Ano 18, Número 138, Novembro de 2023
André Cezar Medici
Introdução
Javier Milei foi eleito no dia 19 de novembro
de 2023 para governar a Argentina. Um candidato antissistema (como pensavam que
fosse Bolsonaro no Brasil) que se autodeclara anarco-capitalista e ultraliberal.
Pessoas inexperientes se impressionam com novos rótulos, mas aqueles que têm
pele mais grossa, sabem que a realidade é o maior moldador de governos e
posições concretas na política. Nesse sentido, as promessas de Milei terão que
passar por um crivo de realidade e os primeiros 100 dias é que deverão dar a dimensão
de como seu governo poderá caminhar.
Ao longo de sua campanha, Milei proclamou
algumas promessas para o setor saúde, muitas delas vinculada a ideais teóricos
do liberalismo – como o uso de vouchers para a compra de planos de saúde - mas
que, de fato, pouco foram praticadas. Os temas da economia dominaram a
caminhada eleitoral do recém-eleito presidente, com promessas que tem muito a
ver com o imaginário do povo argentino: dolarização, privatização de empresas
públicas, liberdade econômica, corte nos gastos públicos, redução do tamanho do
governo e da carga tributária – todos temas que, mesmo desejáveis, são difíceis
de realizar em função da destruição prévia da economia argentina realizada depois
de duas décadas de extremo endividamento interno e externo, inflação elevada,
desemprego, corrupção, populismo e impunidade, que vicejaram ao longo dos
governos Kirschner-Fernández.
Para executar esta controvertida agenda, Milei
contará com o apoio de diversos expoentes de gestões passadas, como Carlos Rodríguez
(ex-secretário de política econômica de Menen), Roque Fernández (ex-Ministro da
Economia de Menen e ex-Presidente do Banco Central), Dario Epstein
(ex-presidente da Comissão Nacional de Valores), Emilio Ocampo (economista e
professor universitário que escreveu um livro sobre como unificar o câmbio), Mariano
Flores Vidal e Federico Sturzenegger (ex-gerente geral e ex-presidente do Banco
Central, respectivamente), além de outros. As escolhas deverão ser difíceis de
realizar, e a equipe econômica, mesmo experiente e preparada, terá que cortar
um dobrado para conseguir passar medidas impopulares com um Congresso que, em
sua maioria, não garante fácil governabilidade e se beneficia da repartição do
orçamento público para vender seu apoio político, como ocorre com outros países
vizinhos praticantes de políticas similares.
As promessas para a saúde
Algumas propostas que afetam o setor saúde ficaram
claras desde o início da campanha. A primeira é a redução do número de Ministérios do
Governo Federal - dos atuais 18 para 8. O atual Ministério da Saúde se fundirá com o
de Educação e com o de Desenvolvimento Social, passando a se chamar de Ministério
de Capital Humano. O novo Ministério trabalhará com políticas transversais
aos três setores, o que garantiria maior coordenação e transparência e evitaria
sobreposição ou duplicação da ação entre estas três áreas. Mas ao mesmo tempo
sofrerá um forte corte de gastos e terá que ser seletivo na parte do orçamento
que caberá à saúde. Sobre este ponto, Milei argumenta que a redução do
tamanho do Estado e dos gastos não implicaria em redução da qualidade e
quantidade de serviços de saúde oferecidos pela população, nem na redução da
quantidade e da disponibilidade de pessoal qualificado em saúde. Será isso
possível?
O segundo tema foi o da privatização dos
setores sociais. No início de sua campanha, Milei defendeu a privatização,
afirmando que o melhor sistema de saúde é o privado. Mas após as eleições, lembrou
que o funcionamento do país é federal, e que o governo de cada província
(correspondente aos estados brasileiros) é quem tem a palavra final sobre como
estes serviços serão desenvolvidos no seu território. Pare ele, “...nem educação
nem saúde podem ser privatizadas porque estão ao nível provincial[1]”.
Ao ser questionado se usuária vouchers para subsidiar os pobres na
compra de educação ou seguros de saúde, respondeu que “... sempre é melhor
financiar a procura e não a oferta. Mas estamos falando de coisas que não
poderão ser implementadas no curto prazo”[2].
Considerando as principais promessas de Milei
para o setor saúde ao longo de sua campanha[3],
apesar de não encontrar nenhum aprofundamento programático delas, busquei classificá-las
de forma tentativa e com a minha visão de quem não vive no país, nos seguintes
blocos: (a) Propostas financeiras e operacionais; (b) Propostas racionalizadoras;
(c) Propostas de fortalecimento institucional; (d) Propostas de melhoria ou
ampliação do acesso; (e) Propostas associadas à temas de imigração e saúde. Adicionalmente
foram formuladas no contexto da saúde (talvez por conta das propostas de fusão
de ministérios) um bloco que propostas de inserção produtiva e comunitária, as
quais serão mencionadas, embora não tenham correlação direta com temas de
saúde.
As “propostas financeiras e operacionais” são aquelas mais diretamente associadas à relação entre os setores público e privado e ao ressarcimento de recursos e funcionamento dos estabelecimentos de saúde, e incluem:
Passar dos atuais mecanismos de subsidiar a oferta, para subsídios à demanda de forma que cada argentino tenha liberdade de escolher onde quer ser atendido sem ter que preocupar-se com o custo
Fortalecer e dar assistência às províncias para que desenvolvam seguros de saúde provinciais para a população não detentora de seguros de saúde e dependente da assistência pública;
Criar seguros de saúde universais que cubram gastos catastróficos, mas também cuidados preventivos e procedimentos emergenciais proporcionais à capacidade de pagamento do destinatário do serviço;
Acabar com a afiliação cativa de segurados das obras sociais (nacionais, PAMI e provinciais) para que haja livre eleição para todas as entidades que oferecem seguros de saúde;
Descentralizar os encaminhamentos hospitalares, tarifar todos os benefícios e autogerir o serviço de saúde em empregos compartilhados com a saúde privada;
Incorporar centros médicos especializados em patologias congênitas e apoiá-los com investimentos privados;
Receber doação de insumos para o setor a ser promovida junto a empresas privadas;
Promover leis que permitam que tanto o profissional quanto o paciente cheguem a acordos sobre os honorários a serem pagos. Os círculos médicos continuarão com as suas tarifas habituais, exceto conforme indicado acima.
As “propostas racionalizadoras” são as que buscam melhorar a estrutura e funcionamento do setor, racionalizando gastos e evitando desperdícios dos recursos. Estas propostas, de acordo com o encontrado na imprensa, incluem:
Otimizar os recursos gastos pelo Estado no setor saúde, tornando eficientes todas as estruturas assistenciais e de organização da função saúde;
Realizar uma análise exaustiva da estrutura orgânica funcional da pasta que cuidará da área de saúde com os demais ministérios para eliminar duplicidades e vazios na atribuição de funções e tarefas;
Reformar o atual Ministério da Saúde no que se refere à organização, programas e institutos, com a finalidade de alcançar a máxima eficiência de suas funções;
Promover a descentralização das funções de saúde para as províncias;
Implementar soluções tecnológicas como telemedicina e prescrição eletrônica, estabelecendo protocolos, a fim de otimizar recursos e prestar melhor atendimento à população.
As “propostas de fortalecimento institucional” são aquelas relacionadas a melhoria dos recursos humanos, infraestrutura e condições de funcionamento de instituições e estabelecimentos públicos de saúde, e incluem:
Proporcionar segurança ao pessoal de saúde;
Melhorar a estrutura dos edifícios hospitalares;
Fazer com que os hospitais públicos sejam responsáveis pelos recursos sob sua gestão;
Auditar o acervo do PAMI (a obra social que toma conta dos aposentados do setor formal do mercado de trabalho) e proceder à recategorização dos profissionais;
Para o PAMI propõe-se: (a) que cumpra os benefícios de saúde que os seus associados necessitam; (b) rastreabilidade na compra e utilização de insumos; (c) auditoria do processo de entrada e saída de recursos; (d) categorização dos seus profissionais; (e) que os profissionais de saúde comprovem que são diplomados em suas especialidades;
Fazer com que a ocupação dos cargos públicos na área da saúde seja realizada por mérito curricular, sendo aberta em todos os níveis a concursos públicos a cada cinco anos;
Revisar o regulamento do sistema de residência médica.
As propostas de “melhoria e ampliação do acesso”, são as que versam sobre a incorporação ou modificação de proteções atualmente existentes, com ênfase em maiores benefícios para as populações vulneráveis (crianças, idosos, doentes mentais).
Proteger a criança desde a concepção e o idoso até a morte natural;
Modificar a Lei de Saúde Mental;
Capacitar profissionais de saúde no controle de crianças saudáveis (crescimento e desenvolvimento) para investigar abuso infantil;
Desenvolver e promover programas de prevenção, assistência, controle e monitoramento de pacientes com deficiência de acordo com a patologia;
Desenvolver programas de prevenção de tratamento para transtornos intelectuais, de dependência química e de personalidade;
As propostas relacionadas com os temas de “imigração e saúde” buscam regulamentar e restringir a entrada de profissionais de saúde estrangeiros no mercado argentino e cobrar pelo atendimento médico a estrangeiros que estejam na Argentina, exigindo, inclusive, seguros de saúde para cobrir despesas catastróficas.
Será regulamentada a documentação de estrangeiros que exerçam atividades relacionadas à área da saúde no território argentino;
Serão controlados os registros, títulos e demais documentações de estrangeiros que desejam exercer a medicina em território argentino, priorizando a mão de obra daqueles que se formaram nas universidades nacionais, como acontece no resto do mundo;
Os residentes estrangeiros que demonstrarem disponibilidade financeira deverão arcar com suas despesas;
Na entrada de turistas estrangeiros em território argentino exigir que tenham seguro saúde com cobertura de até US$ 30 mil, em regime de reciprocidade.
Por fim, as propostas associadas a inserção produtiva e comunitária, estão vinculadas aos seguintes pontos:
Redefinir políticas sociais, alocando recursos e estratégias para consolidar a família, a infância, a adolescência e a velhice, através de programas comerciais, de novas tecnologias e de projetos comunitários sustentáveis;
Criar atividades produtivas em todos os serviços penais e correcionais;
Protocolar a concessão e rastreabilidade e continuidade dos planos de proteção social ao longo do tempo como ferramenta de ajuda a quem necessita, a fim de aconselhá-los e orientá-los na obtenção, com sucesso, de empregos privados de acordo com suas habilidades e formação.
Falta
de diagnóstico e inconsistência das propostas do novo governo para saúde
À primeira vista, este conjunto de propostas não tem nenhuma estrutura organizativa nem um diagnóstico de base. É como se a campanha do candidato vencedor tivesse coletado aleatoriamente princípios liberais de organização da saúde, reclamações da população, impressões de participantes do grupo do candidato e as apresentasse sem uma ordem, coerência ou diagnóstico prévio. Pode ser que, após a vitória, e antes que se esgotem os 100 dias, o governo saia com algo mais estruturado, mas nada deveria ser feito sem um diagnóstico claro dos principais problemas na estrutura do sistema e na oferta de serviços de saúde do país.
É certo que a deterioração das condições econômicas tem sido um dos principais inimigos na solução dos problemas de saúde. Inflação e instabilidade econômica, tem impactado, e poderão continuar a influenciar negativamente na capacidade do sistema de saúde de funcionar efetivamente, trazendo restrições orçamentárias que poderão limitar os investimentos em infraestrutura e serviços de saúde.
No entanto, o país contou, nos últimos vinte anos, com programas internacionais elaborados pelo Banco Mundial e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que fortaleceram várias políticas de saúde do país e alcançaram importantes conquistas sanitárias – desde o Programa REMEDIAR, que permitiu resolver boa parte dos problemas de acesso a medicamentos básicos a custos moderados para a população, até programas de promoção, prevenção, atenção primária e atenção materno-infantil, como o Programa SUMAR (mais de 20 milhões de beneficiários com cobertura pública exclusiva) e o Programa dos 1000 dias, destinado a implementar a Lei de Cobertura Integral da Gravidez à Primeira Infância. Com isso, as taxas de mortalidade infantil se reduziram de 12,1 para 6,1 por 1000 nascidos vivos entre 2011 e 2021, fazendo com o que o país se mantenha com um dos melhores indicadores na América Latina.
Durante a pandemia do Covid-19 (até novembro de 2023), a Argentina ocupou o número 87 no ranking de casos por habitante; o número 29 no ranking de mortes por habitante e a 112a. posição, em termos de testes de Covid-19 por habitante, em um conjunto de 229 países e territórios mundiais[4]. Ainda que estes resultados sejam sofríveis no contexto mundial, pode-se dizer 100% dos habitantes foram vacinados com a primeira dose e 88% com a segunda dose da vacina contra o virus da Covid-19, o que coloca o país numa boa situação no ranking de vacinação pandêmica. É possível que o número elevado de mortes tenha sido desfavorecido por uma demografia mais envelhecida.
O período da pandemia trouxe alguns outros problemas, tais como aumentos excessivos nas taxas de mortalidade materna – que passaram de 33 para 45 por 100.000 nascidos vivos entre 2019 e 2020, recuperando os níveis existentes em 2012[5]. O número de cirurgias eletivas canceladas ou não atendidas alcançou níveis muito elevados, com efeitos no aumento da mortalidade por doenças crônicas no país. Vários analistas indicam que houve uma piora da atenção a saúde no pós-pandemia o que foi agravado pela crise econômica do país.
Diante desta situação, o novo governo deveria ter, como mínimo, um diagnóstico bem elaborado do sistema de saúde argentino para elencar quais são aos prioridades do país. Não precisaria ir muito longe para obter este diagnóstico, já que o próprio Ministério da Saúde[6] e organismos internacionais como a Organização Pan Americana da Saúde (OPAS)[7] tem realizado estes diagnósticos recentemente, mas haveria que completar com o detalhamento das causas dos problemas para formular um programa que fosse coerente, e não uma colcha de retalhos, composta por propostas desconexas, sem uma espinha dorsal que lhe desse lógica e coerência.
Especialistas em saúde e ciências sociais, como Aldo Isuani e Carlos Vassallo, em artigo recente publicado no jornal “La Nación”[8], consideram que:
“El sistema de salud argentino es fragmentario, irracional, segmentado y acéfalo. Fragmentario porque los tres subsistemas que lo componen (público, obras sociales y privado) no están articulados ni entre ellos ni en el interior de cada uno. Irracional porque destina una enorme cantidad de recursos a curar la enfermedad y casi nada a prevenirla. Segmentado porque cada subsistema atiende fundamentalmente a diferentes sectores sociales (el privado, a los más adinerados; las obras sociales, a los no tan pobres, y el público, a los más pobres). Acéfalo porque el Ministerio de Salud nacional administra una insignificante proporción del gasto en salud y no ejerce liderazgo ni siquiera en el interior del sector público donde las provincias son las responsables principales de la atención médica. En pocas palabras, es un no sistema”.
Um
conjunto consistente de opiniões de diversos segmentos da sociedade argentina,
considera que existe uma série de questões que deveriam ser enfrentadas, caso o
novo governo argentino queira montar um diagnóstico e um plano coerente para enfrentar
os principais problemas de saúde do país, cabendo destacar:
Gestão e Coordenação: Como afirmaram Isuani e Vassallo, o sistema de saúde argentino é um não sistema, não apenas por sua fragmentação, mas principalmente pela falta de coordenação entre as partes do sistema. Há inexistência de mecanismos de reitoria e coordenação e falta capacidade, seja do governo nacional, seja dos governos provinciais, para coordenar e estabelecer mecanismos que evitem duplicidade e falta de cobertura. A desconexão entre as partes do sistema é um dos grandes gargalos e deveria ser a principal prioridade do novo governo.
Acesso desigual: Dada a excessiva fragmentação do sistema de saúde, a população enfrenta desafios no acesso equitativo aos serviços de saúde, especialmente em épocas de crise. Grupos vulneráveis, como aqueles com baixo status socioeconômico, podem ter dificuldade em obter cuidados de saúde oportunos e de qualidade, especialmente pela redução dos recursos públicos que prejudica a capacidade de atendimento da população aos serviços.
Desigualdades regionais: Existem disparidades significativas entre províncias e entre áreas urbanas e rurais em termos de acesso a serviços de saúde. Algumas regiões podem enfrentar escassez de profissionais de saúde, instalações inadequadas e acesso limitado a medicamentos essenciais, na medida em que os programas federais de promoção da equidade começam a ter recursos mais escassos.
Cobertura do seguro saúde: Embora exista uma mistura de serviços de saúde públicos e privados, pode haver desafios em relação à cobertura do seguro saúde, deixando algumas pessoas sem acesso adequado aos cuidados de saúde. De acordo com o Censo Demográfico realizado pelo INDEC em 2021, a cobertura de saúde da população argentina se distribuía da seguinte forma: 36% (16,5 milhões) através do sistema público, 61% (28 milhões) através do seguro social, conhecido como sistema de obras sociais, e 14% (6,2 milhões) através do sistema privado. Isto daria uma cobertura de 111%, dado que uma parte considerável da população detém mais de uma cobertura. No entanto, é possível que na prática, muitas pessoas, ainda que estejam inscritas em algum sistema, não desfrutem de cobertura real, pela distância dos serviços, pela baixa capacidade deles, ou pela incapacidade da população em pagar por estes serviços.
Financiamento Insuficiente: O sistema de saúde argentino tem enfrentado desafios relacionados ao financiamento. A falta de recursos pode impactar a capacidade do sistema de fornecer serviços de saúde de qualidade, adquirir equipamentos médicos modernos e manter infraestrutura adequada. Apesar de gastar quase 10% de seu PIB com saúde, o gasto per-capita em saúde no país caiu de cerca de US$1500 em 2017 para menos de US$900 em 2020, como demonstra o gráfico abaixo.
Gráfico 1: Evolução do Financiamento Público da Saúde na Argentina: 2000-2020
Fonte: Statista, a partir de OMS, Contas de Saúde
Escassez seletiva de profissionais de saúde: Há relatos de escassez de profissionais de saúde, incluindo médicos e enfermeiros. Isso pode levar a tempos de espera mais longos e afetar a qualidade geral do atendimento médico. Em 2016, a cidade de Buenos Aires contava com 14 médicos por 1000 habitantes e a Provincia de Córdoba com 4,3, enquanto outras províncias, como a de Misiones contavam com menos de 2 médicos por 1000 habitantes.
Infraestrutura e equipamentos desatualizados: A infraestrutura de saúde em algumas áreas pode ser desatualizada, com instalações e equipamentos médicos que precisam de modernização. Isso pode afetar a capacidade do sistema de fornecer serviços de saúde eficazes.
Precariedade do sistema de informação em saúde: O sistema de informação em saúde precisa de melhorias para garantir uma gestão eficiente de registros de pacientes, análise de dados e coordenação eficaz entre diferentes partes do sistema de saúde.
Limitada estratégia de prevenção de doenças e promoção da saúde: Estratégias eficazes de prevenção de doenças e promoção da saúde precisam ser melhoradas no país, para que haja uma redução da carga de doenças no sistema, especialmente das doenças crônicas que tem um elevado peso na mortalidade e morbidade da população.
A
política de vouchers e do mercado de seguros de saúde
Milei apresentou como sua principal proposta de saúde, o fortalecimento do papel do mercado através de incentivos e subsídios a livre-escolha de planos de saúde e de
instituições de saúde pelos indivíduos, bem como a compra dos serviços
públicos ou privados de saúde pelos seguros. Para tal, sua principal proposta é o uso de vouchers para a compra de
planos de saúde pelas famílias, a partir da eliminação da vinculação cativa de
cada indivíduo a uma obra social.
O uso de vouchers ou subsídios para a compra de planos de saúde é uma abordagem antiga, que tem sido explorada em alguns lugares como forma de aumentar o acesso aos serviços de saúde privados, ao mesmo tempo em que busca maior eficiência e a participação do setor privado. O economista Milton Friedman foi um dos primeiros defensores da ideia de vouchers, inicialmente no setor educação. Em seu ensaio de 1955 intitulado "The Role of Government in Education", Friedman propôs a ideia de vouchers educacionais como uma forma de permitir que os pais escolhessem escolas privadas para seus filhos. A ideia básica era que os vouchers permitiriam que o financiamento educacional do governo fosse direcionado pelos pais para a escola de sua escolha, introduzindo assim elementos de mercado na educação.
A ideia foi, posteriormente, estendida para o setor de saúde em um artigo de 1962, escrito por Friedman e Theodore Schultz, os quais argumentaram a favor de vouchers na área de saúde, sugerindo que os consumidores poderiam escolher entre diferentes provedores de serviços de saúde incluindo hospitais e médicos, utilizando vouchers subsidiados pelo governo. Essas propostas baseavam-se na crença de que a introdução de escolhas de mercado poderia aumentar a eficiência, estimular a concorrência e melhorar a qualidade dos serviços em setores como educação e saúde.
A partir dessas propostas teóricas, algumas experiências de implementação de programas de vouchers ocorreram em diferentes países ao redor do mundo, tanto na educação quanto na saúde[9]. Uma proposta detalhada de como realizar programas de voucher para universalizar e aumentar a equidade foi realizada por mim, Francisco de Oliveira e Kaizô Beltrão, num texto que publicamos pelo IPEA nos anos noventa[10]
A implementação e os resultados do uso de vouchers para a compra de planos de saúde na Argentina irão depender do cumprimento das seguintes características:
Acesso ao Setor Privado: Ao fornecer vouchers para a compra de planos de saúde privados, os governos buscam aumentar o acesso aos serviços de saúde privados, em substituição, mas também, em muitos casos, como complemento aos serviços oferecidos pelo setor público;
Escolha do Consumidor: A escolha dos consumidores permitiria a competição de diferentes planos de saúde (públicos ou privados) para atender às suas necessidades específicas, mas é necessário que a oferta também exista, o que sempre será difícil em regiões rurais e províncias mais distantes.
Equidade e Acesso Universal: A introdução de vouchers pode ser vista como uma tentativa de promover a equidade no acesso universal aos cuidados de saúde, garantindo que mesmo aqueles com recursos financeiros limitados possam acessar serviços de saúde de qualidade. No entanto, investimentos seriam necessários, bem como uma análise econômico-financeira da viabilidade da proposta e uma estrutura administrativa que se possa acompanhar os custos dos planos de saúde públicos e privados.
Custos e Eficiência: Os vouchers podem ser projetados para controlar os custos, fornecendo um subsídio fixo ou uma porcentagem do custo do plano de saúde. Isso pode incentivar a eficiência no setor privado e ajudar a controlar os gastos públicos.
Desafios Potenciais: A implementação de programas de vouchers para planos de saúde pode enfrentar desafios, como garantir que o subsídio seja suficiente para cobrir os custos reais dos planos e evitar o aumento dos custos à medida que as empresas de seguros ajustam os preços em resposta aos subsídios.
Monitoramento e Avaliação: É crucial implementar sistemas eficazes de monitoramento e avaliação para garantir que os vouchers atinjam seus objetivos de melhorar o acesso, a qualidade e a equidade nos serviços de saúde. Isso deveria ser uma parte minuciosa do plano e sua implementação exigiria um nível técnico de alto conhecimento e qualidade, bem como um grande compromisso com a fiscalização e a transparência.
A Preparação das Obras Sociais: Seria importante saber se, como seguros públicos, as Obras Sociais (e mesmo os seguros privados argentinos, que não são compulsórios, mas sim voluntários) estariam preparados para atuar em um mercado com níveis diferenciados de regulação como aqueles que seriam exigidos pela implantação de um sistema de vouchers e de mecanismos para a livre escolha de planos de saúde pelos cidadãos argentinos.
A implantação de vouchers para a saúde dependerá da criação de condições adequadas de funcionamento
de um mercado aberto de seguros de saúde que garanta à população maior acesso e
equidade, seja através de preços justos dos prêmios de seguro,
seja através de subsídios públicos, para substituir ou, eventualmente, complementar
os papéis do setor público e da seguridade social (Obras Sociais) em uma oferta
coordenada, integrada e complementar de serviços de saúde para a população e especialmente para os mais necessitados. Mas esses detalhes ainda estão muito longe de
definição e costumam demorar muito tempo para serem implantados, dado que
poderão exigir mudanças amplas na legislação de saúde do país que dependerão de
ações especiais dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Outra forte restrição é que o mercado de provedores privados de serviços de saúde (hospitais privados, laboratórios, ambulatórios e serviços médicos) na Argentina se encontra em um forte processo de deterioração, não tendo incorporado as perdas decorridas da inflação médica, dos aumentos dos salários dos profissionais e dos preços dos insumos de saúde[11].
Também deve-se mencionar que, diferentemente do que parece pensar Milei, a implantação de um sistema de voucher poderá exigir um papel muito mais forte na regulação, fiscalização, controle e garantia para que este mercado funcione adequadamente cumprindo os preceitos de racionalidade, equidade, acesso universal, sustentabilidade e negociação entre os atores envolvidos. Nesse sentido, se o atual Ministério da Saúde é acéfalo, conforme as palavras de Isuani e Vassalo, a proposta de Milei exigirá um Ministério da Saúde Nacional e Ministérios Provinciais muito mais preparados do que hoje se encontram.
[1]
Conforme materia publicada no jornal Diario San Juan, no día 20 de novembro de
2021, Link: https://www.canal13sanjuan.com/el-pais/2023/11/20/milei-hablo-de-sus-intenciones-con-educacion-salud-dejaran-de-ser-publicas-216935.html.
[2] Ídem,
ibidem.
[3] Publicadas
no Jornal Via País, de 16 de agosto de 2023, link: https://viapais.com.ar/politica/que-plantea-javier-milei-sobre-capital-humano-educacion-y-salud-fusion-de-ministerios-salud-privada-y-vouchers-para-la-ensenanza/
[4] Ver o site Worldometer. Dados
coletados em 21 de novembro de 2023.
[6] Ministerio de Salud y Desarrollo Social
(2018), “Análisis de Situación de Salud de Argentina”, Link: https://bancos.salud.gob.ar/sites/default/files/2019-12/0000001392cnt-anlisis_de_situacin_de_salud_-_repblica_argentina_-_asis_2018_compressed.pdf.
Este informe foi produzido ainda no Governo Macri.
[7] OPAS (2022), “Argentina: Perfil de
País”, Link: https://hia.paho.org/es/paises-2022/perfil-argentina
[8] Isuani, A. Vassallo, C. (2021), “Lecciones sobre el sistema de salud”, La Nación, 3 de agosto de 2021, link: https://www.lanacion.com.ar/opinion/lecciones-sobre-el-sistema-de-salud-nid03082021/
[9] Entre elas, vale destacar a experiencia
da Holanda, que instituiu um sistema de seguro de saúde obrigatório, onde os
cidadãos podem escolher entre diferentes seguradoras privadas e o governo
fornece subsídios para ajudar a cobrir os custos do seguro de saúde, tornando-o
mais acessível para a população de renda mais baixa. A Austrália também criou, em
paralelo ao seu poderoso sistema público, a possibilidade de os cidadãos optarem
por adquirir seguros de saúde privados para cobrir despesas adicionais, oferecendo
subsídios e incentivos fiscais para encorajar a participação no sistema de
seguro de saúde privado. O governo suíço também fornece subsídios para ajudar a
cobrir os custos dos prêmios dos seguros de saúde, especialmente para aqueles
com renda mais baixa.
[10] Medici, A., Oliveira, F. e Beltrão,
K., (1993), “Universalização com Qualidade: Uma proposta de reorganização do
sistema de saúde no Brasil”, Ed. IPEA, Textos para Discussão No. 316, Outubro
de 1993, Rio de Janeiro (RJ), Link: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/2646/1/td_0316.pdf
[11] Ver a esse respeito a publicação
ADECRA+CEDIM, “La crisis
de los prestadores médicos privados en Argentina”, Estudio Económico #18, Link: https://biblioteca.adecra.org.ar/informe-18-la-crisis-de-los-prestadores-medicos-privados-en-argentina-diciembre-2021/