segunda-feira, agosto 26, 2019

Trabalho voluntário como Complemento ao SUS: A experiência do Instituto Horas da Vida





Ano 13, No. 96, Agôsto de 2019



Na postagem de hoje, o blog Monitor da Saúde entrevista o Dr. João Paulo Nogueira Ribeiro, que junto com o Rubem Ariano,  fundaram o Instituto Horas da Vida (IHV), uma organização não-governamental, que conta com profissionais de saúde voluntários, voltada para o atendimento gratuito à pessoas não atendidas pelo SUS com renda familiar inferior a 3 salários mínimos em suas necessidades de saúde. A instituição também se relaciona com outros profissionais da saúde, ONGs, voluntários de outras áreas, pacientes, laboratórios, óticas e tem uma enorme transparência em suas contas, sendo auditada pela Cokinos Auditores e Consultores.

Dr. João é fellow da ASHOKA – uma organização não governamental internacional sem fins lucrativos que lidera um movimento global para criar um mundo no qual todas e todos se reconheçam como agentes de transformação positiva na sociedade. A ASHOKA foi criada em 1980 na Índia e está presente desde 1986 no Brasil, sendo considerada a 5ª ONG de maior impacto social no mundo, segundo a publicação suíça NGO Advisor.

O IHV tem suas atividades centradas no Município de São Paulo, mas vai se espalhando progressivamente por outros municípios, sempre contando com a idéia do trabalho voluntário. O Dr. João Paulo Nogueira Ribeiro é especialista em Clínica Médica e Geriatria, sendo também assistente da Disciplina de Medicina Baseada em Evidências na Escola Paulista de Medicina-UNIFESP.
1. Monitor de Saúde (MS) – Como surgiu a idéia do Instituto Horas da Vida (IHV) e como e quando foi criado? Qual a sua filosofia básica e suas áreas de atuação no campo da saúde no Município de São Paulo? Com quantos profissionais voluntários o Instituto conta e em que áreas de especialidade? 
A ideia surgiu quando notei que já fazia atendimentos voluntários em meu consultório e que uma plataforma que pudesse organizar e facilitar esse tipo de atendimento poderia engajar profissionais da saúde na doação de consultas. As primeiras consultas ocorreram em dezembro de 2012 e formalmente o Instituto Horas da Vida foi criado em setembro de 2013. A realização de triagens e o direcionamento dos pacientes aos consultórios de cada profissional foram pontos fundamentais para o sucesso da ONG.
O foco de atuação é a atenção básica de saúde e a missão é a inclusão social por meio da saúde, transformando quem recebe e quem faz o atendimento voluntário. O corpo dos voluntários conta com aproximadamente 3.000 profissionais em 31 especialidades médicas e nas demais profissões da área de saúde, como odontologia, enfermagem, fisioterapia, nutrição, fonoaudiologia e psicologia.
2. MS – Quais os critérios de elegibilidade e mecanismos utilizados para selecionar as pessoas que recebem atenção do IHV? Estes critérios envolvem visitas domiciliares para saber as condições das famílias beneficiadas ou a seleção é feita diretamente na porta de entrada dos serviços? Como uma pessoa necessitada poderá ter acesso ao IHV?
A metodologia do Horas da Vida consiste na parceria com ONGs (de vários segmentos) que se encarregam da triagem sócio-econômica (renda familiar de até 3 salários mínimos) e que o paciente esteja inscrito no SUS e tenha um problema de saúde ainda não atendido pelo serviço público. Desta forma o trabalho voluntário não compete e nem substitui o atendimento público, mas sim ajuda em reduzir alguns gaps de assistência.
Uma pessoa que pertença a uma das ONGs assistidas pelo IHV que tenha um problema de saúde deve procurar o serviço social desta respectiva ONG para solicitar sua consulta.
3. MS – O IHV procura dar acesso à saúde a pessoas que procuraram o SUS e não receberam atendimento total ou satisfatório. Vocês tem uma estimativa de qual a magnitude desta demanda de pessoas que procuram o SUS e não são atendidas ou são atendidas de forma insatisfatória frente às suas necessidades?
Não temos dados do SUS nestas áreas, mas o IHV já realizou mais 60.000 atendimentos. A experiência até agora tem mostrado uma carência de educação em saúde por parte das pessoas. Questões como higiene das mãos e escovação dentária são negligenciadas. Existe ainda um enorme desconhecimento de como deve-se utilizar o sistema e qual é a porta de entrada correta do SUS. Exemplo disto é o número cada vez maior de pacientes que procuram o Pronto Socorro para questões simples e não urgentes.
Por outro lado, há fortes indícios que a equipe responsável pela atenção básica precisa de melhora na infra-estrutura de atendimento, educação continuada e apoio na tomada de decisão. Consultas rápidas e/ou superficiais têm sido pouco resolutivas e geram muitos exames desnecessários.
4. MS - Como se financia o IHV e qual a magnitude das doações que o Instituto recebe? Quem são os maiores financiadores – pessoas físicas ou pessoas jurídicas? O IHV recebe doações internacionais? Se sim, quais são as instituições que mais colaboram (nacionais e internacionais) com doações?
O IHV se financia majoritariamente com a venda de serviços e consultorias na área de saúde, como a realização de mutirões, palestras e campanhas de prevenção em empresas. As doações são importantes e ajudam na sustentabilidade do orçamento de aproximadamente 1 milhão de reais por ano. O instituto já realizou serviços para a J&J internacional e recebeu premiação do Banco UBS, mas ainda não recebeu doação de entidades internacionais. Empresas do setor farmacêutico e de telecomunicações estão entre os principais apoiadores institucionais do IHV atualmente.
Um ponto interessante é que a soma dos produtos e serviços doados supera o valor investido para a manutenção do IHV. Para cada 1 real de manutenção existe uma "taxa de retorno" de 2 a 3 reais.
5. MS – Quantas horas, em média, os médicos e profissionais voluntários dedicam as atividades do IHV por semana? Existe alguma relação contratual que defina um padrão mínimo de horas de trabalho?
Não existe uma obrigação de volume de horas. A doação das horas ocorre de forma voluntária para cada profissional. A premissa é que quando um profissional faça a consulta, que ele mude de patamar a vida do paciente, com a cura, quando possível, e com  acolhimento, cuidado, atenção e orientação sempre. Esta forma tem se mostrado um outro ponto de sucesso, pois quando não se tem a obrigatoriedade da doação, quando ela ocorre se mostra mais efetiva. Em geral as consultas são mais longas, com escuta ativa, história clínica e exame físico bem realizados, o que facilita os diagnósticos, economiza exames e aumenta os desfechos positivos.
Atualmente um percentual pequeno da base de voluntários doa de forma pré determinada e a maioria doa sob demanda.
6. MS – Qual o número de atendimentos de atenção básica que o IHV vem fazendo no município de São Paulo, ano a ano, nos últimos cinco anos? Quanto isto representa do total de atendimentos da população-alvo do Instituto (na faixa de até 3 salários mínimos)? Em que faixas etárias estas pessoas são atendidas?
Os atendimentos começaram de forma tímida e foram aumentando ano a ano. O número de atendimentos gratuitos já ultrapassou 60.000. A população alvo (soma da população das ONGs assistidas pelo IHV) é de aproximadamente 120.000 pessoas, distribuídas em todas as faixas etárias.
7. MS – Que tipo de colaboração ou convênio o IHV vem fazendo com o SUS no município de São Paulo? Este convênio envolve repasse de recursos financeiros? Existe perspectivas de que este tipo de colaboração possa crescer? 
O IHV ainda não tem um convênio com o SUS. Uma parceria, que não envolverá transação financeira, está em vias de se concretizar para que o Instituto possa atender pacientes do SUS e para que os atendimentos sejam reconhecidos pelo sistema público.
8. MS – Que outros tipos de colaboração o IHV vem fazendo com outros serviços de saúde para dar continuidade ao cuidado dos pacientes (hospitais, laboratorios, farmácias, etc.) ?
O IHV realiza várias ações, dentre elas: mapeamento populacional, palestras, mutirões, ações de saúde customizadas para populações e sobre temas específicos de saúde, realização de exames e doações de óculos e medicamentos. Estas atividades engajam profissionais de hospitais, laboratórios,  farmácias e de empresas patrocinadoras. 
Hospitais podem ainda contribuir com exames e segunda opinião de grandes especialistas. Laboratórios e farmácias fazem ações em inaugurações de lojas. Em geral é um ganha-ganha, e o ecossistema do IHV aumenta em capacidade e capilaridade.
9. MS – Em que outros municípios o IHV está atuando? Existem perspectivas de que esta atuação cresça? O modelo utilizado pelo IHV prevê algum tipo de colaboração – tipo franchising – com instituições de outros municípios ou Estados que queiram aplicar este tipo de modelo de atenção às populações carentes?
Além da grande SP, o IVH já realizou ações no Rio de Janeiro, Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, Campos do Jordão e sertão da Bahia. 
Fui vencedor do prêmio Visionaris - Empreendedor Social 2018 do Banco UBS. Parte da premiação foi um programa de aceleração da PWC e nele foi planejada o crescimento da atuação do IHV. A utilização de tecnologias facilitará a atuação direta ou por meio de parcerias em outros Estados e Municípios.
10. MS – Quais as possibilidades do IHV começar a trabalhar através de tecnologias diferenciadas de acesso, tipo telemedicina? O IHV cria algum tipo de base de dados dos pacientes, baseados em prontuários eletrônicos, por exemplo?
A telemedicina começará com o treinamento e apoio a tomada de decisão na relação médico-médico e quando a regulação avançar deve seguir para teleorientação e alguns tipos de teleconsulta. O IHV possui um banco de dados baseado numa plataforma proprietária de prontuário eletrônico. Parcerias com empresas de tecnologia e análise de dados estão sendo firmadas para que possamos dar o próximo passo de forma estruturada e utilizar de forma otimizada a inteligência que estas informações produzem.
Além disso, está em desenvolvimento um aplicativo de bot e comando de voz que poderá incluir pacientes analfabetos de refugiados de outros países.
11. MS – O Brasil é um país considerado com pouca ação de profissionais voluntários no campo da saúde. Isto é verdade? Existem outras instituições trabalhando em propostas similares a do IHV no Brasil? Qual é o futuro do trabalho voluntário na área de saúde no país?
Temos muitas ações voluntárias e felizmente elas têm crescido, mas falta união entre elas e um certo nível de profissionalização. A força do trabalho voluntário ainda depende muito da persistência e resiliência dos fundadores de cada iniciativa para a transformação de uma boa ideia social numa plataforma de filantropia estruturada.
As gerações que estão chegando têm mostrado um desejo genuíno de participação e engajamento no trabalho voluntário. Tomara que isto seja uma realidade duradoura.
Sobre o futuro do trabalho voluntário na área de saúde no país, ouso dizer que ele será um dos pilares para a melhora do sistema de saúde como um todo. A força virá da integração do voluntário e do não voluntário, do público e do privado, do paciente visto como um todo e único e não mais fragmentado em múltiplas especialidades e interesses diferentes.