André Medici
Ano 11, Número 87, Julho de 2017
Desde o segundo semestre de 2014, o Brasil tem
enfrentado a maior crise econômica da história republicana. Entre 2014 e 2016,
o PIB per-capita, que mede a geração de riqueza por habitante no país, havia
tido uma queda acumulada de 9,3%, indicando que em média os brasileiros estão
quase 10% mais pobres do que ha 3 anos atrás. O anúncio das reformas (trabalhista e da
previdência) pelo Governo Michel Temer, com a perspectiva de sua aprovação ainda em 2017,
tiveram algum impacto na melhoria do nível de confiança dos investidores, o que
tem sempre reflexos positivos na economia. Assim, no primeiro trimestre de
2017, o PIB cresceu cerca de 1% em relação ao mesmo trimestre do ano anterior.
Analisando esse crescimento se conclui que o
mesmo foi puxado basicamente pela agropecuária, que apesar de seu baixo peso na
composição do PIB (apenas 5,5%, segundo o Instrituto Brasileiro de Geografia e Estatística
- IBGE), registrou a maior expansão em mais de 20 anos, com um crescimento de
13,4% em relação ao trimestre anterior, e a tendência, segundo os prognósticos, é que a expansão do PIB agrícola continuará no segundo trimestre até o fim do ano. A indústria cresceu apenas 0,9% e o
setor serviços, onde se inclui o setor saúde, apresentou um decréscimo de 0,7%
no primeiro trimestre, mantendo o mesmo rítmo de queda que já apresentava nos
dois trimestres anteriores. Vale ainda destacar que, apesar da positiva queda
das taxas de inflação no primeiro trimestre de 2017, outros indicadores
apontavam que o processo de recuperação necessitaria melhorar outros
indicadores. Para exemplificar, o consumo das famílias no primeiro trimestre de
2017 recuou 0,1% e a Formação Bruta de Capital Fixo se reduziu 1,6%. A taxa de
investimento do primeiro trimestre de 2017 foi a mais baixa já registrada nos
últimos vinte anos (15,6% do PIB).
Mas se haviam perspectivas de crescimento para 2017,
estas começaram novamente a ser atenuadas a partir de maio, por motivos de ordem
basicamente política. As denúncias de corrupção do Governo Temer, provocadas
pela articulação entre a Procuradoria Geral da República (PGR) e a delação
premiada dos empresários da JBF, trouxeram suspeitas que podem comprometer não
só o Presidente da República, seus acessores e ministros, mas também o
presidente do principal partido de oposição aos governos passados, gerando um
clima de grande desestímulo e um sentimento generalizado de falta de
alternativas entre a população. Aumentam, desta forma, os riscos para os
investidores e empresários que apostavam numa recuperação econômica lenta e
gradual a partir de 2017.
A maior ameaça com esta nova conjuntura
política se encontra na perda da capacidade do Governo em empurrar as primeiras
reformas necessárias para ajustar economia, especialmente a
da previdência social, dado que a reforma trabalhista, apesar do tumulto criado pela bancada petista no senado, foi aprovada em 11 de julho de 2017. Mas na ausência des reformas como a da previdência e num contexto de baixo
crescimento, a arrecadação de impostos se reduzirá. O espaço para a redução dos
juros da dívida pública também estará comprometido, aumentando a parcela da
arrecadação dedicada ao pagamento dos encargos da dívida. Com isso, se
reduzirão os recursos que potencialmente poderiam ser utilizados para que o
Governo possa manter seus compromissos com programas sociais, inclusive aqueles
associados a saúde pública. Com a queda dos recursos e a rigidez dos
contratos de trabalho, boa parte dos gastos em saúde do governo e do setor
privado passam a estar associados ao pagamento de salários e encargos
trabalhistas, engessando os recursos orçamentários e limitando a compra de
medicamentos, insumos e equipamentos necessários para o funcionamento adequado
dos serviços públicos de saúde.
A aprovação da PEC-95, como mencionei em
artigos anteriores, poderia ter sido uma garantia de que, mesmo com um orçamento
público com crescimento vegetativo nos próximos anos, os gastos com saúde poderiam crescer mais se
outros gastos públicos ineficientes ou supérfluos se reduzissem, como os de
pagamentos de juros da dívida pública, gastos com beneficios previdenciários
fraudulentos e o atendimento a emendas parlamentares, por exemplo. Mas sem a
reforma da previdência e outras que poderiam vir, como a tributária, que seriam âncoras para sustentar um
processo de disciplina fiscal de longo prazo no país, a PEC-95 deixa de ser
um instrumento de revalorização das áreas importantes de proteção do gasto
público, como saúde e educação, e a
negociação do orçamento passará a ser suscetível aos caprichos dos grupos de
interesse representados no Congresso.
Os exemplos que vem ocorrendo em estados como o
Rio de Janeiro, onde até mesmo os salários de funcionários da secretaria de
saúde deixam de ser pagos e os contratos com organizações sociais são rompidos,
podem se generalizar em outros estados, levando os sistemas estaduais e
municipais de saúde a uma situação próxima ao caos. Isso poderá afetar, não
apenas a rede pública, mas também a rede privada que presta serviços para o
SUS, a qual tratará de buscar formas alternativas para financiar seus custos
fixos.
No que se refere a saúde suplementar, os
problemas já vem se acumulando a algum tempo. Entre dezembro de 2014 e dezembro
de 2016, o número de beneficiários de planos médicos de saúde suplementar caiu
de 50,7 para 47,9 milhões, ou seja, uma redução de quase 3 milhões de
assegurados que deixaram de contribuir em função do desemprego do chefe da
família ou do cônjuge, no caso dos planos coletivos, ou por perda de renda
familiar, no caso dos planos individuais. Entidades como a Associação
Brasileira de Medicina de Grupo de Empresas (ABRAMGE), em seus boletins de
conjuntura, prevêem em 2017, com a perspectiva de que haja algum crescimento
econômico, que a situação possa melhorar, levando o número de beneficiários de
volta ao patamar dos 48 milhões. Mas depois dos incidentes políticos de maio de
2017, não se sabe como se comportará a recuperação do emprego, da renda e,
portanto, da capacidade das empresas e da população em financiar planos de
seguro de saúde.
Tal situação já afeta a própria rentabilidade
do setor de saúde suplementar. Por exemplo, considerando as entidades
vinculadas a ABRAMGE, a receita de contra-prestações de saúde cresceu 12,7%
entre 2015 e 2016, em função dos aumentos dos prêmios, mas esse crescimento foi
inferior ao crescimento das despesas assistenciais, que foi de 14,1%. Isso
levou a uma redução do resultado operacional do setor que em 2016 foi menos da
metade do registrado em 2015.
Mas os problemas que se observam no setor saúde
durante a crise apenas exacerbam tendências que já se colocam a algum tempo, em
função de defeitos estruturais da forma como se organiza, tanto o setor público
como a saúde suplementar no Brasil.
No que se refere ao setor público, existem os
problemas associados à falta crônica de planejamento e gestão, ao crescimento
do setor baseado mais no clientelismo político do que nas necessidades da
população, à inequidade na forma pela qual os investimentos e os recursos de custeio do
setor são distribuidos e à ineficiência de um setor que não se organiza para
alcançar resultados, recompensar os sucessos e penalizar os fracassos. O setor
público de saúde no Brasil, pela forma como se organiza, nunca terá o
financiamento que necessita, porque qualquer recurso adicional que se coloque
acaba vazando pelos ralos de ineficiência do sistema.
Por outro lado, no que se refere a saúde
suplementar, falta uma regulação que oriente o setor a incorporar mais
promoção, prevenção, atenção básica e integração com o setor público. Os planos e seguros de saúde devem ser
complementares (não suplementares) no financiamento do sistema, sendo pagos pelas
empresas e famílias com capacidade de financiamento de modo a liberar os recursos
públicos para subsidiar a população que não tem capacidade de pagamento ou os
gastos catastróficos incapazes de serem sustentados com o orçamento das
famílias.
O setor saúde no Brasil deve passar por
reformas que estabeleçam uma cultura de asseguramento, do ponto de vista do
financiamento, e de resultados na gestão setorial. O financiamento da saúde não deve ser fragmentado entre o SUS, a saúde
suplementar e os gastos diretos das famílias, mas sim fazer parte de um sistema
unificado de gestão de riscos de saúde que integre de forma harmônica e
equitativa as distintas fontes de financiamento. A integração das fontes
garantiria a sustentabilidade do financiamento e a coordenação dos recursos
disponíveis para a saúde, evitando duplicações, desperdícios e carências e evidenciando que a saúde não é apenas um
direito, mas também um dever e responsabilidade de todos, cabendo ao Estado
zelar prioritariamente por aqueles que não têm capacidade de se organizar e
financiar os recursos necessários ao cumprimento de suas necessidades de saúde.
Os recursos do SUS atualmente financiam uma
camada da população que poderia prescindir do suporte público, e ao mesmo tempo
deixam sem acesso uma parte expressiva da população mais pobre do país, que
ainda vive em regiões com falta de infraestrutura de saúde. Em outras palavras
o sistema de saúde no Brasil atende de maneira desproporcional às necessidades
daqueles que podem financiar parcial ou totalmente suas necessidades de saúde,
através de canais privilegiados do SUS ou de processos de judicialização, e
nega o direito dos mais pobres em ter uma cobertura básica que lhes permita
garantir assistência em condições de dignidade.
Do ponto de vista da escala de gestão, os
municípios (especialmente aqueles com menos de 100 mil habitantes) não cumprem
com os requisitos para garantir uma mínima eficiência na entrega de
serviços. Se deveriam orgarnizar redes regionais de saúde, geridas de forma
empresarial, que atendam a requisitos mínimos para manter um fluxo regular de
utilização plena ou quase plena das unidades de saúde e que minimizem o risco
atuarial de aumentar desproporcionalmente os custos do sistema sem a
correspondente atenção médico-assistencial.
As redes regionais de saúde deveriam harmonizar
o financiamento do SUS e dos planos de saúde privados, integrando os serviços
através da demanda, onde aqueles com capacidade de financiamento manteriam seus
planos enquanto que aqueles sem capacidade de financiamento receberiam
subsídios integrais ou parciais para ter acesso aos mesmos serviços, através de
estratégias subsidiadas que lhes garantam os mesmos direitos nas mesmas
unidades assistenciais. Para tal, a diferença entre ser atendido em uma unidade
pública ou privada deixaria de existir. As duas teriam perfil e investimentos
similares e seriam financiadas pelos mesmos mecanismos de pagamento e
submetidas a mecanismos de regulação, gestão, controle e supervisão similares.
Caberia ao Estado e a gestão das redes regionais,
a avaliação, o monitoramento e a geração de incentivos que permitam que o
sistema seja orientado para os resultados e remunerado de acordo com o seu
alcance. Todas as unidades de saúde estariam submetidas a processos permanentes
de garantia de qualidade e acreditação obrigatória, tendo acesso a linhas de
crédito para modernizar e adaptar suas instalações, equipamentos, projetos
gerenciais e equipes de saúde. Para que
este processo funcione, seria necessário o uso crescente de tecnologias de
informação e comunicação e a implantação efetiva de um cartão nacional de saúde
acoplado a uma base de dados que permita uma gestão adequada dos benefícios,
independentemente do nível de subsídios que os indivíduos recebam, assim como a
transição de uma situação de subsídio para outra, quando houver necessidade.
Por fim, ao contrario do SUS que hoje se
caracteriza por recursos humanos mal pagos e desmotivados, o novo sistema
deveria se basear em remuneração e progressão funcional acoplada aos resultados,
garantindo oportunidades profissionais,
planos de carreira, aprendizagem e aperfeiçoamento.
Muitas vezes as crises podem impedir que os
investimentos em transformações desta natureza se realizem no curto prazo. Mas
é importante ter a consciência que os momentos de recuperação econômica não
devem ser momentos de acomodação ou repetição dos erros passados, os quais
geraram no Brasil um dos sistemas de saúde mais impopulares no contexto mundial dos países de renda média e alta.