Ano 5, No. 17, Junho 2010
André Cezar Medici
Na última postagem deste blog fizemos uma pesquisa simples para perguntar aos nossos leitores a opinião sobre redes de saúde. Ainda que poucos leitores tenham respondido, os resultados mostram que 85% acham que redes de saúde poderão aumentar o acesso, a eficiência e a equidade do SUS; 4% acham que as redes não teriam esse papel, 4% não sabem e 7% acham que as redes talvez possam ter um papel positivo na melhoria do acesso, eficiência e equidade do SUS. Neste sentido, valeria a pena desenvolver experiências concretas de rede no país ou avaliar as Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde que já avançam neste processo.
A presente postagem completa a discussão sobre redes de saúde no Brasil, fazendo uma proposta para criar um novo entorno operativo para um SUS regionalizado e revigorado. Será discutido o conceito de rede de saúde e o Projeto QUALISUS rede, recém aprovado pelo Banco Mundial, como um dos pilares para a construção de pilotos que irão desenvolver diferentes modelos de rede a serem implantados no Brasil. Se espera, também, que nos próximos anos o Ministério da Saúde tenha os quadros técnicos necessários para acompanhar as experiências estaduais e municipais na criação de redes de saúde.
Como visto anteriormente, a discussão sobre redes de saúde aparece em vários momentos na discussão sobre regionalização. Ela está implicitamente presente na discussão de hierarquização de Alma Ata, nas propostas de SILOS e Distritos Sanitários, na proposta operativa dos CIMS e começa a se explicitar como preocupação gerencial no contexto da NOAS.
Entre a formulação dos Pactos em 2006 e a presente data, novos temas começam a surgir no contexto do Ministério da Saúde que reaproximaram a discussão relacionada a Redes de Saúde: a) A criação do Departamento de Articulação de Redes Assistenciais (DARA) da Secretaria de Ações de Saúde (SAS) do Ministério da Saúde (MS); b) A contratação, com o Banco Mundial, do Projeto QUALISUS-REDE pelo Ministério e c) A organização de redes de saúde como política de alguns Estados, como Minas Gerais e São Paulo.
O Conceito de Redes de Saúde
O Ministério da Saúde, através do DARA, define Redes de atenção à saúde como arranjos organizativos de unidades funcionais e/ou pontos de atenção de diferentes densidades tecnológicas, que, integrados por meio de sistemas logísticos, de apoio diagnóstico e terapêutico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado. A porta de entrada e base para a organização do sistema é a estrutura de atenção primária da saúde.
Sob a égide deste novo conceito, o tema da regionalização pode passar a ser visto dentro do marco do conceito de Rede. Desta forma, Regionalização é o processo de constituição de Regiões de Saúde, nas quais se arranjam redes regionalizadas de atenção à saúde, visando garantir a universalidade do acesso, a eqüidade, a integralidade e a resolubilidade das ações e serviços de saúde.
A necessidade de orientar o atual processo de regionalização do SUS através da gestão de redes busca resolver várias deficiencias hoje encontradas no perfil de organização dos serviços de saúde no Brasil, tais como:
Planejamento fragmentado e verticalizado das ações de saúde, focado num modelo de financiamento com poucos incentivos para uma gestão eficiente;
Ferramentas e processos de gestão orientados por incentivos a oferta e não como resposta a demanda dos usuários do sistema;
Mecanismos de acreditação de qualidade inexistentes ou incipientes. Para exemplificar, dentre a totalidade de mais de 7000 hospitais brasileiros menos de 200 são acreditados pelos estándares de qualidade da ONA ou da CBA;
Inexistência ou pouca disseminação no uso de modelos de avaliação e monitoramento baseados em resultados. Ainda que o Brasil tenha avançado enormemente no uso de dados e produção de informações de saúde, a pactuação de metas pouco se mede ou se avalia por resultados assistenciais;
Estruturação incipiente de redes de atenção à saúde, especialmente no tocante aos mecanismos regulação do acesso e contratualização – Existe a necessidade de aumentar o escopo de mecanismos de autonomia de gestão das redes e unidades que permitam maior flexibilidade, ao mesmo tempo que garantam melhores resultados assistenciais a custos razoáveis;
Escassez de recursos humanos tecnicamente preparados para a gestão eficiênte dos serviços e estratégias de capacitação de recursos humanos customizadas ao nivel de cada espaçõ regional;
Incorporação tecnológica acrítica e avaliação tecnológica incipiente, levando a gastos desnecessários em tecnologias caras e insuficiência de gastos em procedimentos e diagnósticos efetivos de media complexidade;
Para resolver estes problemas se definem áreas onde atuaram as redes, sua capacidade de gerir problemas diferenciados no entorno social aonde se situam, seus mecanismos de formulação de políticas, financiamento, resolubilidade e legitimação social e suas linhas técnicas de intervenção no campo da saúde, em todas as suas dimensões. A criação de redes de saúde, na visão do Ministério da Saúde, traz uma série de potencialidades, onde cabe destacar:
O acesso aos serviços de saúde, de forma hierarquizada, em todos os níveis de complexidade para uma população com base territorial definida;
Economias de escala na produção de serviços especializados, evitando disperdícios e utilizando tecnologia apropiada e resolutiva ao menor custo possível;
Soluções customizadas para as características sociais, epidemiológicas, demográficas y geográficas de cada Região de Saúde;
A eliminação de “vazios assistenciais” ou “excessos de oferta” ao nivel regional, contribuindo para a equidade no acesso e qualidade dos serviços;
A grantia da qualidade assistencial e da eficiência da gestão como eixos condutores de seu processo de administração das redes e;
Acreditação das unidades, processos de entrega de serviços e gestão clínica, como forma de assegurar a seguridade dos pacientes e a garantia de qualidade dos serviços.
Considerados estas potencialidades, no contexto das redes de saúde, novos conceitos começam a surgir: os de territórios de saúde, de governança de redes e de gestão regional compartilhada de redes e de linhas de cuidado. Desta forma:
Territórios sanitários, são áreas geográficas que comportam uma população – com necessidades e características (epidemiológicas e sociais) próprias – e os recursos de saúde necessários para atendê-la. A área geográfica é definida de acordo com cada realidade e pode ser constituída por vários bairros de um município ou por vários municípios de uma região. Uma vez conformados, estes poderiam se configurar como Territórios Integrados de Atenção a Saúde (TEIAS) que seriam elementos de transição para a conformação de uma Rede Integrada de Atenção a Saúde (REIAS);
A governança das redes de atenção à saúde é entendida como a capacidade de intervenção na realidade de saúde que envolve diferentes atores, instituições, mecanismos e procedimentos para a gestão regional compartilhada da referida rede.
Gestão regional compartilhada é o processo decisório para a formulação de políticas; a pactuação de recursos, monitoramento e avaliação de desempenho da rede, incluindo a definição de instrumentos e mecanismos de participação e controle social.
Linhas de Cuidado em saúde são um conjunto de práticas e intervenções voltadas à promoção, preservação ou recuperação da saúde, englobando desde as iniciativas singulares de auto-cuidado (desenvolvidas pelos próprios indivíduos, com o objetivo de promover, preservar ou recuperar a saúde) até as atividades ofertadas de forma organizada pelas redes de saúde.
Embora não existam dados sistematizados sobre demandas reprimidas e vazios assistenciais, é fato conhecido a insuficiência de oferta nas áreas de consultas especializadas e de diagnose, especialmente nas áreas mais pobres do país. Tal situação faz com que a assistência de média complexidade seja comumente considerada, tanto por gestores, quanto por usuários, como um ponto de estrangulamento do sistema.
As consequências são visíveis, na medida em que se acumulam filas de espera em hospitais; atrasos na intervenção médica; agravamentos em indivíduos com patologias crônicas; defasagens de cobertura; e possíveis desperdícios (por um lado) e ociosidades (por outro) na utilização dos recursos disponíveis.
Os serviços de atendimento às urgências necessita não só ser ampliados, mas fundamentalmente qualificados por meio da reestruturação dos processos de trabalho e do monitoramento e avaliação dos resultados esperados (1). E nessa perspectiva que o Ministério da Saúde tem apoiado Estados como o Rio de Janeiro, na implantação de programas, até agora exitosos, como o das Unidades de Pronto Atendimento (UPA 24 horas) e Serviços de Assistência Médica de Urgência, que parecem ser um dos caminhos para integrar a média complexidade no processo de conformação das redes de saúde.
O Projeto QUALISUS-REDE
As estratégias para o investimento em conformação das redes de saúde, que atendam aos vazios assistenciais, especialmente nos temas de média e alta complexidade, se consolidam atualmente sob o Programa Mais Saúde que representa investimentos estratégicos do Ministério da Saúde na implantação do Pacto pela Saúde e suas estratégias constitutivas, onde se destaca as Redes Regionalizadas e Integradas de Saúde. Como parte deste processo, o Ministério da Saúde solicitou ao Banco Mundial recursos para a implantação de programas de apoio ao investimento e conformação de redes, em carater piloto, nos Estados. Estes recursos se consubstanciam no Projeto QUALISUS-REDE, o qual será descrito em sequência (2).
Os principais objetivos do Projeto Qualisus-Rede são:
Organizar, no âmbito do SUS, redes de atenção à saúde que considerem o protagonismo da atenção primária no seu ordenamento;
Instituir mecanismos de gestão dessas redes, com vistas a aumentar a eficiência e melhorar os resultados do SUS;
Produzir, sistematizar e difundir conhecimentos voltados: à melhoria da qualidade da atenção e da gestão em saúde; ao desenvolvimento de metodologias e processos de avaliação e gestão da qualidade; e à gestão da inovação tecnológica em saúde;
Priorizar os investimentos na atenção especializada, (ambulatorial e hospitalar); na atenção de urgência e emergência; e no aprimoramento dos sistemas logísticos de suporte à rede;
Fortalecer a regionalização, a contratualização, a regulação do acesso, a responsabilização dos gestores e a participação social;
Aumentar a qualidade do cuidado em saúde, incentivando a definição e implantação de protocolos clínicos, linhas de cuidado e processos de capacitação profissional.
Para alcançar estes objetivos, o Projeto Qualisus-Rede deverá se basear nas seguintes estratégias:
Apoiar o desenvolvimento de redes de atenção à saúde em regiões metropolitanas e “regiões-tipo” definidas pelo MS. O projeto prevê implantar, no prazo de 4 anos, pelo menos 15 Redes Regionais de Saúde, das quais dois terços seriam organizadas nos espaços metropolitanos definidos por cada Estado e cinco redes seriam organizadas segundo áreas sócio-geográficas peculiares como a Amazônia Ribeirinha; as regiões do agreste e sertão nordestino, etc.
Estimular o desenvolvimento de linhas de cuidado pré-definidas como um dos elementos de qualificação do cuidado em saúde. Já foram definidas pelo governo federal 5 linhas de cuidado com protocolos definidos, mas o objetivo do Programa é ampliar ainda mais este escopo de forma a privilegiar o que pode ser utilizado em benefício de aumentar a resolutividade;
Investir prioritariamente na atenção especializada (ambulatorial e hospitalar) de média complexidade e de urgência e emergência, na medida em que os dados revelam que essa é a principal deficiência do Sistema;
Integrar processos de investimento com iniciativas de desenvolvimento de recursos humanos e de implementação de novos processos e tecnologias de informação e gestão.
Fortalecer os mecanismos e instrumentos de gestão governamental e organizacional em apoio à estruturação das redes de atenção à saúde;
Incentivar o uso de novos processos de gestão, novas modalidades de pagamento pelos serviços e parcerias público-privadas na entrega dos serviços.
Considerações finais
Em que pesem os avanços no processo de regionalização da saúde no Brasil, ele atualmente vive seu momento mais crítico, onde se passa progressivamente de um discurso construtivista para a implantação de uma prática, onde as experiências recém começam. Estados como Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro e outros avançam progressivamente na construção de suas redes e implantam paulatinamente uma métrica de gestão por resultados.
No Estado de Minas Gerais, por exempo, após seis anos do Governo Aécio Neves, já se apresentam alguns resultados positivos do processo de implantação de Redes Temáticas de Saúde. Destaca-se nesse processo, a Rede de Urgência e Emergência, onde a gestão da atenção médica começa a se realizar a partir da aplicação de uma classificação de risco. Outras, como a Rede Viva-Vida cuida da atenção da saúde da mulher e da criança, com resultados notáveis, como a redução em 34% da mortalidade neonatal precoce desde a implantação do projeto no ano 2000. Também se destaca a forte redução da mortalidade materna, que caiu de 38 para 26 mortes por 100 mil nascidos vivos entre 2002 e 2007 (3). Um exemplo no Estado de Rede Integrada é a implantada no Município de Janaúba, a qual tem servido de referência para muitos como experiência exitosa.
O estado de São Paulo conta hoje com 64 regiões de saúde. Cada uma delas possui um Colegiado de Gestores, fruto do Pacto de Gestão pela Saúde, que busca um acesso mais qualificado e eficaz aos serviços de saúde para a população do estado. Dado o processo insipiente de formação de redes em cada uma destas Regiões, se pode dizer que dos 645 municípios de São Paulo, 475 assumiram algum tipo de serviço que estava sob gestão estadual e 77 hospitais, também sob gestão estadual, passaram para municípios (4). Dentre os pontos positivos dessa nova forma de gestão de saúde, se destaca que toda a condução do processo é feita de forma bipartite (municípios e estado), além da integração dos processos de planejamento, programação e regulação. Entretanto, desafios existem e estão sendo enfrentados pelos gestores, com maior ênfase na qualificação da atenção básica, no desenvolvimento de redes de atenção integral à saúde, com foco na escala/qualidade, e na qualificação das regiões de saúde, com apoio das universidades, o que acontecerá até o ano de 2010.
No Rio de Janeiro se destaca, até o presente, a implantação de UPAs 24 horas e dos SAMU e a forte redução da demanda por atenção de urgência nos hospitais, com um grande aumento da satisfação dos usuários, especialmente na Região Metropolitana.
Independentemente de todos esses avanços, muito ainda há por construir e o Projeto QUALISUS rede poderá representar uma inestimável ajuda, através da geração de modelos alternativos de gestão de redes e da implantação de uma cultura de monitoramento, avaliação e gestão por resultados no âmbito do SUS.
Como desafio para o futuro, vale a pena pensar em outros aspectos que merecem destaque. Primeiramente, que, uma vez que saúde é multi-determinada, redes de saúde devem ter sinergias com outros setores sociais, como educação, cultura, meio ambiente, trabalho e lazer, só para citar alguns. Um exemplo claro quanto a este ponto são os programas de desenvolvimento precoce das crianças (early child development), onde políticas integradas de saúde e nutrição pré-escolar com estímulos a aprendizagem cognitiva são fundamentais na geração de efeitos positivos na educação e melhorias salariais para futuras gerações (5).
Em segundo lugar, redes de saúde devem ter uma postura ativa em relação ao usuário, compartindo a informação e dando-lhe responsabilidades para cuidar de sua própria saúde. No caso do SUS, vale pena pensar nos incentivos que poderiam ser dados para que os indivíduos se interessem voluntariamente por promoção, prevenção e vida saudável como ocorre com a experiência norte americana da Kaiser Permanente. Redes de Saúde devem qualificar o usuário e compartilhar a informação assistencial com eles, com o objetivo não somente de aprimorar a qualidade assistencial mas principlamente de melhorar a qualidade de vida para todos.
Notas
(1) Rollo, A.A. (2008), Entrevista dada a Revista Observa Saúde, Ed. FUNDAP, São Paulo (SP) http://observasaude.fundap.sp.gov.br/pacto/Redesatencao/Acervo/Rede%20C%C3%A2ncer_entrevista.pdf.
(2) O Projeto QUALISUS rede corresponde a um investimento de cerca de US$600 milhões, dos quais US$235 são um empréstimo do Banco Mundial ao Ministério da Saúde, para a montagem de 15 redes de saúde no Brasil, com distintos modelos metropolitanos e de regiões com outros contornos geográficos.
(3) Souza Marquez, A.G., Mendes, E.V., Silva, J.A e Pestana da Silva, M.V.C, (organizadores) (2009) “O Choque de Gestão na Saúde de Minas Gerais, Ed. Governo do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte (MG).
(4) Stucchi, M.L.R. (2007), “Consórcios Intermunicipais de Saúde no Estado de São Paulo”, Secretaria de Estado da Saúde, São Paulo (SP).
(5) Behrman, J., (2008) “Early Life Nutrition and Subsequent Education, Health, Wages and Intergenerational Effects”, Ed. Commission on Growth and Development, Working Paper No. 33, Washington (DC)