sábado, novembro 07, 2020

Os efeitos da pandemia no mercado de trabalho: uma entrevista com o Professor José Pastore

 Ano 14, Número 111, novembro de 2020


A pandemia do Covid-19 traz, entre seus principais efeitos, alterações profundas na dinâmica do mercado de trabalho. Questões como o home-office, o uso de tecnologias digitais e as plataformas de comunicação virtual tem sido opções que viabilizam manter atividades durante a pandemia, mas para poucos. Como a pandemia tem afetado os níveis de emprego e quais as oportunidades e transformações nos perfis de qualificação profissional são questões em aberto, mas que tem despertado os interesses de muitos, dado que sua solução será o caminho para a saída da crise neste novo normal.

Para tratar destes temas, o Monitor de Saúde entrevistou o sociólogo José Pastore, considerado um dos maiores especialistas em questões laborais e mercado de trabalho no Brasil. O Prof. José Pastore é Ph. D. e Doutor Honoris Causa pela University of Wisconsin ((Madison, Wisconsin, USA). Foi membro do Conselho de Administração da OIT (Genebra) e Chefe da Assessoria Técnica do Ministério do Trabalho no Brasil. Integrou o Fórum Nacional do Trabalho (2003-07) como Consultor Técnico. 

É professor titular da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP onde, apesar de aposentado pela mesma instituição, leciona Relações do Trabalho para os Cursos de MBA em Recursos Humanos na FIA - Fundação Instituto de Administração. É autor de mais de 20 livros e mais de 100 artigos em revistas técnicas nacionais e internacionais no campo das relações do trabalho. Também é articulista do Jornal O Estado de S. Paulo, onde publicou mais de 300 artigos no campo trabalhista[i].

******** 

Monitor de Saúde (MS) - As taxas de desemprego aberto no Brasil já vinham de um nível muito alto e desde fins de 2016. Agravaram-se com a pandemia. Como será a retomada do trabalho e do emprego daqui para frente?

José Pastore (JP) - O mercado de trabalho do Brasil teve um choque sísmico com a chegada do Corona vírus. Em poucos meses, mais da metade da população em idade de trabalhar ficou sem trabalho – um fato inédito. E o desastre continua. Hoje vemos mais de 14 milhões desempregados e quase 6 milhões desistiram de procurar trabalho. A população subutilizada chegou a 33 milhões.

Ao lado de um mercado de trabalho deteriorado e estagnado, temos vários setores da economia reagindo em “V”. Os dados da indústria, por exemplo, indicam que esse setor, já em setembro, havia recuperado o produto perdido ao longo da pandemia. Nesse setor, o ramo automotivo cresceu 14,1% de agosto para setembro. Outros destaques positivos foram máquinas e equipamentos (12,6%), confecções e vestuário (16,5%), bens de informática e eletrônicos (11,5%).

Esses resultados mostraram um saudável vigor no terceiro trimestre de 2020. Em setembro, o varejo estava 8,9% acima do patamar de fevereiro, zerando as perdas acumuladas. O comércio eletrônico está “bombando”.  As vendas do Mercado Livre subiram 74% entre julho e setembro de 2020. Materiais para a construção, igualmente, tiveram vendas aumentadas em 14%.

E, assim, poderíamos citar vários outros setores cuja retomada está sendo acelerada. Os serviços são o único setor que ainda não recuperaram as perdas da pandemia, especialmente os que dependem de contato humano mais próximo: viagens, entretenimento, serviços pessoais, etc.


MS - E, no meio de tanto crescimento em “V”, por que a oferta de trabalho não cresce?

JP - Donald Rumsfeld, ex-secretário da Defesa dos EUA, clamava pela humildade dos pesquisadores dizendo que: (1) há muito conhecimento que é conhecido; (2) mas, também há muitos conhecimentos que nós não conhecemos e; (3) há também o desconhecimento dos conhecimentos desconhecidos – aqueles que nem percebemos que desconhecemos.

Esse parece ser o caso do impacto do Corona vírus na mente dos empregadores. A doença ainda é muito desconhecida. Eles temem as “surpresas” do comportamento desse vírus. Ora se fala em segundo surto, ora em imunidade reduzida, e assim por diante.

Por isso, elas vêm agindo com muita cautela. A Covid-19 reduziu drasticamente a rentabilidade das empresas e aumentou o seu endividamento. Muitas quebraram. O baque foi grande. Além disso, a recuperação ainda enfrenta os obstáculos decorrentes das medidas de segurança contra o vírus: horários de trabalho alternativos, distanciamentos, testagem rotineira, despesas com proteções e outros. 

Tudo indica que os empregadores querem ter certeza da robustez da retomada antes de começar a contratar novos empregados. Por ora, fizeram a produção crescer usando hora extra e a capacidade ociosa dos seus empregados – muitos estavam trabalhando com jornada reduzida, em tempo parcial ou de forma intermitente. Se a demanda continuar firme e a vacina chegar logo, a expansão do emprego ocorrerá. Como sempre, o mercado de trabalho é o último a reagir.


MS - O que esperar para 2021?

JP - Em grande parte, as vendas dos produtos de consumo imediato (alimentos, medicamentos, produtos de higiene e limpeza e outros) assim como os eletrônicos domésticos, móveis, vestuário, materiais de construção para reformas, etc. estão ligadas ao consumo das famílias que, por sua vez, na falta de emprego, contaram até aqui com o valioso auxílio emergencial. Os “coronavouchers” não apenas sustentaram grande parte das referidas vendas como ajudaram a reduzir a pobreza e a desigualdade. Cerca de 90% das famílias pobres tiveram nesse voucher a única fonte de renda em 2020.

No âmbito do governo, sonhava-se com uma sincronia entre o fim do auxilio emergencial e a retomada da renda do trabalho. Ou seja, o auxilio emergencial entraria em phasing out na medida em que a retomada do emprego entraria em phasing in.

Isso não foi o que ocorreu. E é pouco provável que ocorra no início do próximo ano. O governo não terá escolha. As medidas trabalhistas (redução de jornada, suspensão do contrato de trabalho e o auxílio emergencial) terão de ser estendidas para, no mínimo, os primeiros seis meses de 2021 – a despeito da sobrecarga fiscal que tais ajudas representam.

Mantido o ritmo de retomada acima indicado e disponibilizada a vacina, as empresas tenderão a contratar empregados de forma intermitente, terceirizada, em tempo parcial como sempre ocorre na saída das recessões. Depois disso, volta para muitos grupos o emprego convencional, em tempo integral.

       

MS - Muitos analistas citam a tecnologia como um obstáculo adicional para a geração de empregos. Qual é o impacto da entrada das novas tecnologias no emprego do futuro? A pandemia acelerou a robotização?

JP - Esse é um dos assuntos mais preocupantes. Eu mesmo perco o sono quando penso na forte substituição de mão de obra por tecnologia que vem ocorrendo no Brasil e no mundo.

A literatura especializada tem respostas de todos os tipos. Alguns veem a destruição de até 50% dos empregos atuais ao longo dos próximos dez anos. Outros argumentam que, ao lado da destruição, as novas tecnologias criarão muitas novas oportunidades de trabalho, não havendo o que temer.

Filio-me a essa última posição, mas nem por isso recupero o meu sono. Isso porque entre a destruição e a criação de trabalho costuma haver um hiato temporal durante o qual muitas pessoas ficam desempregadas. Além disso, é rara a situação em que o trabalhador que é desempregado por um robô tem as habilidades para trabalhar nas oportunidades que são criadas pelo avanço tecnológico. Isso é particularmente grave no Brasil onde a qualidade do ensino é péssima para a maioria da população, o que dá poucas condições para as pessoas, por conta própria, dominarem novas habilidades.

Quando se considera todos esses fatores, é inevitável falar-se em desemprego tecnológico por um bom tempo. Para reduzir o referido gap, é gigantesco o desafio para as escolas. Nesse campo, será necessária uma maior articulação entre as empresas e as escolas porque estas não têm velocidade e condições materiais para prover, em tempo real, os conhecimentos que as novas tecnologias requerem.

Na última edição do Fórum Econômico Mundial os analistas de recursos humanos recomendaram abandonar a esgrima para determinar o que é destruído e o que é criado pelas novas tecnologias. O mais urgente, disseram, é partir para requalificação dos trabalhadores.

Na ocasião foi indicada a necessidade de retreinar 1 bilhão de trabalhadores em todo o mundo ao longo dos próximos dez anos. E, para tanto, será indispensável um melhor casamento entre as empresas e as escolas como se faz no modelo dual da Alemanha, Áustria, Suíça, países da Escandinávia e outros que se dedicam ao treinamento contínuo dos trabalhadores. Sei que isso é caro e complexo. Mas, não vejo outra saída para reduzir o desemprego tecnológico.

Se analisarmos os setores econômicos que estão se recuperando bem, vemos que vários deles empregam pouco. Esse é o caso, por exemplo, do comércio eletrônico onde o consumidor “conversa” diretamente com o produto que deseja comprar, dispensando o vendedor-intermediário. Nesse caso também está o agronegócio que hoje é altamente mecanizado, dispensando grande parte da mão de obra. Na própria indústria, vários ramos estão automatizando de forma acelerada. É verdade que tanto o comercio eletrônico quanto o agronegócio e a indústria geram muitos empregos nas atividades periféricas do setor de comercio e serviços. Ainda assim, estamos em um momento em que tais atividades se digitalizam de maneira acelerada, dispensando mão de obra direta.    

 

MS - Como está o Brasil nesse campo?

JP - O Brasil tem a sorte de possuir entidades que se dedicam a mais de 70 anos à formação de mão de obra qualificada que são as escolas do Sistema S. Elas oferecem cursos de boa qualidade e, em grande parte, ajustados às novas tecnologias.

As escolas técnicas dos governos federal e estadual também fazem um esforço importante nesse campo. Mas, somando todas, são poucas para a necessidade do Brasil. Além do mais há que se envolver muito as empresas nessa cruzada. Algumas já se dedicam ao treinamento continuado – vários bancos, a Embraer, a IBM, a Embrapa. Nos bancos, por exemplo, os bancários incluíram na convenção coletiva de anos atrás a prática de treinamento continuado com vistas a manter todos atualizados nas novas tecnologias. Isso é maravilhoso.   

O próprio uso de maneira crescente das novas tecnologias vai ensinando os trabalhadores a melhor dominá-las. Veja o caso do computador e da Internet no home office. Essa pratica já vinha crescendo antes da pandemia, mas foi acelerada por ela. Hoje mais de 8 milhões de brasileiros trabalham em casa, com enormes economias para si, para as empresas e para o Brasil.

É verdade que muitas pequenas empresas não têm condições de oferecer as condições para seus empregados trabalharem dessa forma. Mas, com o barateamento do equipamento e a multiplicação de cursos gratuitos pela própria Internet, acho que essa prática vai se ampliar muito.      

        

MS - A reforma trabalhista aprovada em 2017 foi um marco que permitiu aplicar melhores regras de flexibilidade laboral permitindo uma maior flexibilização do mercado do trabalho, com impactos positivos previstos nos níveis de emprego, mas isso não tem ocorrido nem antes da pandemia. Como esta reforma poderá auxiliar a implantação desse novo normal pós-pandêmico no mercado de trabalho brasileiro?

JP - Penso que a reforma trabalhista deu uma enorme contribuição ao dar às partes liberdade para negociar o que acham mais conveniente para a sua situação. Ninguém conhece melhor as necessidades dos empregados e dos empregadores do que eles mesmos. Esse foi o foco de fazer o negociado prevalecer sobre o legislado. E isso vem ocorrendo.

De 2017 para cá, houve uma redução de mais de 40% das ações trabalhistas. Muita coisa que era discutida na Justiça do Trabalho, anos a fio, passaram a ser acertadas instantaneamente entre empregados e empregadores – jornadas de trabalho, banco de horas, ajuste voluntário nas demissões, etc.

Recentemente, inúmeros sindicatos laborais acertaram com as empresas a criação de um grupo de acompanhamento para a proteção dos trabalhadores em regime de home office que inclui uma imensidão de detalhes – o que seria impossível por lei ou por sentença judicial.

Estamos apenas no começo. Ao praticar a negociação de forma contínua, as partes vão afastando o clima de desconfiança que ainda impera entre empregado e empregador no Brasil e, em consequência vão criando ambientes mais favoráveis à melhoria da produtividade do trabalho – que é a tarefa mais fundamental para as empresas e para a economia brasileira se tornarem mais competitivas e para os empregados serem melhor remunerados.

Daqui para frente – já é tarde – precisamos criar condições para se reduzir a informalidade no mercado de trabalho. O trabalho informal desprotege o trabalhador e o empregador.

Infelizmente, no Brasil há mais trabalhadores informais do que formais. Isso não pode continuar. A desoneração da folha de salários foi um passo importante para facilitar a contratação formal. O Brasil é campeão mundial de encargos sociais. São 102,43% sobre os salários. Toda vez que uma empresa contrata um trabalhador por R$ 1.000,00 mensais sua despesa é de R$ 2.020,00 por força dos encargos sociais.

O programa do Microempreendedor Individual (MEI) foi uma providencia importante para proteger os que trabalham por conta própria. O propalado Contrato Verde e Amarelo pode ser também um passo importante nessa direção a depender de como for concebido.

É claro que, para a geração de trabalho e emprego em grande quantidade, são indispensáveis as reformas estruturais no campo tributário, da administração pública e das concessões para a infraestrutura. Neste campo, o potencial de geração de trabalho e emprego é imenso. No Brasil, tudo está por fazer. O Brasil tem poucas ferrovias, portos adequados, armazéns estratégicos, usinas de energia suficientes para um crescimento do PIB de 4% ou 5% ao ano, e assim por diante. A entrada de todas essas obras em operação poderá transformar o Brasil numa grande usina de empregos. Daí a importância de se conter os gastos públicos, equilibrar o orçamento e liberar recursos para investimentos em infraestrutura – públicos e privados. Além disso, o Brasil tem uma imensa necessidade de melhorar a qualidade dos serviços nos campos da segurança, educação e saúde que são intensivas em mão de obra.       

 



[i] Para mais detalhes de suas publicações ver www.josepastore.com.br