Ano 9, No. 70, Novembro de 2015
Andre Medici
Andre Medici
Utopia e Realidade dos Gastos Federais de Saúde
Existe alguma correlação entre gasto público em
saúde e ciclo econômico? Ou em outras palavras, poderia uma recessão
influenciar a magnitude do gasto público em saúde? A resposta intuitiva seria que
sim. Isto porquê a recessão tem impacto negativo nas principais fontes de recursos
que sustentam os gastos em saúde: impostos e contribuições sociais.
Mas como o orçamento público é elaborado em função de prioridades que são definidas pelo Governo, a alocação orçamentária dos recursos públicos é uma questão de prioridades. Portanto, se o poder executivo, mesmo numa conjuntura de queda de arrecadação, resolve dar prioridade ao aumento dos gastos com saúde, e esta prioridade é corroborada pelo Congresso que vota a Lei de Orçamento, os gastos em saúde podem aumentar até mesmo em períodos recessivos.
Mas como o orçamento público é elaborado em função de prioridades que são definidas pelo Governo, a alocação orçamentária dos recursos públicos é uma questão de prioridades. Portanto, se o poder executivo, mesmo numa conjuntura de queda de arrecadação, resolve dar prioridade ao aumento dos gastos com saúde, e esta prioridade é corroborada pelo Congresso que vota a Lei de Orçamento, os gastos em saúde podem aumentar até mesmo em períodos recessivos.
Economistas em geral gostam de ver lindos
coeficientes de regressão (R2), próximos de 1 (um), para comprovar uma
correlação positiva perfeita entre duas variáveis que corroboram com suas
hipótesis. Mas a economia é uma ciência social, e portanto, em última
instância, o comportamento das variáveis econômicas é resultante do
comportamento dos atores que tomam decisões sobre estas variáveis, mandando
muitas vezes a correlação perfeita para o quinto dos infernos. Assim, se
queremos esperar um R2 próximo a 1 (um) entre gastos públicos em saúde e crescimento
econômico, não o vamos encontrar. Para o bem ou para o mal.
Para provar o que estou dizendo, pavimentei
minha tela de computador com planilhas eletrônicas e as enchi com dados para
ver o que aconteceu com os gastos federais em saúde e o crescimento do PIB
brasileiro entre 1980 e 2015. O resultado está representado nos gráficos
abaixo.
Por exemplo, na crise 1981-1983, a redução dos
gastos federais em saúde foi maior do que a do PIB, mas na recuperação
1984-1987, o crescimento dos gastos federais com saúde ha sido muito maior do
que o do PIB.
Na história destes trinta e cinco anos, o pior
período para o crescimento do gasto com saúde se passou durante o Governo
Collor, quando ocorreu uma queda prolongada do gasto em saúde de mais de 10% ao
ano, no período 1990-1992. Em compensação, a recuperação mais intensa ocorreu
no período Fernando Henrique Cardoso, especificamente em 1995, quando o gasto federal
em saúde cresceu mais de 40%.
Outro ponto a destacar é que a bonanza
econômica a partir de 2004, levou o gasto federal em saúde a crescer a taxas,
em média superiores as do PIB até 2009, quando a partir de então já começa a
enfrentar cortes em 2013 que se aprofundam a partir de 2015, quando
é esperada uma retração de no mínimo 9% no gasto federal em saúde e um
decréscimo do PIB de 3%.
Assim, usando os dados do gráfico 1, podemos
construir o gráfico 2 que apresenta o coefiente e a reta de regressão linear entre
as variáveis taxa de crescimento do PIB e taxa de crescimento dos gastos
federais em saúde para cada um dos anos entre 1980 e 2015 (sendo este último
ano uma estimativa).
Como se verifica, este coeficiente é inferior a
0.25, indicando que praticamente não há correlação entre o crescimento dos
gastos federais com saúde e o crescimento do PIB. Portanto, outros fatores mais
relevantes do que a magnitude do crescimento econômico influenciaram as
decisões do governo federal de quanto gastar em saúde e certamente estes
fatores estão associados aos compromissos implícitos em mover adiante a agenda
de cobertura universal de saúde implantada na Constituição de 1988.
Discussões sobre como Atrelar o Crescimento dos Gastos Federais em Saúde
Ao longo do processo de implementação da Emenda
Constitucional 29 (EC-29) muitos tentaram buscar uma âncora para orientar como
deveriam crescer os gastos federais com saúde, no sentido de alcançar a
almejada meta da cobertura universal. A mais popular entre todas as propostas foi
o de atrelar o crescimento dos gastos federais com saúde ao crescimento do PIB.
Mas observando os dados de crescimento dos gastos federais em saúde numa
perspectiva histórica, esta âncora parece tímida frente aos resultados já
alcançados nestes últimos 35 anos.
Por exemplo, entre 1980 e 2015 (incluindo as
projeções negativas para este último ano), o gasto
federal em saúde cresceu a uma média geométrica anual de 3,7%, enquanto o PIB
cresceu a uma média anual de 3,4%, de acordo aos dados do Banco Central. Neste
sentido, ao longo deste período não haveria nenhuma vantagem em atrelar o
crescimento dos gastos federais em saúde ao crescimento do PIB. Se o país
tivesse optado, desde 1980, por este critério, o gasto federal com saúde seria
2,3 vezes maior em 2015, em termos reais, do que era em 1980. Mas na
verdade, sem atrelar o crescimento deste gasto ao do PIB, o gasto federal com saúde cresceu 2,5
vezes. Comparemos o crescimento destas duas variáveis por períodos de Governo (tabela 1).
Período
|
Governo
|
Taxa Geom. Anual de
Crescimento do Gasto Federal em Saúde (%)
|
Taxa Geom. Anual de
Crescimento do PIB (%)
|
Vantagem em Atrelar
o Crescimento do Gasto Federal em Saúde ao Crescimento do PIB
|
1980-1984
|
JOAO
FIGUEIREDO
|
-4,7
|
-0,3
|
VANTAGEM
|
1985-1989
|
JOSE
SARNEY
|
16,1
|
4,4
|
DESVANTAGEM
|
1990-1992
|
FERNANDO
COLLOR
|
-14,3
|
-1,3
|
VANTAGEM
|
1993-1994
|
ITAMAR
FRANCO
|
1,2
|
5,4
|
VANTAGEM
|
1995-1998
|
F.
H. CARDOSO -1
|
5,9
|
3
|
DESVANTAGEM
|
1999-2002
|
F.
H. CARDOSO -2
|
3,5
|
2,3
|
DESVANTAGEM
|
2003-2006
|
LULA
DA SILVA -1
|
5,3
|
3,5
|
DESVANTAGEM
|
2007-2010
|
LULA
DA SILVA – 2
|
5,2
|
4,5
|
DESVANTAGEM
|
2011-2014
|
DILMA
ROUSSEF -1
|
3,6
|
2,1
|
DESVANTAGEM
|
2015
|
DILMA
ROUSSEF -2
|
-8,8
|
-3,1
|
VANTAGEM
|
Media
1980-2015
|
3,7
|
3,4
|
DESVANTAGEM
|
Os dados
mostram que, desde 1980, somente no governo de quatro presidentes haveriam vantagens
em atrelar o crescimento dos gastos federais em saúde ao crescimento do PIB.
Estes governos foram João Figueiredo, Fernando Collor de Mello, Itamar Franco
e Dilma Roussef-2, o qual recém-começa. Nos demais (e também na média do
período 1980-2015) não valeria a pena utilizar este critério para manter o
crescimento dos gastos federais de saúde.
Portanto, entre o primeiro governo FHC e o
primeiro Governo Dilma Roussef, os dados revelam aumentos nos gastos federais
em saúde acima do crescimento do PIB, mas este esforço poderá se perder com a profunda recessão
que se inicia em 2014, podendo se arrastar por inércia até o fim do
presente governo, caso não sejam tomadas medidas para a retomada do
crescimento, para ordenar as finanças públicas e para priorizar os gastos
públicos nas áreas fundamentais para o país.
Por outro lado, desde o início do Governo
Fernando Henrique Cardoso até o final do primeiro Governo Dilma, a carga
tributária no Brasil tem tido aumentos constantes, criando espaço para que
sejam tomadas decisões políticas relacionadas ao aumento dos gastos.
Durante os dois Governos FHC, o aumento do
patamar da carga tributária era importante como forma de reduzir o deficit
primário, acertar as contas publicas, ajustá-las ao período pós hiper-inflação e
impor um novo padrão de sustentável para o financiamento das políticas sociais,
entre elas educação e saúde, bem como conter e suportar o avalanche dos gastos
previdenciários. Já nos governos Lula e Dilma-1, o aumento da carga trubutária
foi importante para o financiamento de programas sociais de outra natureza (aumento
das rendas não associadas ao trabalho, como os beneficios asistenciais da
previdência e o bolsa-familia, por exemplo), mas também o financiamento de
investimentos “visíveis” no setor saúde, como as UPAS e pequenos hospitais
públicos municipais.
Um documento recente divulgado pela Assessoria
Econômica do Ministerio de Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG)(2), mostra
que a carga tributária federal se elevou de 17% a 22% do PIB entre 1996 e 2002
consolidando-se neste patamar com pequenas oscilações, ao redor de 23% nos anos
que se seguem entre 2005 e 2014. Este
documento explica ainda que este pequeno pulo para 23% se deve ao aumento
das contribuições do FGTS e do sistema S, dado que várias políticas, como o fim
da CPMF, a retração econômica recente e as exonerações fiscais seriam responsáveis por
uma redução da carga tributária federal em até 1%.
De todos os modos, se pode dizer que se
refazemos o gráfico 2 substituindo os dados agregados por ano por dados
agregados por período de Governo, chegamos a uma correlação mais consistente
entre o crescimento do PIB e o crescimento do Gasto Federal em Saúde (grafico 3).
Se pode verificar por este gráfico um R2 DE
0,66, o qual mostra que existe sim alguma correlação positiva entre o crescimento dos
gastos federais de saúde e o crescimento do PIB, mas também que os governos em
épocas de expansão econômica fazem maiores esforços para gastar mais com saúde,
seja de forma atrelada ou não atrelada ao PIB. Assim, o gráfico revela que em
três contextos recessivos, dois passados (Governos Figueiredo e Collor) e um
prospectivo (Governo Dilma-2), reduções no crescimento do PIB poderiam levar a
reduções nos gastos federais de saúde entre 5% e 15%, o que certamente tem
impacto na descontinuidade de programas sociais, ainda que no setor público de
saúde brasileiro sempre existe um imenso espaço para aumentar a eficiência e a
produtividade para aqueles que se empenham em ser bons gestores.
Comentários Finais
A melhor forma de garantir o financiamento
adequado para os gastos em saúde com base em recursos públicos orçamentários é
atrela-los, não a qualquer tipo de imposto ou indicador vinculante, mas sim à
consciência, tanto do executivo como do legislativo, que estes gastos são
prioritários para garantir direitos consitucionais assegurados, com ênfase nas
populações mais carentes: aquelas que tem menos cobertura e equidade para o
acesso e financiamento dos serviços.
Entre 1980 e 2015 os gastos federais em saúde
nunca foram inferiores a 1,1% nem superiores a 1,7% do PIB. Como demonstra o
gráfico 4, os piores momentos ocorreram nos Governos Figueiredo, Collor e
Itamar, quando alcançaram 1,2% do PIB e os melhores no Governo Sarney e nos
Governos Lula e Dilma, quando chegaram a valores superiores a 1,6%.
Paradoxalmente, o perído que sucede à
promulgação da consituição de 1988 foi o pior momento para o financiamento da Saúde no
Brasil. Naquela época, o gasto público caiu de 1,7% em 1989 para quase 1,1% em
1992. Esse baixo patamar de gastos só se recupera no primeiro ano do Governo
FHC-1, que também teve problemas em estabiliza-lo nos anos subsequentes, com as
crises e os ajustes necessários para estabilizar a moeda. A partir de 2008 se
estabelece um processo que, mesmo sem a CPMF, tem permitido ao gasto de saúde
flutuar entre 1,5% e 1,7% do PIB. Mas será isto possível a partir de 2016?
Deve-se considerar também que a Constituição de
1988 e a legislação posterior levaram Estados e Municípios a gastar mais e a
assumir mais responsabilidades em saúde o que, para o bem, é a base de nosso
sistema de saúde descentralizado. Em 2013, os recursos a disposição dos Estados
e Municípios representavam 57%, dos fundos públicos que financiam o setor saúde, de acordo com os dados do SIOPS. É verdade que este
processo aumenta muitas vezes a heterogeneidade interna do acesso e qualidade à saúde ao nivel regional e local, mas cria, por outro lado, muitos
exemplos e casos de sistemas municipais e estaduais bem administrados, que
geram inovações que podem ser vantajosas para outros sistemas de saúde regionais e locais.
Acredito fortemente que o bastão da inovação do
sistema de saúde brasileiro está atualmente nas esferas locais, e o
Ministério da Saúde, com raras e honrosas exceções, se encontra na retaguarda
deste processo. Isto é ainda pior pela falta de prioridades na
utilização dos fundos que ainda dispõe o Ministério da
Saúde para orientar o sistema a ser mais eficiente e inclusivo.
A forma pela qual se organiza a discussão sobre o financiamento da saúde no Brasil, ao nivel federal, não leva em consideração várias questões:
A forma pela qual se organiza a discussão sobre o financiamento da saúde no Brasil, ao nivel federal, não leva em consideração várias questões:
a) que o Ministério de Saúde não tem
sido capaz de executar a totalidade dos recursos que lhe são assignados;
b) que o Ministério da Saúde não tem
capacidade para orientar os gastos federais para as áreas mais prioritárias de
acordo com os dados de cobertura geográfica e sócio-econômica e com o perfil de
necessidades (carga de doença) de saúde do país;
c) que o Ministério da Saúde utiliza
parte de seu orçamento como moeda de troca de favores políticos regionais, o
que reduz sua capacidade de ser resolutivo na distribuição e alocação de seu
orçamento ao nivel dos estados e municípios e de fazer uma boa e justa composição no uso dos
recursos próprios destas esferas com os seus, que permita uma verdadeira distribuição
equitativa dos recursos;
d) que o Ministério da Saúde não tem
capacidade de fazer discussões técnicas com o Congresso para que as
emendas parlamentares de saúde sejam um insrumento sério de atendimento a
prioridades do setor;
e) que o Ministério da Saúde não tem
estabelecido mecanismos de assistência técnica adequados e coerentes que possam
capacitar gestores locais e aumentar as competências para uma gestão eficiente
dos recursos. A proposta, ainda que equivocada mas bem intencionada, de criar o
IDSUS e adotá-lo como critério para fazer um ranking de bons governos em saúde e discutir prioridades de gestão, através de indicadores, morreu na praia;
f) que o Ministério da Saúde não tem
chegado a um bom termo de entendimento e negociação com outros setores – a
saúde suplementar, os prestadores privados e filantrópicos e os hospitais
universitários – para integrar as redes de prestadores público e privadas e
coloca-las a serviço da população mais necessitada, com mecanismos de
financiamento que sejam adequados e coordenados a través de redes de gestão,
enfatizando mais seu papel regulador, gestor, fiscalizador e monitorador de
resultados do que seu papel prestador, que o transforma – a ele e ao setor
público – em cúmplice de sua própria ineficiência;
Por estes motivos, não se poderá simplesmente aumentar os recursos a disposição do
Ministério da Saúde. Antes, durante e depois, o Ministério tem que liderar, consolidar e acompanhar um plano claro e visivel para resolver os problemas levantados acima, com uma discussão
aberta e uma ampla pactuação social com todos os setores que produzem,
consomem, financiam e trabalham pela saúde dos brasileiros.
Os atuais mecanismos de participação social que embasaram as discussões iniciais do SUS foram lindos, mas estão claramente ultrapassados. É necessário incorporar outros atores, ajudando aqueles mais deficientes a identificar seus próprios desafios e manifestar sua voz.
Os atuais mecanismos de participação social que embasaram as discussões iniciais do SUS foram lindos, mas estão claramente ultrapassados. É necessário incorporar outros atores, ajudando aqueles mais deficientes a identificar seus próprios desafios e manifestar sua voz.
Momentos de crise e de ajuste são bons momentos
para repensar instituições. O Ministério da Saúde é certamente uma das
instituições que deveria estar no rol das que tem que ser repensadas,
racionalizadas e modernizadas.
NOTAS
(1) As
fontes de dados deste artigo foram, para o crescimento do PIB – dados do Banco
Central – séries históricas. Para gastos federais com saúde se utilizarm fontes
diversas que foram harmonizadas para uma base de dados em reais constantes de
dezembro de 2014. As principais instituições que produziram estes dados fora
IESP-FUNDAP (1980-1992), MPOG, Execução Orçamentaria, Diversos Anos e SIOPS –
Ministerio da Saúde, para dados relacionados a Estados e Municípios. Criterio
utilizado ASPS – Ações e Serviços Públicos de Saúde.
(2)
BRASIL, Ministério de Planejamento,
Orçamento e Gestão, Evolução
Recente da Carga Tributária Federal, Ed. MPOG, Brasília, 11 de Novembro
de 2015.