Ano 7, No. 36, Março 2012.
Nos últimos anos, tem aumentado a preocupação com o tema de desenvolvimento infantil (early child development - ECD) no mundo. Vários governos tem avançado em criar uma agenda que integre os temas da educação, da saúde e do cuidado familiar para buscar soluções que permitam orientar a criança para aproveitar seu pleno e integral potencial como futuros adolescentes e adultos. Estes temas estão na raíz dos novos paradígmas do desenvolvimento econômico e social na medida em que são a base para novos modelos de produtividade e desenvolvimento humano, já presente nas agendas dos países desenvolvidos.
No caso do Brasil, alguns Estados tem avançado nos temas de educação pré-escolar e estimulação precoce nas áreas de educação e nutrição, mas os temas de saúde ainda continuam atrás desse processo.
O Estado de São Paulo, no entanto, pode ser considerado uma exceção. Entre os temas que tem preocupado a Secretaria de Saúde (SES-SP) e a Universidade de São Paulo (USP), está o tema das doenças raras que devem ser identificadas precocemente e tratadas, se possível,a partir da infância. A SES-SP está organizando um Programa de Assistência à Pessoa com doença Rara (DR), vinculado a Triagem Neonatal, com o objetivo de diagnosticar as doenças crônicas, genéticas e incuráveis com manifestação clínica já no primeiro ano de vida.
No dia 29 de fevereiro último - dia internacional da Doença Rara - a SES-SP decidiu que publicará em breve, no Diário Oficial do Estado, os nomes dos 10 médicos, professores universitários e especialistas em doenças raras (Comitê DORA), que irão compor a assessoria técnica desse programa, sob a coordenação da Dra. Carmela M. Gringler, que também coordena o Programa Estadual de Triagem Neo-Natal. Para fundamentar este processo, já se encontra pronto o projeto de uma plataforma eletrônica - um site interativo entre a rede de Atenção Básica, a SES-SP e a Universidade de São Paulo - que foi construído conjuntamente com os professores da Escola Politécnica da USP.
Esta semana publicamos um artigo da Dra. Magda Carneiro-Sampaio, que está fortemente envolvida neste projeto. Ela é Professora Titular de Pediatria da Faculdade de Medicina da USP e Presidente do Conselho Diretor do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da mesma Faculdade. Em 2011, ela propôs à SES-SP e a Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado, um programa de assistência aos portadores de doenças raras, que agora se torna realidade. Com a palavra, a Dra. Magda.
Políticas Públicas para as Doenças Raras
Magda Carneiro-Sampaio
Na comunidade européia, uma doença é considerada rara quando tem uma frequência menor de que 1 afetado em cada 2.000 pessoas da população geral. Como as doenças raras (DRs) são inúmeras (entre 5 mil a 6 mil doenças diferentes), o número de pacientes com DRs é alto, chegando a 4% da população européia. Assim, as doenças são consideradas raras, mas os doentes com DRs são numerosos. Entre as DRs, existem algumas não tão raras, como as hemofilias, as distrofias musculares, a fibrose cística do pâncreas ou mucoviscidose, a neurofibromatose, enquanto outras são mesmo raríssimas.
A maior parte das DRs tem origem genética, e cerca de 80% delas decorre da alteração de um único gene e por isso são chamadas de monogênicas. As únicas doenças genéticas não consideradas como raras na nossa população são a síndrome de Down (1 em cada 800 nascidos vivos) e a anemia falciforme, esta última monogênica e mais comum entre descendentes de africanos.
As DRs são quase sempre crônicas, progressivas, degenerativas, comprometem a qualidade de vida e implicam em grande sofrimento para o afetado e para sua família, levando não raro à desagregação familiar. Várias trazem riscos imediatos à vida, tais como as imunodeficiências congênitas graves (como a criança que vivia numa bolha, retratada no filme “O menino da bolha de plástico”, de 1976), das quais me ocupo diretamente. Estas doenças são 100% letais se não forem tratadas com transplante de células hematopoiéticas de medula óssea ou de cordão umbilical, procedimento que pode propiciar ao doente uma vida normal e produtiva, já que não apresenta outros defeitos.
Considerando-se a população de 41 milhões de habitantes no Estado de São Paulo e a frequência de DRs da comunidade europeia, podemos inferir que em nosso Estado vivam aproximadamente 1,5 milhões de pessoas com diferentes DRs, a maior parte das quais certamente ainda não diagnosticadas. Nos hospitais universitários, em particular nos seus serviços de Pediatria, Neurologia e Endocrinologia, mais de 80% dos pacientes são portadores de DRs. Porém até chegar a um centro capaz de estabelecer o diagnóstico e oferecer tratamento adequado, quando disponível, o portador de DR, como regra, já passou por uma verdadeira via crucis em numerosos hospitais, centros de saúde, ambulatórios e laboratórios, sem ter recebido o acolhimento e a atenção necessários.
Com a incontestável melhoria das condições de vida e da assistência à saúde à nossa população, as doenças infecciosas (diarreias, sarampo, tuberculose, tétano, outras), agravadas que eram pela desnutrição, felizmente deixaram de figurar como causas importantes de mortalidade infantil em nosso Estado. Hoje os problemas neonatais e as anomalias genéticas e malformações congênitas representam as 2 causas mais comuns de mortalidade infantil em São Paulo, tendo sido responsáveis, respectivamente, por 57% e 22% de todas as mortes em menores de um ano em 2010. Há de se salientar que, apesar de todo o progresso econômico que nosso Estado e nosso País vêm galgando, nossas taxas de mortalidade infantil - um indicador crítico para o índice de desenvolvimento humano - ainda são altas: 11,9 por mil nascidos vivos em 2010, ou seja, 12 crianças em cada 1.000 nascidas vivas não completam o primeiro aniversário. Vale salientar que no Chile este índice é 7, em Portugal e Espanha, apenas 3!
Acredito que os dados aqui apresentados mais que justificam uma preocupação das autoridades sanitárias com as DRs e consequentemente a proposição de políticas públicas para diagnóstico e assistência adequada aos doentes, aconselhamento genético às famílias para evitar novos casos, registro dos casos e famílias afetadas, apoio à pesquisa para elucidar a origem das diferentes doenças e para o desenvolvimento de formas eficazes de tratamento. A baixa prevalência de cada uma dessas doenças traz como conseqüência dificuldade para a própria construção do conhecimento médico e epidemiológico sobre esses defeitos. Por sua vez, o sistema de saúde acaba tendo um contingente de casos espalhados, diminuindo a possibilidade de desenvolvimento de estratégias para diagnóstico e tratamento efetivos.
O programa nacional de triagem neonatal (conhecido como teste do pezinho) representa sem dúvida um esforço organizado para a detecção precoce de algumas DRs. Recentemente iniciou-se a articulação de uma rede entre os hospitais universitários paulistas públicos e privados (rede DORA – Doenças Raras), que sob a coordenação da Secretaria de Estado da Saúde, começa a planejar a assistência aos portadores de DRs. Especialistas de todas as áreas já se envolveram e em paralelo organizam-se também para realizar investigação científica avançada, sabendo-se que as doenças monogênicas são situações privilegiadas para se entender a Medicina e a Biologia em geral.
Ao lado da Academia e do poder público, estão também as associações de doentes, que recentemente constituíram a FEBER (Federação Brasileira de Enfermidades Raras), atores fundamentais para a implementação deste novo desafio na assistência à saúde que o progresso social e econômico do nosso Estado e do nosso País nos impelem hoje a enfrentar. O tema vem sensibilizando diversos países, o que motivou a criação do Dia Internacional das Doenças Raras, em 29 de fevereiro. É uma oportunidade para que as autoridades, o meio acadêmico e a população em geral reflitam sobre a necessidade de se implementarem políticas públicas para fazer frente a uma realidade que, no conjunto, afeta uma grande parcela da população.
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