Ano 10, No. 72, Feveriero 2016
André Medici
André Medici
A jornalista Carol Gonçalves, da Revista Hospitais Brasil, me solicitou uma entrevista sobre o tema da crise da saúde do Rio de Janeiro e sua relação com as Organizações Sociais contratadas pelo Estado. A questão é que, com a crise econômica e seu impacto nas finanças do Estado, o setor público não tem sido capaz de cumprir com suas obrigações com as Organizações Sociais (OS) contratadas pelo Estado que hoje administram vários hospitais e serviço de saúde no Estado. Mas existe sempre o argumento de que o problema está concentrado nas OS e não nos problemas que se situam no entorno da gestão e do financiamento do setor público do Estado. Minha entrevista tenta desmistificar alguns destes aspectos.
CG: A crise na saúde no Rio de Janeiro abre espaço para falarmos sobre
gestão indireta no setor. Recente notícia informa que as OSS no estado vão
passar por auditoria pois acredita-se que o valor devido a elas pelo governo é
menor do que é solicitado, sem falar nos desvios de recursos, que começaram a
ser investigados. São oito OSs que administram 12 hospitais e 29 UPAs do estado
do Rio de Janeiro. Qual sua opinião sobre esse tipo de gestão na área da saúde?
As OSS são a melhor solução?
AM: As OSs
tem se caracterizado como um modelo de gestão que permite melhorar a eficiência
e o alcance de resultados, através de um processo aonde os recursos públicos
são gastos de acordo com o alcance de metas estabelecidas e parte da
remuneração de pessoal é associada ao desempenho. Portanto, na medida em que
vincula o financiamento com metas de resultados, tanto quantitativos como
qualitativos, as chances de alcançar melhores resultados são maiores do que no
setor público, onde os serviços de saúde são financiados por orçamentos
históricos, o pessoal é estável e desmotivado e não existe nenhum incentivo para
que possam melhorar a produtividade ou a qualidade ao atendimento da população.
Do meu ponto
de vista, não há problemas com o modelo de OSs, mas podem haver problemas com a
forma pela qual o modelo tem sido gerenciado, ou seja, que algumas das
condições básicas para que o modelo funcione não tenham sido cumpridas, levando
a descontinuidade dos serviços e à crise na assistência à população. E creio
que, independentemente do tema dos valores devidos e eventuais desvios de
recursos, cuja a investigação ainda necessita terminar para que seja emitido
algum parecer com base jurídica, o principal problema foi a crise no
financiamento e o fato do Governo ter suspendido os pagamentos contratuais as
OSs por algum tempo.
CG: Quais os maiores problemas que envolvem esse tipo de administração?
AM: A
administração das OSs é um processo complicado porque envolve compromissos do
poder concedente (no caso, a Secretaria do Estado de Saúde) com a
concessionária (no caso a OSs). Do meu ponto de vista, há que considerar alguns aspectos que são
essenciais para que as OSs funcionem adequadamente.
O primeiro são os
contratos, tanto do Governo com a OS, assim como desta com os trabalhadores de
saúde, onde todos
os processos associados a como se fixam e se medem as metas de produção,
desempenho e qualidade são estabelecidos, bem como os mecanismos de
financiamento associados aos resultados alcançados, através de indicadores de
desempenho que realizem o pagamento de acordo com a métrica exata dos
resultados esperados. Os contratos de trabalho entre as OSs e trabalhadores da
saúde tem que ser muito claros em relação aos incentivos associados a estas
metas de produção e qualidade e os indicadores e controles para que estos
resultados sejam alcançados devem ser estabelecidos, respeitados e
fiscalizados.
O segundo é o
financiamento justo e oportuno. Se as OSs não recebem os pagamentos associados aos
seus resultados nas datas e quantidades estipuladas nos contratos, uma vez que
as metas de resultado são alcançadas, ocorre um processo de ruptura contratual
que pode prejudicar a concessão do serviço de saúde à população, gerando uma
crise no setor. Também ha que se considerar cláusulas que permitam que estes
pagamentos sejam reajustados se os custos dos insumos (uma vez acordados os
procedimentos assistenciais e sua forma ou protocolo de realização) venha a
aumentar.
O terceiro é a
fiscalização. O poder concedente para a OSs (no caso a Secretaria de Saúde do Estado
do Rio de Janeiro) tem que estar a postos e ter pessoal qualificado para
fiscalizar se estão sendo rigorosamente cumprindos os contratos e se as metas
estão sendo alcançadas de acordo com o estabelecido. Devem dar seguimento às
queixas dos pacientes e monitorar sua satisfação com os serviços prestados. Os
resultados da fiscalização é que podem garantir se o financiamento está sendo
justo de acordo com o contrato ou se existem mecanismos no contrato que devem
ser modificados, dado que os contratos devem ser permanentemente revistos e
atualizados sempre que necessário.
O quarto é a ouvidoría,
conciliação e arbitragem, onde os problemas que sejam detectados, tanto no não
cumprimento das metas, como na satisfação dos usuários ou de uma das partes –
OSs ou Governo – devem ser processados e resolvidos, internamente pelas OSs e
pela Secretaria de Saúde, ou em instância superior judicial, caso necesario.
O quinto é a previsão de cláusulas para atender a situações de
emergência, dado que
se alguma das condicionalidades não for cumprida por ambas as partes, afetando
a oferta de serviços, seria necessário ter um plano de contingência para que
não haja reduções na oferta regular ou crises no atendimento às necessidades de
saúde da população.
CG: Quais seriam as alternativas ideais para melhorar a situação do
setor no Brasil? PPPs? OSS, mas com melhor fiscalização?
AM: Acredito
que mecanismos de contratualização (como OSs, PPPs, etc.) são uma forma
superior de gestão dos serviços públicos do que os serviços sob gestão da
administração direta. Não digo que o Estado não possa ser um bom gestor de
serviços, mas para que isso possa ocorrer, ele tem que separar as funções de
admistração central daquelas da gestão direta de cada unidade de serviço.
Por exemplo,
há escolas e hospitais públicos em muitos países desenvolvidos, como
Inglaterra, Canadá, França e Estados Unidos, mas sua gestão é sempre
descentralizada e o financiamento é associados a metas de resultados e os
contratos de trabalho são flexíveis de acordo com planos e necessidades da
gestão do estabelecimento. Com isso, se minimizam os danos para a população em
geral trazidos pelas greves do pessoal estável de saúde e o absenteísmo constante pela falta de fiscalização e cumplicidade da gestão com os funcionários da administração direta, permitindo uma atenção
de melhor qualidade para a população,
Tanto as OSs
como as PPPs são modelos de concessão de serviços, onde a gestão de cada
unidade é independente e descentralizada, tornando a administração do
estabelecimento flexível para o cumprimento de metas pactadas com o Governo. Com
isso o estabelecimento tem melhores condições para gerenciar suas compras, de
forma descentralizada, recebendo seus insumos de forma ágil e expedita; para
adequar seu quadro de pessoal às necessidades do modelo de atenção e para criar
incentivos para fornecedores e trabalhadores, associados às metas a serem
alcançadas.
No entanto,
as condições necessárias para a implantação e funcionamento das OSs deveriam cumprir
os requisitos que mencionamos acima. Fsicalização, planos de contingência,
processos de negociação permanente e arbitragem são pontos nevrálgicos para que
se possam prever catástrofes na administração de contratos, como essas que
ocorreram no Rio de Janeiro.
CG: Gostaria de comentar sobre a crise
na saúde no Rio de Janeiro e as soluções para atenuar os problemas?
AM: O que
está acontecendo no Rio de Janeiro, do meu ponto de vista, é o não cumprimento
de algumas destas cinco condições que mencionamos acima. Não tenho os detalhes,
mas é possível que os contratos tenham sido falhos em algumas cláusulas.
Certamente, desde o segundo semestre de 2015, os problemas de financiamento do
Estado do Rio de Janeiro, trazidos pela redução da arrecadação do ICMS e dos
royalties do petróleo, geraram as condições para o descumprimento dos
compromissos do governo do Estado com o pagamento das OSs. Estas, ao não
recebem recursos do governo para administrar as unidades de saúde, e na
ausência de algum tipo de acordo ou negociação que permitisse recursos de
crédito ou outras fontes emergenciais de recursos, acabaram atrasando os
salários e restringindo o atendimento.
Em geral,
países ou regiões que recebem recusos extra-orçamentários associados a receitas
de produtos primários como o petróleo, não põe estes recursos diretamente no
orçamento público, mas criam mecanismos para reservar estes recursos (como
hedge funds) para que possam servir como forma de financiamento do orçamento
público nos momentos de crise. O Estado do Rio de Janeiro colocou os royalties
recebidos diretamente como parte do financiamento e não como reserva, tendo
efeitos negativos como o aumento desnecessário das despesas em
momentos de auge e, consequentemente, a falta de fundos para enfrentar as despesas
essenciais (como a saúde) nos momentos de crise.
A
fiscalização não deve ter sido suficiente, assim como os mecanismos de
ouvidoria, conciliação e arbitragem e, por fim, creio que não havia plano de
contingência, ou se havia não foi implementado no momento certo ou de forma
adequada.
Creio que a
existência de um plano de emergência que incluisse compensações financieras
ex-ante ou ex-post para os serviços, de acordo com os contratos, poderia ter
evitado no mês de dezembro do ano
passado, perto do natal, o fechamento de emergências de hospitais públicos, assim como a restrição do atendimento somente pacientes “em risco de morte
iminente” em 17 das 29 UPAS e demais unidades sob contrato de OSs, além da falta de provisão de insumos
e medicamentos que também foram notados durante a crise (sem contar o recente desperdício associado ao vencimento de prazos de validade de medicamentos não utilizados pelo Estado).
Outro
problema foi a falta de coordenação de um processo de referencia e
contra-referencia da demanda das OSs nesta situação de emergência, que levou a
uma sobre-carga abrupta de 30% na demanda das unidades federais e municipais.
Assim, na inexistência de planos de emergência, o Governo Federal e o Governo
do Município do Rio de Janeiro tiveram que socorrer a Secretaria Estadual de
Saúde, com serviços e recursos, levando à municipalização de dois hospitais –
Rocha Faria e Albert Schweitzer – e a disponibilização de 1500 leitos de
hospitais federais para atender à demanda municipal.
Além disso,
o Governo do Estado parece ter conseguido recursos especiais de empréstimo da
prefeitura do Rio de Janeiro (R$100 milhões) e liberações do Governo Federal
para pagar os compromissos com as OSs, mas estes recursos parecem não ser
suficientes para enfrentar as necessidades orçamentárias para 2016. Nesse
sentido, os desafios continuam, com riscos de que a falta de atendimento volte,
mas ao mesmo tempo, abrindo oportunidades para que se possa fazer um processo
negociado de revisão e atualização dos contratos das OSs, com base nos cinco princípios
que elencamos acima.