sexta-feira, outubro 25, 2019

A necessidade de atualizar a Lei 9656 e ampliar o acesso à saúde suplementar






Ano 13, Numero 98, Outubro de 2019


Prezados amigos,


Nesta postagem publico a íntegra da entrevista que dei à Jornalista Luciana Casemiro do Jornal "O Globo", onde alguns trechos foram publicados em matéria do referido jornal no dia 18 de outubro último, intitulada "Empresas Querem Vender Planos de Saúde em Módulos".



Luciana Casemiro (LC) - Como você vê a proposta de modulação de produtos das operadoras de saúde brasileira? A proposta em debate prevê, por exemplo,  que se possa contratar um módulo só consultas, um de exames em separado, terapias (como tratamento de câncer) e hospital, onde ficariam as emergência. Ou seja, quem tem plano só de consulta, vai ter que pagar os exames, quem tem um produto conjugado de consultas e exames, mas não terapia e descobriu um câncer, vai para o SUS se tratar. E em todos esses casos, quem não contratou o pacote de hospital, se quebrar um braço, vai para o hospital público, pois só quem contrata hospital tem direito à emergência.


 


Andre Medici (AM) – O aumento dos custos assistenciais tem sido um dos fatores que impede a maioria da população brasileira que deseja ter um plano de saúde de conseguir alcançar seus objetivos. Parte da questão do aumento dos custos assistenciais está associado a uma certa rigidez nos aspectos regulatórios e creio que existe um consenso entre muitos atores sobre a necessidade de flexibilizar a regulação para que se possa oferecer planos assistenciais mais acessíveis aos consumidores. A regulação atual da ANS já prevê alguns tipos de segmentação (modulação) entre planos ambulatoriais e planos hospitalares (com e sem obstetrícia), ou planos odontológicos, mas as coberturas de cada uma dessas modalidades ainda são muito amplas não permitindo uma maior flexibilização dos preços e uma ampliação do espectro de cobertura de acordo com as necessidades da população.


Creio que a proposta das operadoras ainda deverá detalhar como ocorrerá esta modulação, mas entendo que o objetivo é ampliar a oferta de opções que sejam acessíveis de acordo com as necessidades das famílias,  oferecendo desde planos ambulatoriais para a cobertura de consultas e exames combinados até opções para terapias específicas. Mas isso só poderá ser feito se for preservada a mesma cobertura prevista no atual arcabouço regulatório. Fazendo uma analogia, optar por um plano de saúde é como optar por um carro, e não por um conjunto de auto-peças. Mas existem diferentes modelos de carros de acordo com as necessidades e capacidade de pagamento das famílias. Alguns necessitam de utilitários e outros de transporte urbano de fácil acomodação nas vagas públicas. O importante é que a finalidade do carro, que é transportar a família, assim como a finalidade do plano, que é proteger a necessidade de saúde da família de forma coerente com suas necessidades, fiquem preservadas.


LC - Há algum paralelo a essa proposta em outros países que o senhor conheça?


AM – Uma das questões mais discutidas no universo da assistência médica, e incluída nos princípios do valued-based-healthcare (VBHC), é a colocação do paciente como centro do sistema de saúde. Nesse particular o uso de ferramentas que permitam a segmentação de populações de acordo com suas necessidades tem sido uma das abordagens prioritárias para focalizar a atenção à saúde nos pacientes como centro do sistema[1].  Assim, um conjunto de segmentos populacionais deve ser meticulosamente definido com base em evidências de risco atuarial e de risco ao paciente e o sistema de assistência médica terá que oferecer uma gama sensata de serviços integrados para cada segmento e disponibilizar esses serviços em quase todos os lugares.


Nos Estados Unidos – o país onde a oferta de serviços de saúde é baseada em planos individuais, de empresa, ou coletivos – a segmentação sempre esteve na base do desenho de planos de saúde. A Kaiser Permanent, por exemplo, desenha os planos de saúde de acordo com as necessidades de cada indivíduo para adequar o valor do prêmio e a oferta assistencial às necessidades fundamentais do paciente. Existem planos de saúde nos Estados Unidos que cobrem somente a compra de medicamentos (Pharmacy Benefit Managed Plans) e outros cuja a a segmentação é dada pelo valor dos dedutíveis (valor teto a ser pago pelo beneficiário). Com o Affordable Care Act (Plano Obama) e a obrigatoriedade de ter um plano de saúde (derrubado posteriormente pelo Governo Trump) a segmentação de planos aumentou ainda mais para que se possa oferecer planos mais baratos de acordo com as necessidades dos grupos de mais baixa renda. Mas o segredo está no desenho destes planos como forma de garantir que outros serviços não cobertos pelo plano estarão cobertos caso o indivíduo tenha necessidade de acesso a esses serviços. 


LC - Qual é o risco para os consumidores?


AM – Um dos grandes riscos em segmentar-modular os planos de saúde é a falta de uma maior integração entre os sistemas públicos (SUS) e a saúde suplementar. Em países como o Canadá, onde existem planos de saúde complementares à oferta pública para um segmento expressivo da população, essa integração existe e funciona perfeitamente, facilitando o traslado do paciente da atenção pública para a do plano e vice-versa. No Brasil, a saúde suplementar e o sistema público funcionam como compartimentos estanques. Se uma pessoa que tem um plano necessita ter acesso ao SUS, não se sabe se vai conseguir na sequência imediata de suas necessidades e, caso consiga, terá que fazer novamente todos os exames que já foram feitos na saúde suplementar porque a interoperabilidade dos dados entre os dois sistemas não existe. Isso aumenta o risco para os pacientes e os custos gerais do sistema.


Os eventuais riscos da modulação-segmentação de planos de saúde podem ser minimizados pela forma pela qual o plano de benefícios modulado-segmentado é desenhado e também pela avaliação da cobertura do indivíduo em outras áreas não cobertas pelo plano. Por exemplo, em determinadas cidades do país onde a oferta é boa para a atenção primária e saúde da família, faz sentido que os indivíduos tenham somente planos hospitalares, mas para isso, os protocolos de referência entre os planos hospitalares e a rede pública de atenção primária tem que funcionar perfeitamente.


LC - Os planos dizem que essa mudança pode desonerar o SUS, o senhor tb avalia dessa forma? 


AM – Sim. A crise econômica iniciada em 2014 levou a uma perda de 3 milhões de pessoas do sistema de saúde suplementar pela impossibilidade de pagar planos individuais. As próprias operadoras tem inibido a oferta de planos individuais pelo aumento dos preços e pelos riscos trazidos pelo marco regulatório dos planos individuais. Estas pessoas passaram a ter que utilizar o SUS em atividades que poderiam estar sendo cobertas pela saúde suplementar caso os custos destes planos fossem menores e seu desenho adequado às necessidades específicas de cada familia.


Entendo que a segmentação dos planos de saúde, se colocada em prática de forma bem desenhada e coerente, poderia fazer com que uma parte deste universo (e das pessoas que não tem planos de saúde individual - um dos principais objetos de desejo das famílias) voltasse para a saúde suplementar, fazendo com que o SUS pudesse se concentrar nas pessoas realmente carentes e que estão fora de acesso a um sistema público de boa qualidade.


LC - Que tipo de interseção deve haver entre SUS e saúde suplementar?


AM – No longo prazo, creio que o SUS deveria estar estruturado em redes que pudessem oferecer planos de saúde para a população com a mesma qualidade e cobertura da saúde suplementar. E, por outro lado, o SUS deveria utilizar seus recursos para subsidiar planos de saúde oferecidos pelo setor público ou pela saúde suplementar para aqueles sem capacidade de pagamento ou com capacidade de pagamento limitada. Sistemas similares a estes existem em países europeus, como a Holanda e em países latino-americanos como a Colombia.


Mas o importante, no curto prazo, seria integrar experiências. Municípios de médio porte onde existe uma boa oferta pública de atenção primária mas uma má oferta hospitalar, poderiam cobrir os beneficiários dos planos de saúde suplementar com atenção primária, remunerando os serviçso públicos por este tipo de seguro parcial, ao mesmo tempo que poderiam pagar à saúde suplementar para utilizar os serviços hospitalares administrados por suas redes. Isto evitaria disperdícios e aumentaria a eficiência no uso dos serviços de saúde do país, hoje caracterizados por duplicações entre SUS e saúde suplementar e pelo alto grau de capacidade instalada ociosa, ao lado de deficiências de cobertura para os usuários do SUS.


Mas para que isso possa ocorrer de forma rápida é necessário que se tenha um registro único de saúde para cada indivíduo do país, como se tentou fazer há duas décadas com o cartão SUS e jamais se conseguiu. Esta interoperabilidade das bases de dados em saúde e sua gestão via centrais únicas de regulação para os dois sistemas seria fundamental para agilizar os trâmites de acesso e cobertura para todos.


LC - Outro ponto delicado é a liberação dos reajustes dos individuais, como o senhor vê esse ponto? 


AM – Sempre fui contra o controle de preços dos planos de saúde individuais. Minha proposta é que a ANS possa fazer um acompanhamento do crescimento dos custos assistenciais de alguns planos de saúde com melhor desempenho e divulgar, com base nas informações obtidas, como deveria ser o reajuste baseado nos provedores supostamente mais eficientes. Com base nisso a população escolheria e negociaria com o seu plano os reajustes que iriam pagar. Caso houvessem reajustes em algumas operadoras muito acima dos preços, a ANS poderia investigar se estes reajustes correspondem à realidade ou são especulativos. Caso sejam especulativos, poderiam haver sanções como a proibição de reajustes no ano subsequente. Este é um processo utilizado em alguns Estados norte-americanos na regulação dos planos de saúde.


A política de ter um teto de reajuste dos planos engessa os custos, penaliza em última instância os consumidores ao reduzir sua capacidade de negociação com as operadoras e inibe a possibilidade de incentivos para que as operadoras otimizem seus custos e se beneficiem de uma concorrência via preços. Uma política de acesso amplo a informações e transparência de custos, preços e benefícios para os consumidores favoreceria que estes pudessem tomar decisões informadas. Como disse o premio nóbel de economia Keneth Arrow a mais de 50 anos, somente reduzindo a assimetria de informações entre planos de saúde e consumidores se poderia ter um melhor desempenho nesse mercado particular.



[1] Ver Using Population Segmentation to Provide Better Health Care ...https://www.ncbi.nlm.nih.gov › pmc › articles › PMC2690331
 

quinta-feira, outubro 17, 2019

Financiamento do sistema de saúde brasileiro: a necessidade de um novo paradigma






Ano 13, Número 97, Outubro de 2019


O Financiamento do sistema de saúde brasileiro: a necessidade de um novo paradigma

Edson C. Araújo, PhD, Economista Senior do Banco Mundial
Claudia M. Tufani, MSc, Economista, Consultora do Banco Mundial

1.      O Estado brasileiro enfrenta dois desafios urgentes e as respostas a esses desafios irão redesenhar o papel e o tamanho do setor público no futuro. O primeiro desafio é superar a crise fiscal sem precedentes que o país enfrenta.  O déficit fiscal acumulado nas três esferas de governo alcançou 8,9% do PIB em 2018. A reforma da previdência e a chamada emenda do teto de gastos (EC 95) são algumas das medidas que buscam conter a trajetória de crescimento da dívida pública.  Porém, com uma carga tributária de 35% do PIB (a maior da série histórica, que começa em 1947), o Estado brasileiro continuará grande no curto e médio prazos. O segundo desafio é melhorar a qualidade dos serviços públicos essenciais sem, contudo, piorar a saúde das contas públicas. Pesquisa feita pelo IBOPE em 2016, mostra que nove em cada dez brasileiros concordam que considerando o valor dos impostos, a qualidade dos serviços públicos deveria ser melhor no país.[1]

2.      O sistema público de saúde, a despeito dos avanços nas últimas três décadas, ilustra bem o cenário desafiador que o Estado brasileiro se encontra.  Em 2018, o sistema único de saúde (SUS) consumiu, em média, 14% da arrecadação dos estados, 22% dos municípios, e quase 15% da União. São cerca de R$250 bilhões gastos no SUS  pelas três esferas de governo.[2] 
Estudo do Banco Mundial que compara gastos com saúde e resultados, conclui que o Brasil poderia aumentar os resultados de saúde em 10% com o mesmo nível de gastos; ou poderia economizar 34% de seus gastos para produzir os mesmos resultados de saúde. Além disso, o uso mais eficiente dos recursos da saúde poderia aumentar o número de consultas médicas por habitantes em mais de quatro vezes, aumentar em quase 80% o número de internações hospitalares ao ano, e aumentar a cobertura de vacinas em 42%. Tudo isso sem a necessidade de mais recursos financeiros.[3] Assim, não é surpreendente que a insatisfação da população com os serviços públicos de saúde seja alta: dados da pesquisa CNI/IBOPE 2018 apontam que o percentual de brasileiros que avalia a saúde pública ruim ou péssima passou de 61% em 2011, para 75% em 2018.[4] Ainda de acordo com dados do IBOPE, 70% dos brasileiros concordam que a baixa qualidade dos serviços públicos é mais consequência da má-utilização dos recursos do que da falta deles.1

3.      Enfrentar os desafios do SUS significa rever os atuais modelos de financiamento, gestão e organização da atenção a saúde.  É preciso alterar a atual estrutura de incentivos, o que requer mudanças fundamentais nos mecanismos de financiamento e pagamento aos prestadores de serviços. No formato atual, esses mecanismos são pouco utilizados como instru­mentos de política para influenciar ações prioritárias ou para incentivar desempenho.  A maior parte dos recursos da APS é transferida de forma per capita (PAB fixo – cerca de R$ 5 bi) e para o financiamento de programas por adesão (PAB variável – cerca de R$ 6 bi). Além disso, o Ministério da Saúde é responsável também por financiar o custeio dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), que em 2018 custaram mais de R$3.2 bi.  Ainda que os ACS sejam importantes, esses gastos tem pouca ou nenhuma contrapartida em termos de quantidade ou qualidade dos servicos prestados. 

4.      Recentemente o Ministério da Saúde apresentou uma proposta de Novo Financiamento da atenção primária a saúde (APS) que aponta para mudanças desejadas. De acordo com a proposta, o novo financiamrnto da APS seria organizado em 4 eixos: (1) Capitação; (2) Pagamento por desempenho; (3) Incentivos a Programas Estratégicos; e (4) Provimento de Pessoal. O novo financiamento da APS, em linhas com as boas práticas internacionais, adota um modelo misto de financiamento que prioriza as populações com maior vulnerabilidade econômica (bem como aquelas com maiores dificuldades de acesso aos serviços) e premia o esforço para melhorar a qualidade dos serviços e os indicadores de saúde da população. Paises como Inglaterra  adotam sistemas mistos, baseados em capitação, desde os anos 70.[5]  A maioria dos países da OCDE utilizam alguma forma de pagamento por desempenho como forma de aumentar a eficiência e qualidade dos serviços de saúde.[6] Além disso, se aprovada, a reforma seria o primeiro passo para a implantação de redes integradas de assistência à saúde no SUS, o que colocaria o Brasil em linha com as boas práticas internacionais no setor saúde.

5.      A proposta do Novo Financiamento da APS é um avanco no financiamento do SUS, porém outras reformas são necessárias.  Pelo menos duas áreas merecem atenção:  Primeiro, um dos aspectos cruciais para que o novo financiamento resulte em mudanças de longo prazo é transformar a APS em porta de entrada ao SUS.  As equipes de saúde da família (ESF) devem ser responsáveis por coordenar a atenção prestada por diferentes prestadores de forma a garantir o acesso aos serviços clinicamente necessários e ao mesmo tempo conter os custos do tratamento. Essa função da APS tem sido adotada por países com sistema de saúde de acesso universal, como Canadá e Inglaterra. Segundo, embora o financiamento da saúde deva ser público, sua provisão não precisa ser estatal. A  provisão de serviços públicos de saúde por agentes privados pode resultar em ganhos de eficiência ao SUS.  Sao muitas as evidências de que prestdores que funcionam com gestão autô­noma, tais como as Organizações Sociais em Saúde (OSS), têm melhor desempenho do que os que estão sob administração pública direta, desde que bem es­tabelecidos mecanismos de regulação.  No estado de Sao Paulo, a contratação de servicos de APS através de OSS resultou em aumento do acesso aos servicos e e reducao do numero de internaçoes por condicoes evitaveis.[7]

6.      Juntas, as mudanças propostas irão promover melhor uso do recurso público da saúde. A crise fiscal e a necessidade de melhorar a qualidade dos servicos públicos pode ser uma oportunidade para buscar solucoes inovadoras, que deixem no passado o paradoxo que o ex-ministro Delfim Neto denominou de "Ingana", um país com carga tributaria da Inglaterra e serviços públicos de Gana.[8]  A reforma  do SUS pode ser o primeiro passo para tal transformacao estrutural do Estado brasileiro.


[1] Pesquisa CNI/IBOPE. Retratos da Sociedade Brasileira - Serviços públicos, tributação e gasto do governo. 2016.
[2] Dados de 2018, fonte SIOPS/MS.
[3] Banco Mundial (2017). Um Ajuste Justo. Análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil. Volume I: Síntese.
[4] Retratos da sociedade brasileira: saúde pública / Confederação Nacional da Indústria. Ano 7, n. 44. Brasília: CNI, 2018.
[6] Cheryl Cashin et al. (2014). Paying for Performance in Health Care: Implications for health system performance and accountability. European Observatory on Health Systems and Policies.
[7] Greve e Coelho (2017). Evaluating the impact of contracting out basic health care services in the state of Sao Paulo, Brazil. Health Policy and Planning, 32, 2017, 923–933.