André Medici
Ano 13, No. 95, Julho de 2019
O SUS antes do Plano
Real[i]
Com o jubileu de prata do Plano Real,
comemorado no dia 1º de julho de 2019, muitas matérias tem sido publicadas pela
imprensa sobre seus efeitos positivos de longo prazo na economia brasileira.
Mas poucos se dão conta de que várias políticas públicas, incluindo a de saúde,
só conseguiram ter viabilidade após a estabilização econômica trazida pelo
Plano Real.
Para quem não se lembra, embora o Sistema Único
de Saúde (SUS) tenha sido criado com a Constituição de 1988, poucas medidas
avançaram em sua implantação entre 1988 e 1994 devido à hiperinflação. Por
causa dela, faltaram condições que permitissem realizar gastos correntes
crescentes e investimentos de médio e longo prazo necessários ao SUS, bem como para
que o novo sistema de saúde pudesse funcionar e implementar políticas que
brindassem aos brasileiros maior cobertura e qualidade dos serviços de saúde,
como proclamava a nova Carta Constitucional.
Desde o Plano Cruzado, em 1986, o governo
brasileiro vinha tentando um plano de estabilização econômica que pudesse
acabar com as elevadas taxas de inflação vigentes no país. Mas ,somente a
partir de 1994, no final do Governo Itamar Franco, tendo Fernando Henrique
Cardoso como Ministro da Fazenda e uma equipe técnica de elevada competência,
foi possível, através do Plano Real, alcançar uma estabilidade econômica
durável que permitisse que orçamentos públicos tivessem seus valores reais
preservados.
Entre 1988 e 1994 as elevadas taxas de inflação
impediram a criação de um ambiente institucional para a implementação do SUS.
Por exemplo, uma medida fundamental – a unificação do antigo Instituto Nacional
de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) com o Ministério da Saúde,
prevista pela Constituição logo após sua promulgação, ocorreu de fato em 1993,
quando o INAMPS foi extinto e suas funções incorporadas a Secretaria de Ações
de Saúde (SAS) do Ministério da Saúde, com reais implicações orçamentárias somente
a partir de 1995. Fontes de financiamento adicionais para a saúde,
estabelecidas no chamado orçamento da seguridade social (OSS), onde se incluiam
além das contribuições previdenciárias, as contribuições sobre o lucro e o
faturamento, ficaram muito aquém do dos 30% do OSS prometidos pelo Governo.
As Leis 8080 e 8142 de 1990, e as Normais Operacionais
do SUS números 01, 02 e 03, entre 1991 e 1993, que detalharam a implementação
do SUS e definiram critérios operacionais para o investimento e custeio em
saúde e para a partilha de recursos entre União, Estados e Municípios, através
de incentivos que permitissem melhor alocação de gastos, não foram implementadas
em função da falta de visibilidade dos recursos orçamentários e da autofagia fiscal
decorrente da elevada inflação. O valor dos serviços pagos aos hospitais
públicos e contratados (através da autorização de internação hospitalar – AIH)
despencaram. Com as unidades de saúde desfinanciadas e sem condições de prestar
os serviços prometidos, engrossavam as reclamações da população insatisfeita[ii].
Com todos estes problemas, os gastos públicos
totais em saúde entre 1989 e 1993, incluindo o dos estados e municípios,
tiveram uma queda real de 35,2% e os gastos federais com saúde cairam 46,3% no
mesmo período. A tabela 1 mostra a
redução dos gastos públicos em saúde no período pré-Plano Real e as altas taxas
de inflação vigentes.
Tabela 1 - Gastos
Públicos em Saúde e Taxas de Inflação no Brasil: 1989-1993
Anos
|
Gastos Públicos
com Saúde (Em R$ milhões de 2018) (1)
|
Taxas Anuais de
Inflação em Porcentagem (IPCA) (2)
|
|
Totais
(Federais+Estaduais+Municipais)
|
Federais
|
||
1989
|
98,5
|
78,9
|
1972,9
|
1990
|
75,3
|
56,6
|
1621,0
|
1991
|
61,3
|
46,7
|
472,7
|
1992
|
56,9
|
41,3
|
1119,1
|
1993
|
63,8
|
42,4
|
2477,1
|
Fonte: (1) Ministerio da Economia-Secretaria do Tesouro Nacional (dados
deflacionados pelo IPCA); (2) IBGE
Portanto, entre 1989 e 1993 o SUS não conseguiu
decolar por razões óbvias. Na raís de todos os desgovernos, esforços inúteis de
regulação e fortes quedas no financiamento setorial, estava o rastro da hiperinflação,
a qual, se não tivesse sido controlada pelo Plano Real, poderia ter aniquilado
as tentativa de viabilizar quaisquer iniciativas posteriores de implementação
do SUS no Brasil.
Em condições normais, altas taxas de inflação
tendem a causar incerteza e confusão, levando a menos investimento público e
privado. Mas a hiperinflação vai além, podendo destruir não só a economia mas o
próprio Estado, ao criar um ciclo vicioso que causa expectativas ainda mais altas
de inflação, o que, por sua vez, eleva ainda mais os preços e reduz dramaticamente os recursos
a disposição dos agentes econômicos. A hiperinflação, como a vigente no periodo
pre-Real no Brasil, reduziu a capacidade do setor público de manter o valor dos
investimentos e o caráter compensatório das políticas públicas, com efeitos
dramáticos na concentração de renda e na transformação da classe média em
pobreza e da pobreza em indigência.
O SUS após o Plano
Real
A aprovação do Plano Real pelo Congresso não
foi um processo fácil. Bancadas de partidos como o PT, PcdoB e outros foram os
principais opositores do Plano Real[iii],
mas mesmo assim, foi possível através de alianças políticas, garantir as
aprovações da MP 434 e dos Projetos de Lei 8880 e 9069 que garantiram os mecanismos
necessários para sua implementação. Os resultados na melhoria de condições de
vida da população foram quase imediatos. O coeficiente de Gini[iv],
que mede a concentração da renda pessoal, caiu de 0,601 em 1993 para 0,581 em
1995, indicando uma redução da distância nos níveis de rendimento de ricos e
pobres. O percentual da população brasileira abaixo da linha de pobreza se reduziu
de 32% para 21% no mesmo periodo.
O Plano Real estabeleceu o ambiente econômico
para a valorização dos recursos públicos aplicados no setor saúde. Entre 1994 e
2002 os gastos públicos em saúde (incluindo Estados e Municípios) cresceram
74,6% e os gastos federais com saúde cresceram 48,2%, num contexto onde as
taxas anuais de inflação baixaram do patamar de 4 para 1 digito, como pode ser visto
na tabela 2. Interessante notar que os recursos destinados a saúde cresceram,
mesmo num contexto onde era necessário criar desvinculações e aumentar a
flexibilidade e o controle fiscal dos gastos públicos. A criação do Fundo
Social de Emergência (FSE), desvinculando 20% recursos do OSS, foi parte deste
processo, permitindo maior liberdade alocativa do governo para o controle do deficit fiscal. Mas mesmo assim não impediu que os recursos públicos para o SUS
crescessem de acordo com suas necessidades.
Mais importante do que isso, foi o fato de que
o Plano Real criou condições para que os recursos aplicados em saúde pudessem ser
normatizados, regulados e administrados pelo Estado com maior eficiência, garantindo
com isso o funcionamento das normas e processos de regulação setorial. Assim, a
legislação de saúde complementar à Constituição, que não foi substancialmente
implementada no período pré Plano Real, teve condições de ser revisada,
ajustada e implementada, garantido o crescimento real do SUS ao longo do período
1995-2002.
Tabela 2 - Gastos
Públicos em Saúde e Taxas de Inflação no Brasil: 1994-2002
Anos
|
Gastos Públicos
com Saúde (Em R$ milhões de 2018) (1)
|
Taxas Anuais de
Inflação em Porcentagem (IPCA) (2)
|
|
Totais
(Federais+Estaduais+Municipais)
|
Federais
|
||
1994
|
70,0
|
42,9
|
-
|
1995
|
93,6
|
59,7
|
22,4
|
1996
|
95,1
|
51,1
|
9,6
|
1997
|
103,7
|
60,3
|
5,2
|
1998
|
98,3
|
55,4
|
1,7
|
1999
|
100,1
|
57,2
|
8,9
|
2000
|
102,9
|
61,5
|
6,0
|
2001
|
113,3
|
63,6
|
7,7
|
2002
|
122,2
|
63,6
|
12,5
|
Fonte: (1) Ministerio da Economia-Secretaria do Tesouro Nacional (dados deflacionados
pelo IPCA); (2) Fundação Getúlio Vargas
O período pós-Plano Real favoreceu a
implementação de processos automáticos de descentralização dos recursos
federais a saúde aos Estados e Municípios (Norma Operacional Básica - NOB 01 de
1996) e uma política específica de Atenção Básica à Saúde, com recursos que
incentivaram a adoção de programas como os de agentes comunitários de saúde (PACS)
e o famoso Programa de Saúde da Família (PSF). Com isso, aumentou fortemente a
cobertura da população mais pobre com serviços básicos de saúde até então
escassos. Estes programas, inexistentes no período pré-Plano Real, passaram a
cobrir 56% e 32% da população brasileira em fins de 2002, respectivamente, com
efeitos positivos no reordenamento de pacientes para hospitais.
A NOB 01 de 1996 foi importante na consolidação
das esferas estaduais e municipais como gestores do sistema de saúde, na
implantação de transferências fundo-a-fundo de recursos entre esferas de
Governo, como mecanismo de aumentar a autonomia adminstrativa, na introdução de
mecanismos de programação e transferência de recursos baseada em critérios técnicos e epidemiológicos, bem
como na criação de mecanismos de controle e avaliação, valorizando o alcance de
metas pactuadas, resultados e estabelecendo processos de auditoria de licitações
e autorizações para procedimentos de alto custo.
Recursos adicionais para o financiamento dos
gastos federais com saúde foram criados através da Contribuição Provisória sobre
a Movimentação Financeira (CPMF) e mecanismos institucionais de obrigatoriedade
de vinculação de recursos orçamentários para a saúde nos Estados e Municípios
(instituidos com a Emenda Constitucional 29 de 2000) possibilitaram aplicações
dos recursos fiscais próprios, com mínimos estabelecidos para os Estados (12%)
e Municípios (15%), garantindo uma forte expansão do financiamento local para o
setor.
No plano da eficiência, o período pós-Real
inovou no processo de gestão, rompendo com a exclusividade da administração
direta nos estabelecimentos públicos de saúde e criando processos que facilitavam
a implantação de organizações sociais, aumentando a autonomia na gestão dos hospitais
e estabelecimentos de saúde livres das amarras e ineficiências do serviço
público. Além disso, novos horizonte como as parcerias público-privadas na
gestão dos serviços de saúde foram estruturados. O Estado de São Paulo foi o
pioneiro a utilizar estas novas modalidades.
Por fim, o Governo passou a regular os temas de
vigilância sanitária e os planos privados de saúde. A criação de duas
importantes instituições: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e
a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) estabeleceu processos para
regular: (i) as ações que poderiam gerar riscos coletivos a saúde nos setores
de produção, medicamentos e tecnologia, e; (ii) a expansão dos seguros de saúde
suplementar – importante segmento que passou a representar a opção preferencial
de saúde para um quarto da população brasileira.
Nada disso seria possível num contexto de hiperinflação
como aquele que existia na promulgação da Constituição de 1988. Mas além do
controle da inflação, outras medidas complementares na área econômica
implementadas em sequência ao Plano Real, como a política de juros, a
implantação do cambio flutuante e mecanismos para o equilíbrio fiscal, foram
fundamentais para garantir uma estabilidade duradoura. A Lei de
Responsabilidade Fiscal foi um marco nesse sentido e a reforma bancária, com a
privatização de bancos estaduais ineficientes, reduziu as pressões
inflacionárias que vinham pelo lado da oferta. Portanto, o SUS não seria
possível se não tivesse existido o Plano Real e as medidas complementaries que
mantiveram um ambiente de estabilização econômica duradoura, pelo menos até a metade
da primeira década do milênio.
Notas
[i] Esta seção está baseada em
trechos de minha tese de doutorado, defendida em 1999 no Departamento de
História Econômica da Universidade de São Paulo, intitulada “História e Políticas de Saúde no Brasil: Um
Balanço do Processo de Descentralização”.
[ii] Entre 1991 e 1992 o valor medio da
AIH caiu de US$292 para US$231 (em dolares constantes) só se recuperando
parcialmente em 1993 quando chegou a US$247. Entre o último trimestre de 1991 e
o primeiro de 1992 este valor caiu de US$306 para US$180, o que dá a dimensão
da penúria sofrida pelos hospitais ao longo deste período.
[iii] Inclusive o então deputado
federal Jair Bolsonaro – hoje presidente
da república – votou contra o Plano Real enfrentando resistência de sua base
eleitoral das forças armadas cujo alto comando era favorável ao Plano.
[iv] O Coeficiente de Gini é uma
medida relativa de concentração que varia de zero a um, sendo zero a maior equidade
da concentração e um a maior inequidade do processo de concentração.