domingo, outubro 23, 2016

A árvore e o bosque: o financiamento da saúde no Brasil e a PEC 241


Ano 10, No. 80, Outubro 2016


André Cezar Medici

 

Introdução

Em uma postagem mais antiga[i], procurei demonstrar que reduções no crescimento do PIB poderiam levar a cortes nos gastos federais de saúde, impactando a descontinuidade dos programas setoriais, como aconteceu nos Governos Figueiredo, Collor e Dilma Russef. Este último deixou como herança para o Governo Temer, uma recessão que pode ser prolongada, pelo menos por 4 anos, considerando que em 2014 já se vivia um quadro recessivo e que em 2017 a retomada do crescimento ainda será lenta e perigosa, caso não se consiga corrigir os desequilíbrios fiscais e realizar reformas que permitam orientar os gastos públicos para programas eficienctes de forma sustentável.  

Na última postagem deste blog[ii], vimos que a PEC241 poderá ser um dos caminhos para acelerar a saída da recessão e a retomada do crescimento. Na verdade, este é o caminho mais curto para que o país volte a gerar os recursos públicos necessários para financiar políticas de saúde sustentáveis e equitativas à longo prazo.

No entanto, vários posicionamentos na imprensa ou nas redes sociais – alguns por ingenuidade ou desconhecimento e outros por motivos mais torpes – atribuem à PEC 241 a ruptura com os compromissos constitucionais de financiar as necessidades do SUS. Do meu ponto de vista esta ruptura já vinha ocorrendo nos governos anteriores e a PEC 241 poderá corrigi-la. No Governo Dilma Roussef ocorreram duas situações onde houve redução real dos gastos per capita com saúde: entre 2012 e 2013 e entre 2014 e 2015 (ver tabela 1). E isto ocorreu mesmo com a vigência das EC-29 e EC-86 que instituiram mecanismos para proteger o gasto em saúde. 

A PEC 241 não retira recursos da saúde

A PEC 241 poderá estabelecer critérios para que o Executivo e o Legislativo aprendam a priorizar gastos públicos, para atingir um duplo objetivo: a) melhorar a qualidade do gasto, e b) reduzir a trajetória irresponsável de crescimento do gasto público total (não o de saúde), que gerou os desequilíbrios fiscais e foi um dos principais fatores responsáveis pela recessão em que se encontra mergulhado o país. Mas a PEC 241 não faz referencia a nenhum corte explícito de gastos no setor saúde, como vem alardeando alguns setores.  

Os economistas José Márcio Camargo e Andre Gamerman, em artigo publicado no Jornal O Globo de 19 de Outubro de 2016[iii], afirmam que a PEC 241 aumentará os recursos para saúde no curto prazo, já que pela regra atual, o mínimo estipulado pela EC-86 de 2015 para o orçamento do setor em 2017 foi de 13,7% da Receita de Contribuição Líquida (RCL) da União (R$ 103,9 bilhões), percentuais estes que aumentariam progressivamente até 2020.

Por um lado, uma vez aprovada, a PEC 241 antecipará para o ano de 2017 o piso mínimo de 15% da RCL (R$113,7 bilhões) que só ocorreria, de acordo com a EC-86, no ano de 2020, adicionando recursos obrigatórios de US$10 bilhões para o setor saúde em 2017 e recursos residuais adicionais nos anos de 2018 e 2019.

Por outro lado, ao fixar um teto global de gastos no orçamento, a PEC 241 obriga o Executivo e o Legislativo a definirem prioridades de gasto. Neste processo, o setor saúde poderá ser beneficiado, já que a PEC não limita tetos de gasto por setor, fazendo com que os gastos com saúde possam aumentar como resultado da redução de gastos desnecessários em outros setores. A Previdência Social e os gastos em pessoal são fortes candidatos a cortes neste momento, uma vez que poderão representar 58% dos gastos no orçamento de 2017. Na Previdência Social, por exemplo, existem muitas fraudes, como o alto número de falsos benefícios concedidos como auxílio doença ou aposentadoria por invalidez. A revisão das regras de aposentadoria por idade e da generosidade do valor dos benefícios (que no Brasil é uma das mais altas do mundo) também poderá economizar recursos para serem gastos na proteção à saúde da população pobre descoberta pelo SUS.

Outro argumento utilizado pelos descontentes com a PEC é que o congelamento do orçamento com reajuste inflacionário por 20 anos, sobre a base nos valores da execução orçamentária de 2016, prejudicaria o crescimento do gasto em períodos de crescimento econômico. Este argumento também é falacioso, dado que é provável que em 2017 o crescimento econômico ainda seja muito pequeno e se a recessão continuar, a medida protegerá o gasto de forma anticíclica, evitando ou atenuando eventuais reduções no gasto, caso um outro governo irresponsável como o anterior assuma o poder após as eleições de 2018 e mergulhe o país em uma nova e mais profunda recessão.

Mas pensando de forma positiva, caso os próximos governos sejam responsáveis e eficientes, as medidas da PEC 241 poderão levar à retomada do crescimento e sua estabilidade no longo prazo. Recuperando-se o crescimento, estariam dadas as pré-condições para rever a PEC e acelerar o aumento dos gasto público com saúde.

A PEC 241 poderá levar o Executivo e Legislativo a aprenderem, por um lado, que o processo orçamentário deve ser o reflexo do comportamento da economia e das receitas fiscais e que os gastos públicos não podem crescer ilimitadamente sobre a base de um endividamento irresponsável. Por outro lado, o processo orçamentário deve estar respaldado em prioridades, as quais em parte, são definidas pelos princípios estabelecidos na Constituição, como é o caso da cobertura universal de saúde.

Neste sentido, é pouco provavel que o aumento do gasto em saúde nos próximos anos fique limitado aos percentuais mínimos de 15% da RCL, como apontam as projeções de descontentes e pessimistas. O mais provável é que, num contexto de crescimento econômico, o Congresso vote a lei orçamentária introduzindo aumentos reais nos recursos para saúde como porcentagem da RCL e alcançando percentuais reais de execução maiores do que 15% e compatíveis com as necessidades de cobertura universal.

É importante que os militantes do setor saúde, procurem, antes de lutar para preservar a árvore, lutar para preservar o bosque, pois se a ênfase for dada na preservação da árvore, o bosque poderá não resistir, e sem seus efeitos sinérgicos, a árvore também perecerá. A tarefa mais imediata no curto prazo é desfazer o mal feito, ou seja, tirar a economia da recessão, atacando suas causas, expressas na irresponsabilidade fiscal das autoridades econômicas do governo passado.

 

O gasto em saúde e as oportunidades perdidas

Entre 2004 e 2015, o Brasil desperdiçou grandes oportunidades para avançar a cobertura universal de saúde, ao não fazer reformas setoriais que permitissem melhorar a eficiência alocativa do gasto público em saúde e aumentar os níveis de financiamento público setorial (especialmente o federal) de forma coerente com os princípios constitucionais de 1988.

Mas, como vimos na última postagem, outros países de renda média alta da América Latina, igualmente empenhados em alcançar a cobertura universal de saúde, tais como Chile, Colombia, Costa Rica e México, aumentaram o gasto público com saúde, entre 2004 e 2014, em proporções maiores que as verificadas no Brasil. Neste mesmo período, a  participação do gasto público sobre o gasto total em saúde também aumentou nestes quatro países, e ainda na Argentina e no Uruguay, ocorrendo o inverso no Brasil, onde esta participação decresceu. O Brasil detinha em 2014 a menor participação do gasto público em saúde sobre os gastos públicos totais comparado a estes seis países e com a média latino-americana[iv].  

No entanto, as condições materiais e políticas para o aumento do gasto público em saúde desde 2004 já estavam lançadas, dado que: (a) houve um forte crescimento do PIB, com uma taxa média de 4,9% no período 2004-2010[v]; (b) a arrecadação tributária como porcentagem do PIB passou de 32,2% em 2004 para 34,4% entre 2004 e 2010; (c) desde o Governo Fernando Henrique Cardoso já havia sido aprovada a EC-29, que fixava a participação dos gastos dos estados (12%) e municípios (15%) sobre a receita própria destas esferas de governo, cabendo ao Governo Lula apenas definir a participação federal, o que não aconteceu até 2015; (d) alguns dos ministros da saúde de caráter técnico ao longo desse período tinham compromissos explícitos com o aumento dos recursos do Governo Federal em saúde, embora isto não tenha ocorrido com os ministros de caráter mais político, especialmente durante o Governo Dilma Roussef, os quais se pautavam mais pela agenda central do Governo. Portanto, apesar de todas as condições materiais estarem dadas, os gastos com saúde no Brasil neste período cresceram em proporções menores do que os de nossa vizinhança latino-americana.  

 

Tabela 1 – Gastos Públicos Percapita em Saúde por Nível de Governo:
Brasil, 2004-2015

(Em R$ de Dez. 2015)*

Anos
Gasto Federal
Gasto Estadual
Gasto Municipal
Gasto Público Total
2004
335,92
177,42
168,56
681,90
2005
350,39
185,49
191,36
727,24
2006
359,42
202,67
207,88
769,97
2007
374,46
219,50
223,36
817,33
2008
389,69
248,02
259,99
897,71
2009
441,62
244,48
261,79
947,90
2010
445,61
267,98
282,55
996,14
2011
486,39
278,98
309,36
1074,73
2012
500,96
280,43
325,62
1107,01
2013
486,58
307,21
351,10
1144,89
2014
501,50
312,87
367,69
1182,06
2015
489,27
296,18
352,65
1138,10

Fonte: Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS) e Subsecretaria de Planejamento e Orçamento (SPO) do Ministério da Saúde. (*) Dados corrigidos pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do IBGE.

 

A tabela 1 mostra o crescimento dos gastos per capita em saúde entre 2004 e 2015, em reais de dezembro de 2015, dos Governos Federal, Estaduais e Municipais. Se observa claramente que os gastos federais com saúde, cresceram entre 2004 e 2011 mas ficaram relativamente estagnados a partir de 2012, com alguns momentos de decréscimo entre 2012 e 2015. Durante todo o período 2004-2015, o crescimento do gasto público federal per capita com saúde foi de apenas 3,5% ano ano, ou seja, ligeiramente maior que o crescimento do PIB no mesmo período (3,2% ao ano). Entre 2012 e 2015, os gastos públicos percapita em saúde do Governo Federal se reduziram de R$500,96 para R$489,27 (-2,3%).  


O gráfico acima mostra claramente que entre 2002 e 2015, os gastos públicos federais per capita com saúde evoluem lentamente até 2011, permanecendo estagnados a partir de então. Parte desta estagnação pode estar associada às respostas macroeconômicas descabidas frente a crise que se inicia em 2008, considerada pelo governo como uma “marolinha”. Mas a verdade é que a crise comprometeu a capacidade do país continuar a crescer num contexto onde a gestão macroeconômica do governo anterior não agiu preventivamente e não se pautou pelos fundamentos adequados de estabilização e o crescimento. A manutenção do cambio em patamares altos, taxas de juros elevadas, estímulos ao crescimento do consumo e desonerações fiscais, num contexto de crescimento do gasto baseado no endividamento público, levou a uma queda acumulada do PIB estimada em quase 7% entre 2015 e 2016 (quase 10% se se considera o PIB per capita) mas ainda é cedo para falar sobre a intensidade da recuperação e como poderá afetar o crescimento para 2017[vi].

Pode-se mencionar ainda que os gastos públicos totais em saúde cresceram em maior proporção, empurrados pelo crescimento dos gastos dos Estados e Municípios. Utilizando seus recursos fiscais próprios, muitas vezes com aplicações por acima dos mínimos definidos na EC-29, os gastos públicos dessas esferas de governo passaram de 51% para 57% do gasto público total em saúde entre 2004 e 2015. Mas há que considerar, com a crise recente, que os governos estaduais e locais também se encontram em difícil situação fiscal para continuar mantendo proporções elevadas de gastos com saúde. Um exemplo é o que já vem ocorrendo com a crise do financiamento da saúde em Estados como o do Rio de Janeiro, que no momento parece ser o caso mais grave[vii].

Embora os gastos públicos municipais percapita em saúde tenham crescido continuamente entre 2004 e 2015 (6,9% ao ano no período considerado) os gastos estaduais, além de crescerem bem menos (4,8% ao ano) tiveram uma redução de 4,1% entre 2014 e 2015, já como resultado da crise. Assim, os gastos públicos municipais per capita com saúde passaram a ser maiores do que seus correspondentes estaduais, como demonstra a tabela 1. Os gastos públicos totais com saúde passaram de R$681,90 em 2004 para R$1138,10 em 2015, depois de alcançarem R$1182,06 em 2014.

Revisando a agenda futura

Em síntese, o Governo passado teve duas oportunidades perdidas: a) a de aumentar o patamar de gastos públicos em saúde de acordo às necessidades e; b) a de aumentar a eficiência e a qualidade do gasto público. Os avanços nestas duas esferas foram bastante tímidos porque aumentar gastos em saúde exigiria disputar prioridades com outros ministérios e com parlamentares.

Assim, o governo passado preferiu ceder às pressões corporativas e políticas, criando ministérios desnecessários, multiplicando o número de cargos e aumentando empregos e salários no setor público para além da racionalidade permitida. Aumentou a despesa com benefícios assistenciais e não assistenciais e praticou uma política real de valorização do salário mínimo que deveria não ser indexada aos demais benefícios previdenciários. E os tímidos avanços redistributivos porventura obtidos com esse processo já se encontram em avançado processo de deterioração com a crise que se inicia em 2014. Tudo isso, portanto, levou, entre outras consequências negativas mais sérias, à redução do espaço fiscal para aumentar os gastos com saúde e educação nas proporções requeridas.

Parte deste processo começa a ser resolvido com a reforma ministerial realizada pelo novo governo, mas muito ainda há por fazer no que diz respeito à disciplina com os gastos de pessoal do governo, no combate às fraudes, na imperiosa necessidade de reformar a Previdência Social e na necessidade de reverter as perdas decorrentes de exonerações fiscais. Tudo isso, uma vez em marcha, poderá abrir espaço para o crescimento dos gastos com saúde nos próximos anos.

No entanto, não se pode perder a oportunidade de, no bojo deste processo, realizar reformas que aumentem a eficiência e a qualidade do gasto como parte do ciclo de definição e aprovação dos recursos orçamentários. Gastos públicos (inclusive os de saúde) devem ser avaliados em seus resultados. Assim, a cada ano, o Governo deveria estabelecer metas a serem alcançadas com os gastos alocados no orçamento de cada pasta, programa, sub-programa e atividade e criar uma estrutura para avaliar a execução destes recursos. Metas não alcançadas não deveriam ser recompensadas com novos gastos na mesma área. Alguns países da América Latina, como é o caso do Peru, implantaram ha alguns anos a gestão orçamentária por resultados, com efeitos positivos importantes em alguns programas, inclusive de saúde. O Brasil, uma vez aprovada a PEC 241 pelo Senado, deveria implantar um sistema de gestão orçamentária por resultados. Mas como fazer isso? Este será o tema de uma próxima postagem.

NOTAS



[i] Ver Medici, A.C., Gastos com saúde e ciclo econômico no Brasil: Uma Análise do Período 1980-2015, postado em Monitor de Saúde, 22 de novembro de 2015. O link da postagem é: http://monitordesaude.blogspot.com/2015/11/gastos-com-saude-e-ciclo-economico-no.html;
 
[ii] Ver Medici, A.C., O gasto público em saúde no Brasil: Uma comparação com a vizinhança latino-americana, postado em Monitor de Saúde, 17 de outubro de 2016. O link da postagem é: http://monitordesaude.blogspot.com/2016/10/o-gasto-publico-em-saude-no-brasil-uma.html
 
[iii] Ver Camargo, J.M. e Gamerman, A., Mitos e Verdades sobre a PEC 241, em O Globo, 19 de Outubro de 2016, seção Economia.
 
[iv] Vimos que a participação do gasto público em saúde (de todas as esferas de Governo) sobre o gasto público total (não sobre o gasto primário), segundo os dados do Banco Mundial apresentados na última postagem, não chegavam a 7% em 2014.
 
[v] A taxa média do período 2011-2016 (Governo Dilma, considerando que 2016 foi o último ano efetivo deste Governo) é estimada como sendo negativa: -0,05% ao ano.
 
[vi] As estimativas do Governo e do setor financeiro estimam um crescimento do PIB entre 1,1% e 1,6% para 2017.
 
[vii] Ver Medici, A.C., A Crise da Saúde e as Organizações Sociais de Saúde do Rio de Janeiro,  postado em Monitor de Saúde, 28 de Fevereiro de 2016, link http://monitordesaude.blogspot.com/2016/02/a-crise-da-saude-e-as-organizacoes.html