É professor titular da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP onde, apesar de aposentado pela mesma instituição, leciona Relações do Trabalho para os Cursos de MBA em Recursos Humanos na FIA - Fundação Instituto de Administração. É autor de mais de 20 livros e mais de 100 artigos em revistas técnicas nacionais e internacionais no campo das relações do trabalho. Também é articulista do Jornal O Estado de S. Paulo, onde publicou mais de 300 artigos no campo trabalhista[i].
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Monitor de Saúde (MS) - As taxas de desemprego aberto no Brasil já vinham de um nível muito alto e desde fins de 2016. Agravaram-se com a pandemia. Como será a retomada do trabalho e do emprego daqui para frente?
José Pastore (JP) - O mercado de trabalho do Brasil teve um choque sísmico com a chegada do Corona vírus. Em poucos meses, mais da metade da população em idade de trabalhar ficou sem trabalho – um fato inédito. E o desastre continua. Hoje vemos mais de 14 milhões desempregados e quase 6 milhões desistiram de procurar trabalho. A população subutilizada chegou a 33 milhões.
Ao lado de um mercado de trabalho deteriorado e estagnado, temos vários setores da economia reagindo em “V”. Os dados da indústria, por exemplo, indicam que esse setor, já em setembro, havia recuperado o produto perdido ao longo da pandemia. Nesse setor, o ramo automotivo cresceu 14,1% de agosto para setembro. Outros destaques positivos foram máquinas e equipamentos (12,6%), confecções e vestuário (16,5%), bens de informática e eletrônicos (11,5%).
Esses resultados mostraram um saudável vigor no terceiro trimestre de 2020. Em setembro, o varejo estava 8,9% acima do patamar de fevereiro, zerando as perdas acumuladas. O comércio eletrônico está “bombando”. As vendas do Mercado Livre subiram 74% entre julho e setembro de 2020. Materiais para a construção, igualmente, tiveram vendas aumentadas em 14%.
E, assim, poderíamos citar vários outros setores cuja retomada está sendo acelerada. Os serviços são o único setor que ainda não recuperaram as perdas da pandemia, especialmente os que dependem de contato humano mais próximo: viagens, entretenimento, serviços pessoais, etc.
MS - E, no meio de tanto crescimento em “V”, por que a oferta de trabalho não cresce?
JP - Donald Rumsfeld, ex-secretário da Defesa dos EUA, clamava pela
humildade dos pesquisadores dizendo que: (1) há muito conhecimento que é
conhecido; (2) mas, também há muitos conhecimentos que nós não conhecemos e;
(3) há também o desconhecimento dos conhecimentos desconhecidos – aqueles que
nem percebemos que desconhecemos.
Esse parece ser o caso do impacto do Corona vírus na mente dos
empregadores. A doença ainda é muito desconhecida. Eles temem as “surpresas” do
comportamento desse vírus. Ora se fala em segundo surto, ora em imunidade
reduzida, e assim por diante.
Por isso, elas vêm agindo com muita cautela. A Covid-19 reduziu
drasticamente a rentabilidade das empresas e aumentou o seu endividamento.
Muitas quebraram. O baque foi grande. Além disso, a recuperação ainda enfrenta
os obstáculos decorrentes das medidas de segurança contra o vírus: horários de
trabalho alternativos, distanciamentos, testagem rotineira, despesas com
proteções e outros.
Tudo indica que os empregadores querem ter certeza da robustez da retomada antes de começar a contratar novos empregados. Por ora, fizeram a produção crescer usando hora extra e a capacidade ociosa dos seus empregados – muitos estavam trabalhando com jornada reduzida, em tempo parcial ou de forma intermitente. Se a demanda continuar firme e a vacina chegar logo, a expansão do emprego ocorrerá. Como sempre, o mercado de trabalho é o último a reagir.
MS - O que esperar para 2021?
JP - Em grande parte, as vendas dos produtos de consumo imediato (alimentos,
medicamentos, produtos de higiene e limpeza e outros) assim como os eletrônicos
domésticos, móveis, vestuário, materiais de construção para reformas, etc.
estão ligadas ao consumo das famílias que, por sua vez, na falta de emprego,
contaram até aqui com o valioso auxílio emergencial. Os “coronavouchers” não
apenas sustentaram grande parte das referidas vendas como ajudaram a reduzir a
pobreza e a desigualdade. Cerca de 90% das famílias pobres tiveram nesse
voucher a única fonte de renda em 2020.
No âmbito do governo, sonhava-se com uma sincronia entre o fim do
auxilio emergencial e a retomada da renda do trabalho. Ou seja, o auxilio
emergencial entraria em phasing out
na medida em que a retomada do emprego entraria em phasing in.
Isso não foi o que ocorreu. E é pouco provável que ocorra no início do próximo ano. O governo não terá escolha. As medidas trabalhistas (redução de jornada, suspensão do contrato de trabalho e o auxílio emergencial) terão de ser estendidas para, no mínimo, os primeiros seis meses de 2021 – a despeito da sobrecarga fiscal que tais ajudas representam.
Mantido o ritmo de retomada acima indicado e disponibilizada a vacina, as empresas tenderão a contratar empregados de forma intermitente, terceirizada, em tempo parcial como sempre ocorre na saída das recessões. Depois disso, volta para muitos grupos o emprego convencional, em tempo integral.
MS - Muitos
analistas citam a tecnologia como um obstáculo adicional para a geração de
empregos. Qual é o impacto da entrada das novas tecnologias no emprego do
futuro? A pandemia acelerou a robotização?
JP - Esse é um dos assuntos mais preocupantes. Eu mesmo perco o sono
quando penso na forte substituição de mão de obra por tecnologia que vem
ocorrendo no Brasil e no mundo.
A literatura especializada tem respostas de todos os tipos. Alguns veem
a destruição de até 50% dos empregos atuais ao longo dos próximos dez anos.
Outros argumentam que, ao lado da destruição, as novas tecnologias criarão
muitas novas oportunidades de trabalho, não havendo o que temer.
Filio-me a essa última posição, mas nem por isso recupero o meu sono.
Isso porque entre a destruição e a criação de trabalho costuma haver um hiato
temporal durante o qual muitas pessoas ficam desempregadas. Além disso, é rara
a situação em que o trabalhador que é desempregado por um robô tem as
habilidades para trabalhar nas oportunidades que são criadas pelo avanço
tecnológico. Isso é particularmente grave no Brasil onde a qualidade do ensino
é péssima para a maioria da população, o que dá poucas condições para as
pessoas, por conta própria, dominarem novas habilidades.
Quando se considera todos esses fatores, é inevitável falar-se em desemprego tecnológico por um bom tempo. Para reduzir o referido gap, é gigantesco o desafio para as escolas. Nesse campo, será necessária uma maior articulação entre as empresas e as escolas porque estas não têm velocidade e condições materiais para prover, em tempo real, os conhecimentos que as novas tecnologias requerem.
Na última edição do Fórum Econômico Mundial os analistas de recursos humanos recomendaram abandonar a esgrima para determinar o que é destruído e o que é criado pelas novas tecnologias. O mais urgente, disseram, é partir para requalificação dos trabalhadores.
Na ocasião foi indicada a necessidade de retreinar 1 bilhão de
trabalhadores em todo o mundo ao longo dos próximos dez anos. E, para tanto,
será indispensável um melhor casamento entre as empresas e as escolas como se
faz no modelo dual da Alemanha, Áustria, Suíça, países da Escandinávia e outros
que se dedicam ao treinamento contínuo dos trabalhadores. Sei que isso é caro e
complexo. Mas, não vejo outra saída para reduzir o desemprego tecnológico.
Se analisarmos os setores econômicos que estão se recuperando bem, vemos
que vários deles empregam pouco. Esse é o caso, por exemplo, do comércio
eletrônico onde o consumidor “conversa” diretamente com o produto que deseja
comprar, dispensando o vendedor-intermediário. Nesse caso também está o
agronegócio que hoje é altamente mecanizado, dispensando grande parte da mão de
obra. Na própria indústria, vários ramos estão automatizando de forma
acelerada. É verdade que tanto o comercio eletrônico quanto o agronegócio e a
indústria geram muitos empregos nas atividades periféricas do setor de comercio
e serviços. Ainda assim, estamos em um momento em que tais atividades se
digitalizam de maneira acelerada, dispensando mão de obra direta.
MS - Como está
o Brasil nesse campo?
JP - O Brasil tem a sorte de possuir entidades que se dedicam a mais de
70 anos à formação de mão de obra qualificada que são as escolas do Sistema S.
Elas oferecem cursos de boa qualidade e, em grande parte, ajustados às novas
tecnologias.
As escolas técnicas dos governos federal e estadual também fazem um
esforço importante nesse campo. Mas, somando todas, são poucas para a
necessidade do Brasil. Além do mais há que se envolver muito as empresas nessa
cruzada. Algumas já se dedicam ao treinamento continuado – vários bancos, a
Embraer, a IBM, a Embrapa. Nos bancos, por exemplo, os bancários incluíram na convenção
coletiva de anos atrás a prática de treinamento continuado com vistas a manter
todos atualizados nas novas tecnologias. Isso é maravilhoso.
O próprio uso de maneira crescente das novas tecnologias vai ensinando
os trabalhadores a melhor dominá-las. Veja o caso do computador e da Internet
no home office. Essa pratica já vinha crescendo antes da pandemia, mas foi
acelerada por ela. Hoje mais de 8 milhões de brasileiros trabalham em casa, com
enormes economias para si, para as empresas e para o Brasil.
É verdade que muitas pequenas empresas não têm condições de oferecer as
condições para seus empregados trabalharem dessa forma. Mas, com o barateamento
do equipamento e a multiplicação de cursos gratuitos pela própria Internet,
acho que essa prática vai se ampliar muito.
MS - A reforma
trabalhista aprovada em 2017 foi um marco que permitiu aplicar melhores regras
de flexibilidade laboral permitindo uma maior flexibilização do mercado do
trabalho, com impactos positivos previstos nos níveis de emprego, mas isso não
tem ocorrido nem antes da pandemia. Como esta reforma poderá auxiliar a
implantação desse novo normal pós-pandêmico no mercado de trabalho brasileiro?
JP - Penso que a reforma trabalhista deu uma enorme contribuição ao dar
às partes liberdade para negociar o que acham mais conveniente para a sua
situação. Ninguém conhece melhor as necessidades dos empregados e dos
empregadores do que eles mesmos. Esse foi o foco de fazer o negociado
prevalecer sobre o legislado. E isso vem ocorrendo.
De 2017 para cá, houve uma redução de mais de 40% das ações
trabalhistas. Muita coisa que era discutida na Justiça do Trabalho, anos a fio,
passaram a ser acertadas instantaneamente entre empregados e empregadores –
jornadas de trabalho, banco de horas, ajuste voluntário nas demissões, etc.
Recentemente, inúmeros sindicatos laborais acertaram com as empresas a
criação de um grupo de acompanhamento para a proteção dos trabalhadores em
regime de home office que inclui uma
imensidão de detalhes – o que seria impossível por lei ou por sentença
judicial.
Estamos apenas no começo. Ao praticar a negociação de forma contínua, as
partes vão afastando o clima de desconfiança que ainda impera entre empregado e
empregador no Brasil e, em consequência vão criando ambientes mais favoráveis à
melhoria da produtividade do trabalho – que é a tarefa mais fundamental para as
empresas e para a economia brasileira se tornarem mais competitivas e para os
empregados serem melhor remunerados.
Daqui para frente – já é tarde – precisamos criar condições para se
reduzir a informalidade no mercado de trabalho. O trabalho informal desprotege
o trabalhador e o empregador.
Infelizmente, no Brasil há mais trabalhadores informais do que formais.
Isso não pode continuar. A desoneração da folha de salários foi um passo
importante para facilitar a contratação formal. O Brasil é campeão mundial de
encargos sociais. São 102,43% sobre os salários. Toda vez que uma empresa
contrata um trabalhador por R$ 1.000,00 mensais sua despesa é de R$ 2.020,00
por força dos encargos sociais.
O programa do Microempreendedor
Individual (MEI) foi uma providencia importante para proteger os que trabalham
por conta própria. O propalado Contrato Verde e Amarelo pode ser também um
passo importante nessa direção a depender de como for concebido.
É claro que, para a geração de trabalho e emprego em grande quantidade, são indispensáveis as reformas estruturais no campo tributário, da administração pública e das concessões para a infraestrutura. Neste campo, o potencial de geração de trabalho e emprego é imenso. No Brasil, tudo está por fazer. O Brasil tem poucas ferrovias, portos adequados, armazéns estratégicos, usinas de energia suficientes para um crescimento do PIB de 4% ou 5% ao ano, e assim por diante. A entrada de todas essas obras em operação poderá transformar o Brasil numa grande usina de empregos. Daí a importância de se conter os gastos públicos, equilibrar o orçamento e liberar recursos para investimentos em infraestrutura – públicos e privados. Além disso, o Brasil tem uma imensa necessidade de melhorar a qualidade dos serviços nos campos da segurança, educação e saúde que são intensivas em mão de obra.