Ano 7, No. 34, Fevereiro 2012
André Medici
Kaizô Iwakami Beltrão
Introdução
Em artigo escrito por nós, postado em 30 de janeiro de 2012 (A Saúde e o Preço do Desenvolvimento), argumentamos que a promoção, prevenção e tratamento de doenças crônicas é o preço que temos que pagar por ultrapassarmos uma etapa da transição epidemiológica, marcada pela alta mortalidade infantil, mortalidade materna e doenças transmissíveis.
Neste artigo, iniciamos a avaliar a relevância epidemiológica e econômica de algunas doenças crônicas. Começaremos pelo câncer. Trataremos de abordar alguns aspectos gerais de como incide esta enfermidade para depois, em futuras postagens, mergulhar na análise de algumas características demográficas e sócio-econômicas da incidência de câncer no Brasil.
Dimensão e Distribuição dos Tipos de Câncer
Em 2004, a Organização Mundial da Saúde estimava que o câncer teria sido responsável por 7,4 milhões de mortes, representando 13% das mortes mundiais. No entanto, de forma mais intensa do que ocorre em outras doenças crônicas, o câncer se caracteriza por sua diversidade associada aos órgãos do corpo humano onde se instala. Ao longo de sua vida, o ser humano, por questões genéticas ou modo de vida, pode desenvolver pre-disposição a contrair câncer em distintas partes de seu corpo. O gráfico 1 mostra a distribuição das mortes de acordo com os tipos mais frequentes de câncer ocorridas em 2004 ao nivel mundial.
Verifica-se que o tipo de câncer que respondeu pelo maior número de mortes, ao nivel mundial, é o de pulmão (17%). Segue-se o câncer de estômago (11%), o de colon-reto (9%), o de fígado (8%) e o de mama (7%). Mas existe uma miríade de outros tipos de câncer que respondem por 48% das mortes. Dada a sua diversidade, as pesquisas relacionadas a prevençâo e tratamento de câncer procuram responder aos tipos e condições de maior frequência, o que significa que muitos tipos de câncer com baixa frequência não tem sido fruto de pesquisas e desenvolvimento, sendo sua cura ou tratamento paliativo mais difícil de ser alcançado.
A carga de doença por câncer em distintas Regiões
Os países desenvolvidos são aqueles onde é maior o número de anos de vida saudáveis perdidos associados a mortalidade e morbidade (AVISA) por câncer. A tabela 1 mostra que em 2004, 15% dos AVISA perdidos nos países ricos ocorreram em decorrência de câncer. Esta proporção é relativamente menor nas regiões em desenvolvimento: 9% na Europa do Leste e Ásia Central, 8% na Ásia do Leste e Pacífico, 6% na América Latina e Caribe e menos de 2% na África Sub-sahariana.
Tabela 1: Porcentagem de AVISA Perdidos por Câncer como parte dos AVISA Totais Perdidos em Diferentes Regiões Mundiais: 2004 (Fonte: Organização Mundial da Saúde)
Fonte: OMS
Decompondo a carga de doença por câncer, segundo a mortalidade (YLL) e a morbidade (YDL) podemos notar que o componente mortalidade representava em 2004 cerca de 93% da carga de doença por câncer, ao nivel mundial. Portanto trata-se de uma doença da qual é muito difícil escapar com vida, embora os avanços da medicina tanto no tratamento como na detecção precoce vem aumentando progressivamente as chances de prolongamento de vida ou até mesmo de cura desta enfermidade. Se compararmos os países ricos com a América Latina e o Caribe (ALC), veremos que nos primeiros a mortalidade representa 84% da carga de doença por câncer, enquanto que na ALC a mortalidade representa 94%. As diferenças em favor dos países ricos se baseiam no acesso mais amplo ao tratamento para todas as classes sociais, na melhor tecnologia e nos exames que permitem detecção precoce.
A carga de doença do câncer por sexo e idade
Embora o câncer seja mais importante como causa de mortalidade nos países ricos do que nos países em desenvolvimento, a incidência de câncer aumenta com a idade. Portanto, países onde predomina a mortalidade precoce por causas que afetam as idades mais jovens, como as transmissíveis, infantis e maternas, tendem a ter uma menor participação do câncer nas causas de mortalidade e morbidade, como ocorre na África Sub-sahariana. O gráfico 2 mostra a participação do câncer na carga de doença por idade ao nivel mundial. Ela é muito baixa nas idades mais tenras, alcança mais de 16% entre os 45 e 70 anos e idade, reduzindo-se para niveis ao redor de 10% a partir dos 70 anos de idade, onde outras causas de morte começam a incidir com maior frequência. A participação do câncer na carga de doença feminina só é maior do que a masculina entre os 15 e os 45 anos, onde prevalece o câncer de mama e o cérvico-uterino (este último com maior presença nos países mais pobres.
Mas as diferenças entre o peso do câncer na carga de doença nos países ricos e em desenvolvimento é bastante acentuada. No caso dos países desenvolvidos, a participação do câncer na carga de doença do grupo de idade 60 a 69 anos se situa entre 25% e 30% (grafico 3) enquanto que na América Latina e Caribe os valores máximos alcançam em torno de 16% nas idades entre 30 e 44 anos para as mulheres, e de 70 a 79 anos, no caso dos homens (gráfico 4).
Os gráficos 5 e 6 mostram as diferenças entre a participação do câncer na carga de doença dos países ricos e da América Latina, enfatizando as diferenças de gênero. Observa-se que, tanto para homens como para mulheres, a participação do câncer na carga de doença dos países ricos é maior do que na ALC em todos os grupos de idade, embora seja quase similar nas idades entre 15 e 29 anos.
Os principais tipos de câncer nos países ricos e na América Latina e Caribe
É difícil ser categórico ao dizer que existem cânceres associados a riqueza ou a pobreza, mas se pode dizer que existem alguns tipos de câncer que estão associados à hábitos, costumes e condições de vida que se diferenciam entre pobres e ricos. Isto poderia explicar as diferenças por ventura existentes entre os distintos tipos de câncer entre países ricos e a América Latina, como pode ser visto na tabela 2.
Tabela 2 – Ranking dos Tipos de Câncer nos Países Ricos e na América Latina e Caribe por Sexo - 2004
Fonte: OMS
Tanto nos países ricos como na ALC o câncer que detém a maior carga de doença entre os homens é o de pulmão, traquéia e brônquios, de acordo com estimativas da OMS. Nos nos países ricos eles representem 25% da carga de doença associada ao câncer, comparado aos 14% na ALC. No caso das mulheres, o principal tipo de câncer para ambos grupos de países é o de mama, representando 22% nos países ricos e 19% na América Latina.
No entanto, a partir desta posição, as diferenças passam a ser importantes. Entre os homens, o câncer colon-retal é o segundo de maior incidência nos países ricos (12% da carga de doença de câncer) enquanto que na ALC ocupa a 6ª. posição (7% da carga de doença). O câncer de estômago - terceiro no ranking dos países desenvolvidos (7%) – é o 2º. na ALC (12%) e o câncer de fígado que figura em quinto lugar no ranking dos países ricos não aparece entre os seis primeiros entre os países da ALC. O mesmo ocorre com a leucemia que estando em quarto lugar na ALC (9% dos cânceres masculinos na ALC), não aparece entre os seis primeiros cânceres masculinos no ranking dos países ricos.
Entre as mulheres, o segundo câncer mais importante nos países ricos é o de pulmão, traquéia e brônquios (14%), o qual representa o quinto lugar no ranking de câncer feminino da ALC (6%). Em compensação, o câncer cérvico-uterino representa a segunda posição no ranking latino-americano (15% dos casos) comparado à 5ª. posição entre os países ricos (5% dos casos).
Considerações Finais
Algumas considerações podem ser feitas em relação a origem sócio-econômica do câncer. Por exemplo, existe uma tendência de que o câncer cérvico-uterino tenha maior incidência entre mulheres pobres do que ricas, dado sua associação a infecções bacterianas que as mulheres pobres estariam mais expostas por condições de higiene ou falta de uso de preservativos nas relações sexuais. A vacina HPV aplicada a adolescentes antes da primeira relação sexual poderia ser um dos fatores de prevenção deste tipo de câncer. Por causa do câncer cérvico-uterino, se pode dizer que mais da metade dos casos de câncer entre mulheres jóvens ocorrem nos países em desenvolvimento e se estima que cerca de 80% dos casos de câncer cérvico-uterino ocorrem nos países de baixa e média renda.
O câncer de pulmão tem uma forte associação com o hábito e a permanência na condição de fumante. O câncer colo-retal poderia estar associado ao tipo de dieta, tendo maior incidência em pessoas que tem dietas ricas em proteinas, gorduras e açucares e que não ingerem a quantidade necessária de fibras e vegetais, mas pode ser detectado precocemente através de exames de colonoscopia.
Embora a maioria dos tipos de câncer não tenham meios de prevenção ou detecção precoce, algumas técnicas vem sendo progressivamente utilizadas para a detecção precoce de alguns tipos de câncer, o que contribui para o seu tratamento paliativo, promovendo o prolongamento da vida ou até a cura. Mas estas técnicas e o acesso real aos meios existentes de promoção e prevenção do câncer ainda estão muito distantes dos países em desenvolvimento, o que se reflete nos baixos níveis de gastos com a doença nestes países.