Ano 7, No. 37, Junho 2012
André Medici
André Medici
Introdução
Na última quarta-feira, (dia 6 de junho de 2012), o Estadão publicou
na página 2 um artigo intitulado O Brasil
deveria gastar mais com saúde? (1)
A presente postagem
procura elaborar um pouco mais sobre este artigo e dar algumas evidências
estatísticas sobre os argumentos desenvolvidos.
Em livro recém publicado (2), argumento que é
praticamente impossível saber quanto um país deve gastar com saúde, a menos que
estejam respondidas algumas perguntas: Quais as necessidades de saúde da
população? Estas necessidades poderiam ser financiadas com os recursos
financeiros públicos e/ou privados disponíveis ou com menos ou mais recursos do
que os que se prentede alocar? Os recursos existentes são alocados da forma
mais eficiente ou poderiam ser melhor alocados? A população realmente quer
gastar esses recursos com saúde ou tem outras preferências? O valor a ser
alocado em saúde deveria ser gasto em outros setores sociais ou econômicos para
o atendimento de outras necessidades mais urgentes do que as necessidades de
saúde? A forma como se pretende gastar os recursos de saúde representa a combinação
do uso dos recursos que melhor atende às necessidades de todos, de forma
equitativa?
Necessidades de saúde
As necessidades da saúde da população
brasileira,
segundo o texto da Constituição de 1988, devem ser cobertas integralmente. Mas
como se define cobertura integral? Seriam todas as necessidades de saúde
sentidas por cada um ou as necessidades coletivas estabelecidas de acordo com
critérios racionais? Que limites haveriam para o conceito de integralidade? Que
desejos, caprichos, experiências com produtos não testados mas demandados por
lobbies farmacêuticos através da pele de grupos organizados de pacientes
estariam sendo cobertos sob o conceito de integralidade?
A sociedade brasileira, incluindo o Ministério
da Saúde, ha tempos vem discutindo o conceito de integralidade, sem chegar a
uma conclusão. Existe implicitamente um rol de procedimentos financiados pelo
SUS, que em tese é maior do que aquele rol de procedimentos que cabem na lista
da saúde suplementar, mas inferior ao que consta na tabela da Associação Médica
Brasileira (AMB). Mas de forma explícita ainda não se chegou a nenhuma
conclusão sobre o conceito de integralidade.
Podemos utilizar o perfil epidemiológico da
população como uma proxy das
necessidades de saúde, mas acabamos enfrentando o mesmo problema, dado que não
é fácil definir uma linha de corte. Que necessidades estariamos financiando? As
que atingem 90%, 95%, 99% ou 100% dos procedimentos de promoção, prevenção e
tratamento, incluindos os mais novos e não testados medicamentos e tecnologias?
Poderíamos fazer uma distribuição de
frequência das necessidades de acordo com critérios objetivos, como o impacto
na mortalidade e na morbidade (ou nos anos de vida saudáveis perdidos - AVISAs)?
A verdade é que nenhum político (inclusive
aqueles que utilizam a pele de técnicos) gostaria de responder objetivamente a esta
questão. A garantia constitucional da integralidade é mais que suficiente para
que a população bem informada e acessorada por advogados possa pedir na justiça
os procedimentos, exames, tratamentos ou terapias que o setor público ou os planos
de saúde não incluem em suas listas. No entanto, quanto mais entramos no rol
dos procedimentos de alta tecnologia e das inovações medicamentosas não
cobertas por estas listas, maiores serão os custos para atender a todos. E se o
cobertor do financiamento é curto, acabamos deixando de fora os que estão em
baixo para cobrir os que estão em cima da pirâmide social, embora o discurso
dos políticos continue pregando a defesa da igualdade ao acesso à saúde
garantida pela Constituição.
Os países desenvolvidos já sabem ha muito tempo
que quando os recursos são escassos se requer uma definição de prioridades. Mas
a Constituição de 1988 não falou de prioridades em saúde. Falou em inclusão
integral e igualitária. E até que consigamos sair deste imbroglio, o tempo passa e os mais pobres ficam com uma cobertura
menor e de pior qualidade. No Brasil todos pedem mais recursos para a saúde,
mas ainda não sabemos o que vamos financiar
sob o conceito de integralidade.
Os recursos para o financiamento
da saúde
Suponhamos que sabemos quais são as
necessidades de saúde da população. Outro problema surgiria. Poderemos financiar a saúde com os
recursos existentes? O argumento que vem sendo usado neste caso é que o Brasil
gasta menos em saúde do que outros países. No entanto, não existe unanimidade
quanto ao conceito de gasto em saúde e sua mensuração e vários conceitos surgem
nas análises que rodam na praça, muitos dos quais inadequados. Podemos dizer
que, em termos de comparações internacionais, pelo menos dois conceitos são
importantes: (i) o gasto em saúde como proporção do PIB e (ii) o gasto
per-capita com saúde (neste caso, utilizando o conceito de paridade do poder de
compra – PPC).
O gasto em saúde como proporção do PIB estaria
medindo a parte da riqueza nacional que a população dedica para pagar bens e
serviços de saúde através de seus distintos agentes econômicos: o govêrno, as
famílias e as empresas. O gráfico abaixo, mostra que, segundo os dados da Organização
Mundial da Saúde - OMS - (3), o Brasil
era o quarto país com maior participação do gasto em saúde no PIB, entre os
países da América Latina e Caribe. Com seus 8,4% do PIB, o Brasil, so tinha um
gasto em saúde como proporção do PIB inferior a Cuba, Nicaragua e Costa Rica.
Portanto, a sociedade brasileira dedica uma boa parte da riqueza gerada a cada
ano para a saúde, quando comparada com outros países latino-americanos.
Já o gasto com saúde percapita estaria medindo
o valor absoluto que se gasta com saúde, permitindo conhecer quanto cada
brasileiro dispõe para gastar com saúde em média. Isto permite fazer
comparações reais do que cada país dispõe para gastar com a saúde de cada um de
seus habitantes. Considerando este índice, o Brasil não ocupa uma posição tão
elevada no contexto latino-americano. Com US$ 875 percapita de gasto em saúde
por ano, nosso país é o 10º. no ranking dos países a ALC. Isto ocorre por
vários motivos. Primeiramente porque países com renda per-capita mais elevada
que o Brasil, como Argentina, Chile,
Uruguai, Costa Rica e Panamá e alguns países do Caribe Inglês (Barbados, Bahamas
e Trinidad y Tobago) tinham mais riqueza disponível para gastar com saúde em
termos absolutos. No entanto, o Brasil gastava mais do que países como México,
Colômbia e Venezuela, como pode ser visto no gráfico abaixo.
Saindo da América Latina e indo em direção aos
BRICS (4), o Brasil é o país com maiores gastos em saúde como porcentagem do
PIB entre este conjunto de 5 países (tabela abaixo). Mas no que se refere ao
gasto percapita ocupava a terceira posição. Seu gasto em saúde em 2008
equivalia a 48% do gasto da África do
Sul e 89% do gasto da Rússia. Mas isso é natural, dado que a renda percapita
destes dois países era pelo menos o dobro da renda percapita brasileira em
termos de paridade do poder de compra.
Poderemos ainda comparar o gasto percapita em
saúde e o produto nacional bruto (PNB) per-capita (ambos em PPC) entre a quase
totalidade das nações do mundo (193 países), para avaliar aonde se situa o
Brasil, como pode ser visto no gráfico abaixo. Neste caso, considerando que a
curva de ajuste do comportamento destas duas variáveis representa uma média,
pode-se dizer que, dado o seu nivel de renda, o Brasil tem um gasto em saúde por
habitante (considerada sua renda percapita) acima da média mundial.
Portanto, se o financiamento da saúde fosse
organizado sob princípios de gestão eficiente e equidade distributiva, o gasto
em saúde no Brasil não estaria mal na foto. Mas o problema é saber se os
princípios acima enumerados efetivamente se cumprem, pois se existem
ineficiências na gestão e inequidades na distribuição, os recursos disponíveis
para serem gastos com saúde podem não ser suficientes.
Gasto Público x Gasto
Privado em Saúde
Quando se fala sobre a necessidade de maior
financiamento da saúde no Brasil, em geral se fala sobre a necessidade de mais
recursos públicos para a saúde e isto requer uma análise mais detalhada.
Baseando-se nas estimativas de gastos em saúde da OMS, podemos inferir que o
gasto mundial em saúde alcançou US$ 6,1 trilhões em 2008, dos quais 60% seriam
gastos públicos (diretos do governo ou indiretos através de instituições
públicas de seguro social) e 40% seriam privados (através de gastos diretos das
famílias, instituições privadas de seguro ou filantropia). Uma análise dos
dados da OMS também permite demonstrar que quanto maior é o nivel de renda de
um país, maior tende a ser a participação do gasto público sobre o gasto total
em saúde, como pode ser visto no gráfico abaixo.
Países classificados como de renda média alta
(grupo no qual o Brasil se insere), estão gastando em média 57% dos seus gastos
em saúde através do setor público. No entanto, o Brasil gasta somente 44%,
estando portanto numa faixa de participação do gasto público intermediária
entre um país de renda baixa e de renda média baixa. Fazendo um outro conjunto
de comparações do gasto público, podemos notar que entre os países da América
Latina, o Brasil é um dos que tem a menor participação do gasto público no
conjunto dos gastos em saúde (44%), tendo participação equivalente a do Chile e
ficando somente a frente do Perú, Equador, El Salvador, Guyana e Honduras neste
indicador.
No entanto, considerando o gasto público
percapita em saúde, se poderia dizer que o Brasil, com US$ 386 anuais em 2008, encontrava-se
numa posição intermediária, embora estando abaixo de países como a Argentina,
Cuba, Uruguai, Chile, Costa Rica, Colômbia e México, para dar alguns exemplos
(ver gráfico abaixo). Existem no entanto algumas nuances que devem
consideradas. A primeira delas é que boa parte dos países latino-americanos
incluem, em seu componente de gasto público os gastos com seguros públicos de
saúde (como é o caso da Colombia, Uruguai, Argentina e Chile) o que não
acontece com o Brasil, onde a totalidade do gasto público é diretamente
administrada pelo governo, ainda que através da compra de serviços prestados
por estabelecimentos públicos e privados de saúde.
A organização de gastos públicos sob a forma de
seguros apresenta algumas vantagens. Entre elas, o fato de que o financiamento
está sujeito a formação de reservas e ao uso de cálculos atuariais no processo
de gestão, onde o elemento risco é importante na tomada de decisões do que se
deve financiar. Com isso, o financiamento fica um pouco mais protegido de
crises econômicas que poderiam levar a reduções drásticas na arrecadação com
efeitos negativos no gasto público direto em saúde.
O Brasil, desde 1996, tem tido um bom
desempenho na arrecadação fiscal, permitindo uma expansão contínua do gasto público
em saúde numa fase de crescimento econômico moderado. Se consideramos o período
que vai de 2007 a 2011, podemos notar um crescimento contínuo dos gastos
federais em saúde que aumentaram 53% no período, como foi discutido no artigo A Regulamentação da EC-29 e o Financiamento
da Saúde no Brasil postado neste blog em 16 de Janeiro deste ano. No
entanto, não se sabe quais seriam os efeitos de uma crise econômica prolongada que
trouxesse impactos negativos na arrecadação sobre os gastos públicos em saúde
no Brasil.
Comparando-se o gasto público percapita em
saúde na quase totalidade dos países ao nivel mundial, em função de sua renda
percapita, pode-se dizer que o Brasil, em 2008, não estava acima da curva de
ajustamento médio, mas encontrava-se na média, sendo seu gasto público em saúde
percapita compatível com seu nivel de renda (ver gráfico abaixo).
Considerações Finais
Gastar mais em saúde dever ser uma opção da sociedade. Ao longo da última década, as várias pesquisas de opinião realizadas pelo IBOPE e patrocidadas pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) tem demonstrado um crescimento da saúde entre as preocupações dos brasileiros. A pesquisa CNI-IBOPE em 2002 mostrou que a saúde era o maior problema na vida de 41% dos brasileiros, sendo somente superado pelo desemprego. Mas em setembro de 2011 a saúde era o maior problema na vida de 52% da população brasileira. Entre dezembro de 2011 e março de 2012, a aprovação da política de saúde do governo cresceu de 30% para 34%, mas cerca de 63% dos brasileiros ainda desaprovam tal política. A maioria dos brasileiros, no entanto, acha que se deveria aumentar o gasto público com saúde, mas considera que, além disso, se deveria aumentar a eficiência e combater a corrupção no setor.
Os dados
apresentados, mostram que o Brasil gasta em saúde acima da média dos países da
América Latina e do Caribe, mas a participação do gasto público sobre o gasto
total em saúde está abaixo da verificada neste mesmo conjunto de países. O Brasil tem uma alta participação
do gasto direto das famílias no total do gasto em saúde (cerca de 28% em 2010).
Poderiamos considerar a hipótese de que aumentar o gasto público em saúde no
Brasil (de forma eficiente e equitativa) levaria à redução do gasto direto das
famílias com saúde. Esse efeito-substituição poderia levar o gasto em saúde
como porcentagem do PIB a não se elevar substancialmente. No entanto, o efeito
substituição somente ocorreria se o gasto público fosse focalizado nos mais
pobres (contribuindo para aumentar a equidade) ou gerenciado de forma mais
eficiente.
As discussões a respeito do financiamento da
saúde no Brasil, mostram uma certa unanimidade quanto a necessidade de aumentar
o gasto público em saúde. No entanto, pouco se discute quanto às opções necessárias
para que o aumento do gasto público reverta em melhores benefícios para a
população sem gerar efeitos negativos na já elevada carga tributária brasileira.
Valeria, a título de conclusão, comentar que:
1. A criação (ou recriação) de impostos
específicos para a saúde, como a CPMF, estaria fora de cogitação, num contexto
onde a carga tributária do país é considerada uma das mais altas do mundo, com
efeitos negativos sobre a competitividade internacional da indústria
brasileira.
2. Aumentar a participação do gasto
público em saúde no orçamento, reduzindo a participação de outros gastos
governamentais poderia ser a melhor opção. Existem muitos gastos supérfluos
associados a interesses lesivos à sociedade brasileira no interior do orçamento
federal, e também dos Estados e Municípios, que poderiam ser eliminados abrindo
espaço para um aumento dos gastos com saúde. Mas isto exigiria da classe
política um esforço real de discussão de prioridades de alocação do gasto
público;
3. Um outro tema seria aumentar a
complementariedade dos gastos do SUS com o da Saúde Suplementar, fazendo com
que houvesse uma opção real entre os dois sistemas. Existem diversas formas de
aumentar esta complementariedade e direcionar os recursos do SUS para aqueles
que mais precisam, mas é importante ressaltar que isto poderá ser uma real
opção para evitar duplicações de cobertura e desvios no uso dos recursos
públicos para gastos de baixa prioridade social.
Em
síntese, a resposta a dois desafios deveriam sair desta discussão:
Primeiro:
usar de forma mais eficiente e equitativa os recursos públicos em saúde poderia
trazer efeitos na melhoria da cobertura e qualidade do acesso da população
brasileira à saúde, beneficiando particularmente os mais pobres e excluídos.
Segundo: aumentar
gastos públicos em saúde não pode ser feito simplesmente com mais recursos
financiados a descoberto. É necessário, antes de tudo, definir prioridades no
uso de um orçamento público que tem recursos finitos. Para tal, o executivo e o
legislativo deveriam abrir mão de suas agendas pessoais e corporativas e se
associar a uma agenda republicana de debate de idéias, interesses e prioridades
para toda a população brasileira.
Estaríamos
maduros, como país, para responder a estes dois desafios?
Notas
- Acesso através do link http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,o-brasil-deveria-gastar-mais-com-saude-,882997,0.htm
- Medici, A.C., Do Global ao Local: Os Desafios da Saúde no Limiar do Século XXI, Ed IBEDESS-Coopmed, Belo Horizonte, 2011. O livro pode ser adquirido diretamente da Editora através do site http://www.coopmed.com.br/clv/product_info.php?products_id=101&osCsid=3098d44b203f599c86ed6d133865df26
- WHO, World Health Indicators, Ed. WHO, Geneve, 2011.
- Ver o artigo A Saúde nos BRICS: Progressos e Perspecitvas para 2011, postado em 11 de janeiro de 2011 neste blog.
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