Ano 8, No. 51, Fevereiro de 2014,
Vitor Gomes Pinto (*)
NOTA DO EDITOR: Na postagem anterior, o blog Monitor de Saúde fez um convite a
reflexão sobre os 13 pontos da proposta de saúde na campanha eleitoral do
Governo em curso. Nosso convite parece ter tido eco e recebemos um primeiro
artigo de Vitor Gomes Pinto, um antigo amigo, como eu defensor de primeira hora
do SUS, preocupado com os desvios que vem ocorrendo para alcançar os objetivos
de uma saúde digna e de qualidade para todos os brasileiros. Conheci Vitor nos
anos oitenta, antes da famosa 8ª Conferencia Nacional de Saúde e, junto com
tantos outros, contribuimos para a discussão das bases do financiamento do SUS.
Vitor foi do grupo de saúde do IPEA e tem uma vasta experiência em vários campos
da saúde pública no Brasil. Com vocês, a opinião de nosso querido Vitor Gomes
Pinto (Andre Medici).
O ano de 2014 é de eleições em sete países latino-americanos e, segundo
os costumes locais, à medida em que a data do pleito se aproxima mais e mais os
eleitores e os militantes são inundados com propostas e promessas de “programas
de governo”, cada qual mais mirabolante do que a outra, mas com a
característica comum de que não se destinam a ser cumpridas. Nesta categoria se
inserem as prioridades para o período 2011 – 2014 estabelecidas no documento
“Mais saúde para o Brasil seguir mudando com Dilma” que oportunamente André Medici
fez questão de recuperar na edição deste janeiro do Monitor de Saúde[1].
Os treze pontos formulados pelos técnicos do Partido dos Trabalhadores
constituem, na verdade, um conjunto de noções gerais acompanhados por uma
listagem de programas específicos desenvolvidos pelo Ministério da Saúde, em
relação aos quais praticamente inexistem discordâncias. Quem seria contrário,
por exemplo, à inclusão de um tópico de “prevenção e promoção da saúde” (nº 1),
“ampliação do acesso aos serviços de saúde (nº 2) ou à “melhoria da
infraestrutura” (nº 7)? Não obstante, para quem está nas frentes de trabalho,
costuma ser essencial “estar dentro”, ou seja, constar no rol de prioridades.
Assim, mostrando sua força interna, curiosamente lá está, ainda, a “humanização”
dos serviços, mesmo que após vários anos não tenha sequer conseguido reduzir as
filas que madrugadas afora serpenteiam no lado de fora das unidades de saúde do
SUS. Um outro campo de larga tradição no país, a saúde mental, que ao longo do
século XX acumulou conquistas impressionantes nas lutas pelo fim dos manicômios
e pela desospitalização de pacientes, ganhou surpreendente destaque, mas se viu
consumido pela ênfase quase absoluta no combate ao uso do crack.
Em outros destaques, o programa sublinha iniciativas que deveriam,
efetivamente, constituir-se em pilares de sustentação da política setorial daí
em diante: melhoria da infraestrutura, financiamento compatível com o
desenvolvimento econômico e social da nação, mais profissionais e regulação do
estado brasileiro, naturalmente naquilo que é do interesse setorial.
Respeitados especialistas no ramo retratam com franqueza o que hoje
acontece, ou seja, a que essas prioridades nos conduziram. Nelson P. dos Santos[2],
por exemplo, diz que “a grande maioria das 45 mil unidades básicas de saúde
estão em más ou péssimas condições prediais e de equipamentos. A insustentável
precariedade das condições de trabalho em saúde e a ausência de concursos
públicos e carreiras sérias e atrativas faz com que mais de 60% do pessoal
esteja terceirizado ou sob contratos temporários em regra aviltantes.” Atendendo a demanda forçada pela nova
Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), a Prefeitura Municipal de São
Paulo[3] divulgou a lista
completa dos pedidos médicos reprimidos na rede municipal em 31 de dezembro de
2012, com 800.224 registros na fila por atendimento, seja na área de exames,
consultas com especialistas ou mesmo cirurgias. Na média, o tempo de espera era
de 8 meses.
É inegável, por outro lado, que em seu quarto de século de existência o
SUS assistiu a extraordinários avanços, como destacam Gragnolati e outros[4]
em um estudo específico sobre o SUS ao
referirem que o número de consultas médicas cresceu 70% entre 1990 e 2009,
sendo acompanhado pelo declínio das distinções geográficas traduzido pela maior
utilização dos serviços nos estados mais pobres, mesmo que notando a
persistência de notáveis disparidades entre os decis superiores e inferiores de
renda. Concluem afirmando que nessas duas décadas o Brasil tem assistido a
melhoras significativas nas condições de saúde, com reduções dramáticas na
mortalidade infantil e aumentos na expectativa de vida, ainda que tais efeitos só
em parte se devam à performance do setor saúde. Em 2012 o Sistema foi capaz de
realizar 537 milhões de consultas médicas e 11 milhões de internações
hospitalares[5]
para uma população de 194 milhões de habitantes.
Os problemas crônicos do subfinanciamento dos serviços públicos de
saúde não encontraram encaminhamentos ou soluções positivas, ao contrário do
que se esperava, ao longo dos últimos onze anos. O país destina 7,9% do PIB
para a saúde, mas apenas 47% desse total é proveniente do setor público. Recentemente,
fracassou uma nova tentativa de aumentar os recursos setoriais, quando uma
ampla frente de instituições chegou a coletar 2,2 milhões de assinaturas em
apoio a Projeto de Lei de Iniciativa Popular destinando 10% da Receita Corrente
Bruta da União para o setor saúde[6].
Encaminhado ao Congresso Nacional o pleito enfrentou, como de costume, fortes
resistências do setor financeiro (Ministérios da Fazenda e do Planejamento e
Casa Civil).
Castigado
pela condenação pelo Supremo Tribunal Federal, no processo de desvio de
recursos públicos conhecido como Mensalão, de alguns dos mais altos dirigentes
do Partido dos Trabalhadores, o governo foi surpreendido por
movimentos espontâneos de massa que levaram milhões de jovens, a maioria de
classe média, às ruas do país em junho de 2013. Pesquisa do IBOPE divulgada ao
final do mês seguinte, constatou que a avaliação de “ótimo e bom” do governo
Dilma Rousseff teve queda de 63% para 31%, ao ser comparada aos índices de
março. Já o item “ruim e péssimo” saltou de 7% também para 31%, o que foi
interpretado como um efeito imediato do chamado Grito das Ruas e como um
desgaste dos dez anos do partido à frente da política nacional[7].
Na análise por setores específicos, o pior resultado em termos de desempenho, na
visão da população, foi o da saúde, assinalado por
71% dos entrevistados (segurança pública foi citada por 40% da população,
seguida dentre várias outras áreas pela educação com 37%).
Com
dificuldades e incapaz de enfrentar os crônicos problemas de infraestrutura,
gestão e financiamento acumulados pelo Sistema Único de Saúde, o governo,
desejoso de oferecer respostas de impacto e de curto prazo, optou por dar
viabilidade ao oitavo dos 13 pontos do programa formulado em 2011, referente a
“profissionais necessários à saúde dos brasileiros”. Tratou, assim, de dar
cumprimento a acordo firmado pelo ministro das Relações Exteriores, Antonio
Patriota, com o governo cubano, e em tempo recorde contratou (até dezembro de
2013) 5.400 médicos da ilha do Caribe para atuarem em localidades distantes e
nas periferias das cidades médias e grandes brasileiras, nas quais os
profissionais nacionais não aceitaram trabalhar, mesmo sob remuneração mensal
elevada para o equivalente a U$ 4,200.00 mensais (no caso dos profissionais
cubanos, a remuneração no Brasil corresponde a cerca de 10% deste valor, com o
restante sendo pago ao governo do seu país). O novo programa, conhecido como
“Mais Médicos” foi bem aceito pelas comunidades que passaram a ter acesso
regular ao atendimento médico, e se tornou o principal mote na campanha do
ministro Alexandre Padilha para o governo de São Paulo, o maior estado
brasileiro e um dos poucos ainda nas mãos da oposição.
Por
último, vale referir o discurso relativo à regulação do sistema de saúde,
destacado como o 12º dos 13 pontos acima referidos. A ausência de um eficaz
modelo regulatório, especialmente das ações do setor privado, é o fator mais
diretamente responsável pelo que se pode considerar como um Não-Sistema
brasileiro de saúde, caracterizado pela falta de integração entre os seus
múltiplos componentes. Este problema não é novo. Ao contrário, faz parte
intrínseca do modelo aberto de administração e de prestação de cuidados à
população. Em 1988, na criação do SUS, tendo sido politicamente impossível
estabelecer normas claras de funcionamento para o setor privado, este ficou
livre para crescer ao sabor do mercado e hoje o subsistema de Saúde Suplementar
já se expandiu ao ponto de proporcionar Planos de Saúde para mais de 49 milhões
de pessoas, o que torna a regulação ainda mais essencialmente necessária.
Palavras
ao vento é do que menos os brasileiros precisam neste momento. Espera-se que
diante do novo período administrativo 2015-2018 que se inicia no próximo
janeiro tenhamos pelo menos promessas quantificadas, com objetivos e metas
compreensíveis que permitam, inclusive, responder à pergunta de que modelo de
divisão de atribuições entre os setores público e privado será adotado para a
saúde deste país.
NOTAS
(*) Doutor em Saúde Pública pela USP, Especialista em Planejamento da Saúde e em
Relações Internacionais. Escritor. Membro do Observatório da Saúde do Distrito
Federal.
[1]
Médici, A. – Os 13 pontos: um convite paraavaliar as políticas de saúde de
2011-2-14. Monitor de Saúde. Washington, D.C., 26/01/2014. Disponível em:
monitordesaude.blogspot.com.br
[2]
Santos, N.R. – Financiamento da saúde: receita corrente bruta x receita
corrente líquida. Em: ANTC, Associação Nacional dos Auditores de Controle
Externo dos Tribunais de Contas do Brasil. 7 Dezº 2013. Disponível em: http://www.controleexterno.org/?secao=noticias&visualizar_noticia=196
[3]
SP tem 800 mil pedidos medicos na fila de espera. Estadão, 28/2/2013.
Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,sp-tem-800-mil-pedidos-medicos-na-fila-de-espera,1002490,0.htm
[4]
Gragnolati, M., Lindelow, M. e Cauttolecn, B. – Twenty years of health system
reform in Brazil: na assessment of the Sistema Único de Saúde. The World Bank.
Washington, D.C., 2013. Disponível em http://dx.doi.org/10.196/928-0-8213-9843-2
[5]
RIPSA – Indicadores de Dados Básicos, Brasil, 2012. Rede Interagencial de
Informações para a saúde. Brasília, 2013.
[6]
Abrasco, Cebes, Abres, IDISA, Ampasa - O Movimento Saúde + 10 e a luta pelo
financiamento adequado para o SUS – Manifesto de 7 Setº, 2013. Em: http://www.observasaude.org/sugeridas/files/o-movimento-saude10-e-a-luta-pelo-financiamento-adequado-do-sus.html.
[7]
População avalia saúde como o setor de pior desempenho governamental. Pesquisa
IBOPE, 26/7/2013. Disponível em: http://www.observasaude.org/noticias/files/ece8460bf6df9d8fd83a036da0e406d5-6.html
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