opção a busca dos serviços hospitalares de urgência.
Este fato ainda se intensifica pela inexistência de regras definidas para derivar pacientes para unidades de maior complexidade. Casos simples são tratados em estabelecimentos mais complexos e casos complexos deixam de ser atendidos em unidades de maior complexidade, aumentando o risco dos pacientes.
As Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) que começam a ser implantadas em Estados como o Rio de Janeiro desde 2007, parecem demonstrar uma elevada eficácia na solução destes problemas, mas muito ainda se teria que avançar em sua integração com outros unidades das redes de saúde locais de porte e complexidade diferenciado como as de atenção básica (Programa de Saúde da Família) e os hospitais gerais e especializados.
b) Ausência de gestão clínica:
O forte desenvolvimento das tecnologias de informação tem permitido avanços na identificação, registro, agendamento de pacientes, regularização do fluxo de serviços, criação de prontuários eletrônicos, desenvolvimento de sistemas de custos, gestão de farmácia e insumos e muitas outras aplicações na área de saúde. No entanto, boa parte destas tecnologias somente permite um processo integrado de gestão clínica quando os serviços se estruturam em rede e os processos de TI se integram ao nivel das mesmas.
A inexistência de redes de saúde leva a não integração da gestão clínica e não permite o uso eficiente de processos que hoje se iniciam a difundir nas unidades de saúde no Brasil como fichas clínicas eletrônicas, protocolos por patologia, case-mix ou regras de conduta para estabelecer caminhos críticos para preservar ou salvar a vida dos pacientes.
A ausência de redes dificulta a detecção precoce de problemas de saúde e o registro e acompanhamento de pacientes crônicos ao longo dos distintos tipos de serviços prestados. Temas como promoção, prevenção, uso de linhas de cuidado acabam sendo conceitos teóricos pouco refletidos em práticas cotidianas nos estabelecimentos de saúde.
c) Falta de gestão eficiente dos recursos financeiros.:
A inexistência de redes de saúde não permite economias de escala e aglomeração que levam a racionalizar o financiamento das ações de saúde. A análise do fluxo dos recursos passa a se concentrar em estabelecimentos de saúde que, sem estarem integrados em redes, acabam vinculando o financiamento à categorias de gasto (salários, insumos, medicamentos, manutenção) e deixam de vislumbrar prioridades epidemiológicas e o uso de processos preventivos na ponta de rede, que acarrentariam em reduções de gastos com alto custo na outra ponta a médio prazo.
Por outro lado, a lógica do financiamento centrada em estabelecimentos de saúde, ao invés de patologias, leva ao marasmo administrativo. A cada ano os orçamentos se repetem ou se reajustam com base no comportamento historico dos gastos. Os incentivos ao financiamento, ou estão associados à minimização do tempo dedicado a cada cuidado ou a maximização do valor dos procedimentos reembolsados nos estabelecimentos, trazendo distorções no uso eficiênte dos recursos e nos resultados assistenciais.
d) Balanceamento inadequado no uso de recursos humanos
A ausência de integração das redes de saúde focaliza o tema de recursos humanos nas unidades de saúde e não sua adequada distribuição na rede. Ao invés de utilizar as prioridades epidemiológicas e o fluxo dos serviços para definir as quantidades e a composição (skill mix) dos recursos humanos, se acaba priorizando se em cada unidade os quantitativos de médicos, enfermeiros e outros profissionais de acordo com a dimensão da planta de pessoal definida para a unidade de saúde.
O mesmo se aplica aos esforços de capacitação de pessoal. Pouco se discute sobre a necessidade futura de capacitação em relação aos recursos existentes na rede de saúde. O uso da telemedicina, capacitação à distância e outros recursos de treinamento não são utilizados, ou quando o são, não obedecem a um planejamento baseado em necessidades assistenciais de uma rede integrada.
A falta de coordenação em rede também amplia a possibilidade de multi-emprego, fazendo com que se minimize a possibilidade resolutiva de cada espaço da rede e se maximize a lotação de pessoal em cada estabelecimento de saúde, sem um controle adequado do uso do tempo de trabalho, duplicando esforços e reduzindo a eficácia no uso de recursos humanos.
e) Falta de coordenação do fluxo de serviços e inadequação dos sistemas logísticos:
A inexistência de redes não permite o uso adequado dos recursos e a distribuição do fluxo de pacientes segundo as necessidades regionais. As internações, por exemplo, deixam de ser atendidas por uma escala de urgência e passam a ser definidas segundo as prioridades subjetivas do corpo médico ou da gerência de cada unidade. Não é raro, nestas circunstâncias, que a ordem das filas seja subvertida por tráfico de influências, corrupção e compromissos institucionais. A mercantilização substitui a ética médica e a descoordenação gera falta de transparência e impunidade. Como resultado, muitos casos não tem tratamento adequado. Aumenta a morbidade e a mortalidade evitável, os profissionais de saúde se desvalorizam e se degradam e os pacientes perdem a confiança no sistema de saúde.
A criação de redes permitiria uma melhor utilização dos sistemas de saúde pública, consultórios, leitos, instalações, laboratórios e recursos de terapia intensiva. Facilitaria a adequada distribuição dos pacientes entre as instalações existentes, de acordo com a severidade dos casos, através de prontuários, agendamento telefônico (call-centers), sistemas de triagem e centrais de regulação de leitos. Valorizaria a promoção e a prevenção, assim como o acompanhamento dos casos após as fases agudas. Aproximariam o paciente de seu médico clínico e valorizariam as regiões de saúde e suas unidades de atenção básica.
O mesmo se aplicaria a distribuição de insumos, os quais podem ser comprados e armazenados centralmente, utilizando sistemas logísticos eficientes e processos de licitação, distribuição e gestão dos prazos de validade adequados. Da mesma forma, a formação de redes de saúde otimizaria uso de facilidades para exames de laboratório, imagem e terapias especiais segundo as necessidades dos pacientes e a disponibilidade das mesmas na rede.
Por todos esses motivos, os efeitos negativos da economia da oferta em saúde podem ser minimizados (ou até eliminados) pelo uso de redes de saúde que permitam:
(a) organizar a demanda, a medio e longo prazo, a partir de uma organização que permita atender as prioridades epidemiológicas da população de uma região de saúde, com serviços integrados;
(b) organizar a demanda imediata, a partir de informação ordenada sobre as necessidades dos pacientes, sobre sua situação de saúde e sobre os recursos disponíveis na rede para atender essas necessidades e;
(c) programar e planejar a estrutura de funcionamento, as necessidades de pessoal, os recursos de tecnologia de informação, os recursos humanos, as instalações e equipamentos e a provisão insumos de acordo com as demandas definidas em a e b.
3. Fragmentação, Integração, Hierarquização e Regionalização em Saúde
a) A Dimensão Institucional e os Conceitos de Fragmentação e Integração
Existem duas dimensões que devem ser consideradas quanto aos temas associados a fragmentação x integração dos sistemas de saúde. A primeira, de natureza institucional, diz respeito a dicotomia entre sistemas estruturados ou desestruturados, ou ainda, sistemas unificados x sistemas fragmentados. Londoño e Frenk (1997) (5) , nos anos noventa, partiram do ponto de vista que, independentemente de serem únicos ou fragmentados, o importante é que haja uma estrutura que garanta a coordenação das funções e ações desempenhadas pelos sistemas de saúde, como forma de aumentar a acesso, equidade, qualidade e eficiência na gestão. Para estes autores, sistemas de saúde plurais ou fragmentados podem ser integrados ou estruturados a partir de instrumentos jurídico-institucionais que garantam uma adequada regulação e coordenação das funções destes distintos sistemas.
Uma visão complementar a esta dimensão é abordada por Mendes (2001) (6), ao considerar que a segmentação da atenção à saúde leva à segregação de diferentes clientelas em nichos institucionais singulares. Segundo o autor, a segmentação pode até estar acompanhada por uma integração vertical onde cada segmento - público ou privado - exercita coordenadamente as funções de financiamento, regulação e prestação de serviços para suas clientelas particulares. No entanto, partindo da premissa de que a saúde é um direito fundamental de cidadania, os sistemas segmentados não são capazes de evitar uma segregação horizontal das clientelas, onde o acesso, equidade e qualidade passam a ser diferenciados em cada sistema, gerando profundas injustiças sociais.
Vários autores tem explicitado a natureza segmentada do sistema de saúde brasileiro. Medici (2002) (7) afirmava que o sistema de saúde brasileiro é pluralista e fragmentado. Nele se destacam três grandes segmentos com modalidades próprias de financiamento e prestação de serviços: aquela organizada pelo setor público – o SUS, o sistema voluntário de planos de saúde financiados pelas empresas e famílias, conhecido como sistema de saúde suplementar e aquele financiado diretamente pelo orçamento das famílias.
A fragmentação reside no fato de que estes três segmentos não integram suas estratégias assistenciais nem estabelecem fluxos compensatórios de financiamento das transferências de saúde do SUS para indivíduos ou famílias que utilizam concomitantemente mais de uma destas modalidades. Em geral, isto acarreta: (a) em recursos públicos subsidiando atividades privadas (clientes de planos de saúde utilizando serviços do SUS que deveriam estar sendo custeados pelos planos) ou ações de saúde sendo duplamente financiadas (estabelecimentos faturando simultaneamente do SUS e dos planos privados para receber pela prestação de um mesmo serviço), o que cria problemas tanto na equidade como na eficiência do sistema.
b) A Dimensão Espacial e os conceitos de Regionalização e Hierarquização
A segunda dimensão, de natureza espacial, diz respeito aos processos de integração e coordenação de funções em redes regionais de saúde. Estas podem integrar diferentes segmentos públicos ou privados, representando a totalidade da oferta de saúde de uma dada Região, ou apenas se referir à um segmento específico, como é o caso do SUS.
Alguns condicionantes devem ser pensados na estruturação de redes de saúde. Qual seria sua dimensão ótima? Que funções elas deveriam integrar? Como as condições sociais, demográficas e epidemiológicas definem as funções das redes? Deveriam elas incluir todas as modalidades de serviços, ou determinados níveis de complexidade deveriam estar além dos limites geográficos das redes? Até que ponto a geografia e o acesso (hidrografia, relevo, densidade populacional, transportabilidade, comunicações) devem definir o desenho, as funções e as instituições que compõe uma dada rede de saúde?
O que vamos explorar na segunda parte deste artigo é esta segunda dimensão, buscando discutir o caráter interno da organização das redes de saúde, em seus aspectos de hierarquização e regionalização, e explorando alternativas para o caso brasileiro.
A idéia de rede regional de saúde não é nova. A articulação regional e hierarquização das ações entre estabelecimentos de saúde com distintos níveis complexidade, como forma de aumentar a eficiência e a resolubilidade dos serviços, já foi pensada em muitas ocasiões ao longo da história recente. Donabedian, por exemplo, afirmava que o adequado exercicio do planejamento das ações de saúde só é possível se, independentemente de seus diferentes papéis na produção de serviços, os objetivos que norteiam a ação dos estabelecimentos de saúde são congruentes.
A congruência entres os objetivos permite organizar o fluxo e a hierarquia das ações entre distintos estabelecimentos de saúde, a qual viabiliza o exercício do planejamento e programação regional dos serviços. Eckestein, citado por Donabedian, falando da estrutura do sistema de saúde inglês na década de 50, alguns anos após a implementação do Plano Beveredige, afirmava que o objetivo do sistema de saúde britânico era proporcionar gratuitamente a todos os cidadãos os serviços que lhes eram necessários, Uma vez consensuado este objetivo, se buscava o financiamento adequado e racional para organizar e entregar os serviços, a estruturação e o fluxo dos mesmos nos distintos pontos da rede regional e a eliminação dos disperdícios e duplicações de funções.
A idéia de rede de saúde se vem estruturando em contra-posição aos malefícios da fragmentação dos serviços decorrentes da economia da oferta. A conferência internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, realizada em Alma Ata (URSS) em 1978 é conhecida por destacar o papel da atenção básica na melhoria das condições de saúde dos povos. Mas na verdade, ela foi muito mais do que isso, dado que enfatizou a importância da articulação dos serviços de saúde em redes regionalizadas e hierarquizadas de saúde. De acordo com o artigo VII, item 6 desta conferência, os serviços de atenção primária “devem ser apoiados por sistemas de referência integrados, funcionais e mutuamente amparados, levando à progressiva melhoria dos cuidados gerais de saúde para todos e dando prioridade aos que têm mais necessidade” .
Sobre a base das discussões de Alma Ata (8), a Organização Pan Americana da Saúde (OPAS) desenvolveu, ao final dos anos 1980, a idéia de Sistemas Locais de Saúde (SILOS) a qual se baseia em soluções que mesclam a regionalização (territorialização) com a capacidade resolutiva de acordo com a hierarquia da rede de saúde em diferentes níveis de complexidade. Um SILOS consiste em um conjunto inter-relacionado de recursos internos e externos ao setor saúde, que são responsáveis pela saúde de uma população, em uma região geográfica específica, cujos limites podem ser uma ou mais unidades administrativas como distritos, municípios ou regiões.
Em muitos países a regionalização ou divisão administrativa de um território (município, estado, etc.), para fins de organizar um sistema de saúde é anterior ao conceito de SILOS. Mas nem sempre estas unidades funcionavam sob um mesmo plano de ação regional, havendo portanto, poucos avanços nos aspectos de coordenação, eficiência e resolubilidade. O conceito de SILOS inova na perspectiva de melhor fundamentar os processos de hierarquização ou integração vertical das unidades sob uma mesma territorialidade e na gestão dos recursos para que esta integração alcance os melhores resultados.
Na próxima parte deste artigo discutiremos a historia do processo de Regionalização da Saúde no Brasil
Notas
(1) Texto baseado em apresentação realizada no dia 14 de novembro de 2008 no Seminário sobre Saúde, Previdência e Assistência Social, realizado na Fundação Getúlio Vargas.
(2) A denominação fisiocracia nasceu por uma analogia aos trabalhos de um dos pais dessa escola – o médico François Quesnay. Este autor, ao analisar a afluente economia francesa do século XIX, a descreveu como um sistema semelhante ao aparelho circulatório humano, onde os bens, serviços e mercadorias irrigavam (como a corrente sanguínea) os distintos setores da produção.
(3) Arrow, K.J. (1963), “Uncertainty and the Welfare Economics of Medical Care”, American Economic Review 53(5): 941-73, dec-1963.
(4) Donabedian, (1988), A., “Los Espacios de la Salud: Aspectos Fundamentales de la Organización de la Atención Médica”, Ed. Fondo de Cultura Económica, México, 1er. Edición en Español, 1988.
(5) Londoño, J.L & Frenk, J. (1997), “Structured Pluralism: Toward an Innovative Model for Health System Reform in Latin America”, Health Policy 41 (1): 1-36.
(6) Mendes, E.V. (2001)“Os Grandes Dilemas do SUS”, Casa da Qualidade Editora, Salvador (Bahia), Brasil.2001.
(7) Medici, A.C. (2002), “O Desafio da Descentralização: Financiamento Público da Saúde no Brasil”. Ed. Banco Interamericano da Saúde, Washington (DC),2002
(8) A Declaração de Alta Ata pode ser acessada na página: http://www.opas.org.br/coletiva/uploadArq/Alma-Ata.pdf
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