Prezados amigos,
Nesta postagem publico a íntegra da entrevista que dei à Jornalista Luciana Casemiro do Jornal "O Globo", onde alguns trechos foram publicados em matéria do referido jornal no dia 18 de outubro último, intitulada "Empresas Querem Vender Planos de Saúde em Módulos".
Luciana
Casemiro (LC) - Como você vê a proposta de modulação de
produtos das operadoras de saúde brasileira? A proposta em debate prevê, por
exemplo, que se possa contratar um módulo só consultas, um de exames
em separado, terapias (como tratamento de câncer) e hospital, onde ficariam as
emergência. Ou seja, quem tem plano só de consulta, vai ter que pagar os
exames, quem tem um produto conjugado de consultas e exames, mas não terapia e
descobriu um câncer, vai para o SUS se tratar. E em todos esses casos, quem não
contratou o pacote de hospital, se quebrar um braço, vai para o hospital
público, pois só quem contrata hospital tem direito à emergência.
Andre Medici
(AM) – O aumento
dos custos assistenciais tem sido um dos fatores que impede a maioria da
população brasileira que deseja ter um plano de saúde de conseguir alcançar
seus objetivos. Parte da questão do aumento dos custos assistenciais está
associado a uma certa rigidez nos aspectos regulatórios e creio que existe um
consenso entre muitos atores sobre a necessidade de flexibilizar a regulação
para que se possa oferecer planos assistenciais mais acessíveis aos
consumidores. A regulação atual da ANS já prevê alguns tipos de segmentação
(modulação) entre planos ambulatoriais e planos hospitalares (com e sem obstetrícia),
ou planos odontológicos, mas as coberturas de cada uma dessas
modalidades ainda são muito amplas não permitindo uma maior flexibilização dos
preços e uma ampliação do espectro de cobertura de acordo com as necessidades
da população.
Creio que a proposta das operadoras ainda deverá
detalhar como ocorrerá esta modulação, mas entendo que o objetivo é ampliar a
oferta de opções que sejam acessíveis de acordo com as necessidades das
famílias, oferecendo desde planos
ambulatoriais para a cobertura de consultas e exames combinados até opções para
terapias específicas. Mas isso só poderá ser feito se for preservada a mesma
cobertura prevista no atual arcabouço regulatório. Fazendo uma analogia, optar
por um plano de saúde é como optar por um carro, e não por um conjunto de
auto-peças. Mas existem diferentes modelos de carros de acordo com as
necessidades e capacidade de pagamento das famílias. Alguns necessitam de
utilitários e outros de transporte urbano de fácil acomodação nas vagas
públicas. O importante é que a finalidade do carro, que é transportar a
família, assim como a finalidade do plano, que é proteger a necessidade de
saúde da família de forma coerente com suas necessidades, fiquem preservadas.
LC - Há algum paralelo a essa proposta em
outros países que o senhor conheça?
AM – Uma das questões mais discutidas no
universo da assistência médica, e incluída nos princípios do
valued-based-healthcare (VBHC), é a colocação do paciente como centro do
sistema de saúde. Nesse particular o uso de ferramentas que permitam a
segmentação de populações de acordo com suas necessidades tem sido uma das
abordagens prioritárias para focalizar a atenção à saúde nos pacientes como
centro do sistema[1]. Assim, um conjunto de segmentos populacionais
deve ser meticulosamente definido com base em evidências de risco atuarial e de
risco ao paciente e o sistema de assistência médica terá que oferecer uma gama
sensata de serviços integrados para cada segmento e disponibilizar esses
serviços em quase todos os lugares.
Nos Estados Unidos – o país onde a oferta de serviços
de saúde é baseada em planos individuais, de empresa, ou coletivos – a
segmentação sempre esteve na base do desenho de planos de saúde. A Kaiser
Permanent, por exemplo, desenha os planos de saúde de acordo com as
necessidades de cada indivíduo para adequar o valor do prêmio e a oferta
assistencial às necessidades fundamentais do paciente. Existem planos de saúde
nos Estados Unidos que cobrem somente a compra de medicamentos (Pharmacy Benefit Managed Plans) e outros
cuja a a segmentação é dada pelo valor dos dedutíveis (valor teto a ser pago
pelo beneficiário). Com o Affordable Care
Act (Plano Obama) e a obrigatoriedade de ter um plano de saúde (derrubado
posteriormente pelo Governo Trump) a segmentação de planos aumentou ainda mais
para que se possa oferecer planos mais baratos de acordo com as necessidades
dos grupos de mais baixa renda. Mas o segredo está no desenho destes planos
como forma de garantir que outros serviços não cobertos pelo plano estarão
cobertos caso o indivíduo tenha necessidade de acesso a esses serviços.
LC - Qual é o risco para os consumidores?
AM – Um dos grandes riscos em
segmentar-modular os planos de saúde é a falta de uma maior integração entre os
sistemas públicos (SUS) e a saúde suplementar. Em países como o Canadá, onde
existem planos de saúde complementares à oferta pública para um segmento
expressivo da população, essa integração existe e funciona perfeitamente,
facilitando o traslado do paciente da atenção pública para a do plano e
vice-versa. No Brasil, a saúde suplementar e o sistema público funcionam como
compartimentos estanques. Se uma pessoa que tem um plano necessita ter acesso
ao SUS, não se sabe se vai conseguir na sequência imediata de suas necessidades
e, caso consiga, terá que fazer novamente todos os exames que já foram feitos
na saúde suplementar porque a interoperabilidade dos dados entre os dois
sistemas não existe. Isso aumenta o risco para os pacientes e os custos gerais
do sistema.
Os eventuais riscos da modulação-segmentação de planos
de saúde podem ser minimizados pela forma pela qual o plano de benefícios
modulado-segmentado é desenhado e também pela avaliação da cobertura do
indivíduo em outras áreas não cobertas pelo plano. Por exemplo, em determinadas
cidades do país onde a oferta é boa para a atenção primária e saúde da família,
faz sentido que os indivíduos tenham somente planos hospitalares, mas para
isso, os protocolos de referência entre os planos hospitalares e a rede pública
de atenção primária tem que funcionar perfeitamente.
LC - Os
planos dizem que essa mudança pode desonerar o SUS, o senhor tb avalia dessa
forma?
AM – Sim. A crise econômica iniciada em 2014
levou a uma perda de 3 milhões de pessoas do sistema de saúde suplementar pela
impossibilidade de pagar planos individuais. As próprias operadoras tem inibido
a oferta de planos individuais pelo aumento dos preços e pelos riscos trazidos
pelo marco regulatório dos planos individuais. Estas pessoas passaram a ter que
utilizar o SUS em atividades que poderiam estar sendo cobertas pela saúde
suplementar caso os custos destes planos fossem menores e seu desenho adequado
às necessidades específicas de cada familia.
Entendo que a segmentação dos planos de saúde, se
colocada em prática de forma bem desenhada e coerente, poderia fazer com que
uma parte deste universo (e das pessoas que não tem planos de saúde individual -
um dos principais objetos de desejo das famílias) voltasse para a saúde suplementar,
fazendo com que o SUS pudesse se concentrar nas pessoas realmente carentes e
que estão fora de acesso a um sistema público de boa qualidade.
LC - Que tipo
de interseção deve haver entre SUS e saúde suplementar?
AM – No longo prazo, creio que o SUS deveria
estar estruturado em redes que pudessem oferecer planos de saúde para a
população com a mesma qualidade e cobertura da saúde suplementar. E, por outro
lado, o SUS deveria utilizar seus recursos para subsidiar planos de saúde
oferecidos pelo setor público ou pela saúde suplementar para aqueles sem
capacidade de pagamento ou com capacidade de pagamento limitada. Sistemas
similares a estes existem em países europeus, como a Holanda e em países
latino-americanos como a Colombia.
Mas o importante, no curto prazo, seria integrar
experiências. Municípios de médio porte onde existe uma boa oferta pública de
atenção primária mas uma má oferta hospitalar, poderiam cobrir os beneficiários
dos planos de saúde suplementar com atenção primária, remunerando os serviçso
públicos por este tipo de seguro parcial, ao mesmo tempo que poderiam pagar à
saúde suplementar para utilizar os serviços hospitalares administrados por suas
redes. Isto evitaria disperdícios e aumentaria a eficiência no uso dos serviços
de saúde do país, hoje caracterizados por duplicações entre SUS e saúde
suplementar e pelo alto grau de capacidade instalada ociosa, ao lado de
deficiências de cobertura para os usuários do SUS.
Mas para que isso possa ocorrer de forma rápida é
necessário que se tenha um registro único de saúde para cada indivíduo do país,
como se tentou fazer há duas décadas com o cartão SUS e jamais se conseguiu.
Esta interoperabilidade das bases de dados em saúde e sua gestão via centrais
únicas de regulação para os dois sistemas seria fundamental para agilizar os
trâmites de acesso e cobertura para todos.
LC - Outro
ponto delicado é a liberação dos reajustes dos individuais, como o senhor vê
esse ponto?
AM – Sempre fui contra o controle de preços dos
planos de saúde individuais. Minha proposta é que a ANS possa fazer um
acompanhamento do crescimento dos custos assistenciais de alguns planos de
saúde com melhor desempenho e divulgar, com base nas informações obtidas, como
deveria ser o reajuste baseado nos provedores supostamente mais eficientes. Com
base nisso a população escolheria e negociaria com o seu plano os reajustes que
iriam pagar. Caso houvessem reajustes em algumas operadoras muito acima dos
preços, a ANS poderia investigar se estes reajustes correspondem à realidade ou
são especulativos. Caso sejam especulativos, poderiam haver sanções como a
proibição de reajustes no ano subsequente. Este é um processo utilizado em
alguns Estados norte-americanos na regulação dos planos de saúde.
A política de ter um teto de reajuste dos planos engessa os
custos, penaliza em última instância os consumidores ao reduzir sua capacidade
de negociação com as operadoras e inibe a possibilidade de incentivos para que as operadoras
otimizem seus custos e se beneficiem de uma concorrência via preços. Uma
política de acesso amplo a informações e transparência de custos, preços e
benefícios para os consumidores favoreceria que estes pudessem tomar decisões
informadas. Como disse o premio nóbel de economia Keneth Arrow a mais de 50
anos, somente reduzindo a assimetria de informações entre planos de saúde e
consumidores se poderia ter um melhor desempenho nesse mercado particular.
[1] Ver
Using Population Segmentation to Provide
Better Health Care ...https://www.ncbi.nlm.nih.gov › pmc › articles ›
PMC2690331