Ano 7, No. 32, Janeiro 2012
André Medici
Kaizô I. Beltrão (1)
Os frutos do Desenvolvimento
Em entrevista ao Jornal O Globo em 28 de Janeiro de 2012 (dois dias atrás), o empresário e fundador da Microsoft, Bill Gates, participando do Fórum Mundial de Desenvolvimento Econômico de Davos (Suiça), declarou que o mundo de hoje está muito melhor do que outrora. Deu como exemplo o fato de que hoje muito menos crianças morrem antes de completar os 5 anos de idade e que a geração acelerada de renda faz alguns países em desenvolvimento reduzirem o hiato econômico que os separa dos países ricos de forma mais acelerada do que ocorreu no passado.
Sem sombra de dúvida, um dos melhores frutos do desenvolvimento é a possibilidade de viver mais e com mais saúde. O desenvolvimento econômico e social leva à redução da mortalidade precoce e a consequente extensão da expectativa de vida. Países pobres costumam ter uma expectativa de vida baixa, em função das precárias condições de saúde associadas ao baixo nível de desenvolvimento. Desnutrição, exposição às doenças transmissíveis, falta de condições de higiene domiciliar, precárias condições de trabalho, entre outros fatores, fazem com que a esperança de vida nos países mais pobres seja muito baixa, não somente pela elevada mortalidade infantil e durante os primeiros anos de vida, mas também por uma mortalidade precoce nas idades adultas. Considerando as distintas regiões mundiais, de acordo com dados de 2008 da Organização Mundial da Saúde (OMS) e com a classificação internacional das regiões do Banco Mundial (2), verifica-se que a esperança de vida ao nascer dos países mais ricos estava em torno de 76 anos de idade, enquanto a média mundial se situava aos 54 anos. No entanto, nas regiões mais pobres, como a África Sub-Sahariana ela estava em torno dos 50 anos de idade (ver gráfico 1).
Os países mais pobres do mundo, em 2008, tinham esperança de vida inferior aos cinquenta anos de idade. É o caso da Afganistão, com 44 anos de idade, do Congo e da Guiné, ambos com 48 anos de idade. Neles, mais de 10% das crianças morrem antes de completar um ano de idade e a mortalidade adulta precoce é muito elevada.
As doenças que levam à mortalidade precoce estão associadas a desnutrição, às precárias condições assistenciais ao parto, a grande incidência de doenças transmissíveis (malária, tuberculose, AIDS) e a falta de vacinas, meios de prevenção, serviços de saúde e remédios para o tratamento destas doenças. Podemos dizer que na África Sub-Sahariana, o conjunto destas doenças (compostas pelas causas perinatais, maternas e doenças transmissíveis – conhecidas em epidemiologia como doenças do Grupo I) respondiam por 67% dos anos de vida saudáveis (AVISA) perdidos por mortalidade precoce ou por incapacidade física em 2008, de acordo com dados da OMS. Em compensação, as chamadas doenças crônicas não transmissíveis (conhecidas como doenças do Grupo II) representavam apenas 23% dos AVISA perdidos, por dois motivos: primeiro, porque a mortalidade pelas doenças do Grupo I era muito elevada e absorvia a maior proporção das mortes. Segundo, porque muitos não chegavam a viver o suficiente (ou não tinham padrões de consumo equivalentes) para estarem expostos aos fatores de risco que levam às doenças do Grupo II. Somente quando muitos escapam da mortalidade pelas doenças do Grupo I as doenças do Grupo II se tornam significativas, dado que passam a desfrutar, em geral, das etapas mais tardias do ciclo de vida. Mesmo assim, em muitos países pobres ou mesmo não tão pobres, a existência de guerras, a exposição aos riscos de violência social ou aos acidentes de trânsito levam as causas de mortalidade do grupo III, constituido por acidentes e mortes por homicídios e suicídios (3).
Nos países ricos (ou desenvolvidos), o conjunto das doenças do Grupo I representava somente 6% dos AVISA perdidos. Atualmente o país com maior expectiva de vida é o Japão (83 anos), seguido da Suiça com 82 anos. Países nórdicos como a Suécia tem expectativa de vida em torno de 81 anos. No entanto, as doenças crônicas não transmissíveis (Grupo II) representavam 86% dos AVISA perdidos nos países ricos. O gráfico 2 mostra como a presença das doenças crônicas nos AVISA perdidos por mortalidade ou incapacidade aumenta com o nível de desenvolvimento. Na América Latina, por exempo, elas representavam 66% dos AVISA perdidos, valor próximo ao que representam no Brasil atualmente, estimado em 67%. No entanto, as estimativas da OMS é que estas doenças cheguem a representar 72% da carga de doença latino-americana em menos de duas décadas.
O processo de passagem da dominância das doenças do grupo I para as do grupo II, no perfil de mortalidade é conhecido como transição epidemiológica. Em geral esse processo também se associa a passagem de uma condição de altas taxas de fecundidade para taxas mais reduzidas e ao aumento da expectativa de vida – processo conhecido como transição demográfica - levando ao crescimento do número de pessoas com mais de 60 anos (ou de terceira idade) no conjunto da sociedade. O gráfico 3 mostra como os países mais desenvolvidos são aqueles que simultaneamente apresentam uma maior esperança de vida ao nascer ao lado de uma maior proporção de pessoas de terceira idade no conjunto da população. O tamanho das bolas representa a magnitude da população total destes páises.
O preço do Desenvolvimento
Portanto, o fato da mortalidade dos brasileiros estar associada cada vez mais às doenças crônicas, com uma redução sensível das mortes por doenças transmissíveis e causas maternas e perinatais, é alviçareiro, porque revela que conseguimos ultrapassar uma fase importante de alta mortalidade característica das regiões mais pobres do planeta. Mas o desenvolvimento tem um preço, que neste caso é a maior incidência relativa de doenças crônicas não transmissíveis (Grupo II). Os gastos per-capita com saúde, influenciados pelo crescimento das doenças crônicas, aumentam fortemente com a idade e isto depende de uma série de circunstâncias como a combinação de tratamentos baseados no uso maior de tecnologia e medicamentos sofisticados com técnicas de promoção e prevenção para evitar fatores de risco. Depende também da intensidade e valor dos benefícios que os indivíduos recebem para cuidar de sua saúde. O gráfico 4 mostra os gastos por idade em vários países da OECD como múltiplos e submúltiplos dos gastos com o grupo de idade de 50 a 64 anos.
O tratamento das doenças crônicas é muito mais caro do que o das transmissíveis e sua permanência na vida das pessoas persiste no longo prazo, desde que se manifestam os sintomas e em muitos casos até a morte. Em geral doenças ou condições crônicas são controláveis mas muitas não tem cura. O gasto é proporcional a gravidade da situação, de modo que pacientes crônicos que não previnem ou controlam seus fatores de risco, tem a possibilidade de gastar muito mais dos sistemas de saúde do que aqueles que mantem uma rotina de prevenção ou controle dos fatores de risco. Os custos das doenças crônicas, sem uma forte estratégia de promoção e prevenção, seja pelo lado dos Planos de Saúde, seja pelo Governo, podem se tornar proibitivos. O Governo e os planos deixam de exercer seu poder de comunicação para influenciarem os indivíduos a ter comportamentos saudáveis, levando a uma situação de insustentabilidade,seja pelo impacto na elevação dos custos dos planos de saúde ou dos programas públicos, seja pelo aumento do risco de gastos catastróficos pelo lado das familias.
O preço do desenvolvimento, portanto, se paga quando o país cria uma estrutura que permita atender os casos de maior complexidade e gravidade, investindo na tecnologia apropriada de saúde, insumos e medicamentos para o tratamento, mas também investindo em estratégias de conscientização e parcerias entre o setor público assistencial, os planos de saúde, empresas privadas e programas públicos de promoção e prevenção. É necessário investir em processos que permitam fazer com que o acesso a estes programas e processos de tratamento estejam acessíveis a todos independentemente de renda, idade ou região. Existe, portanto, uma imensa agenda pública e privada a ser preenchida para evitar a mortalidade precoce por estas doenças e previnir seus fatores de risco presentes na vida de grande parte dos brasileiros, como a obesidade, a hipertensão, o alcoolismo, o abuso de substancias tóxicas que criam dependência psíquica, o tabagismo e a falta de exercícios físicos.
Os programas públicos existentes no Brasil, como o Programa de Saúde da Família (PSF), desenvolveram protocolos e rotinas para acompanhar portadores de doenças crônicas, como os hipertensos e diabéticos. De alguma forma estes programas podem estar dando resultados positivos na redução de casos agudos precoces. No Brasil, entre 2007 e 2010, a taxa de internação por diabetes melitus e suas complicações entre a população de 30 a 59 anos se reduziu de 7,4 para 6,6 por 10 mil habitantes, o que poderia estar associado a um melhor nível de informação dos indivíduos sobre estas patologias, à detecção precoce de casos ou simplesmente à maior oferta de serviços de média complexidade (como AMEs e UPAs) que em geral são mais apropriados do que hospitais para atender a maioria dos casos de crises de diabetes que não podem ser atendidos ou acompanhados pelo primeiro nivel de atenção. Mas as taxas de internação por acidente cérebro vascular (AVC) permaneceram no mesmo patamar (ao redor de 6,6 por 10 mil, para a mesma faixa etária) entre 2007 e 2010, o que mostra que outros fatores de risco, associados a uma nutrição inadequada ou não balanceada e à vida sendentária, podem não estar sendo suficientemente monitorados ou remediados dentro das populações de risco.
Além do mais, existe grande inequidade de acesso aos programas como o PSF que sequer atinge a metade dos brasileiros, deixando de fora do programa parte significativa dos mais pobres. Se existe inequidade no acesso ao PSF, que dirá no que se refere ao acesso a tratamentos mais sofisticados, onde os medicamentos e equipamentos só estão disponíveis nos maiores centros urbanos, os processos de rastreamento, referência e contra-referencia são deficientes e as filas para obter tratamento nos serviços de saúde são de grandes proporções.
O aumento da expectativa de vida leva ao aumento do número de pessoas propensas a ter doenças crônicas não transmissíveis e, dessa forma, novos desafios como aqueles associados a promoção de uma vida saudável e a prevenção devem estar presentes no cotidiano dos brasileiros. Parte da tarefa dos sistemas de saúde é conscientizar as populações sobre como evitar ou mitigar os fatores de risco associados a doenças crônicas. Dado que muitas delas não tem cura, é necessário aprender a conviver com elas, controlando suas causas e evitando suas consequencias associadas a mortalidade precoce. Estilos de vida mais saudáveis dependem, no entanto, de políticas e ações intersetoriais, as quais não poderão ser feitas sem uma forte coordenação entre atores privados (operadoras de planos, empresas e indivíduos) e diferentes políticas públicas e esferas de Governo.
Notas
(1) Estatístico, residente no Rio de Janeiro (RJ), Brasil, professor e pesquisador da Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas e da Fundação CESGRANRIO.
(2) O Banco Mundial divide o mundo de acordo com uma mistura de níveis de desenvolvimento e pertinência regional. As Regiões utilizadas pelo Banco Mundial são: a) Países Ricos (independentemente de onde estejam) - HIC, b) Ásia Oriental e Pacífico - EAP; c) Europa Oriental e Ásia Central - ECA; d) América Latina e Caribe - LAC; e) Oriente Médio e Norte da África - MENA; f) Ásia Meridional – SA, e; g) África Sub-Sahariana – SSA.
(3) As doenças do Grupo III são as chamadas causas externas (acidentes, guerras, homicídios, suicídios, etc.)
Referências
Cotlear, D. “Population Aging: Is Latin America Ready?”, The World Bank, Washington DC, 2011. (ver especialmente capítulo 4 - How Age Influences the Demand on Health Care in Latin America). O livro se encontra disponível eletronicamente e pode ser baixado da internet. É só clicar: http://www-wds.worldbank.org/external/default/WDSContentServer/WDSP/IB/2011/01/07/000356161_20110107011214/Rendered/PDF/588420PUB0Popu11public10BOX353816B0.pdf - O livro foi também traduzido e publicado em espanhol pelo Banco Mundial.
Kotlikoff, L. J., and C. Hagist. 2005. Who Is Going Broke? Comparing Health CareCosts in Ten OECD Countries. National Bureau of Economic Research,Working Paper No. 11833, Cambridge, MA