Ano 2, No. 3, Junho 2007
Tarde de fim de maio em Manágua. O calor da manhã se torna mais ameno com a chuva do início da tarde. Sem água e sem luz - cena que se repete praticamente todas as tardes - os funcionários deixam seu trabalho e andam pelos corredores escuros ou conversam descansadamente nos pátios externos do Ministério da Saúde. O gerador elétrico, embora insuficiente para suprir as necessidades do prédio, ilumina e refrigera a sala de reunião da Ministra de Saúde, Margarita Cuán, enquanto planeja negocia e tenta armar estratégias com sua equipe.
Entre seus desafíos, como chefe desta pasta no Governo eleito do Presidente Daniel Ortega, ela terá que conseguir driblar a falta de recursos orçamentários para sustentar a rede de saúde. Terá que motivar os médicos e funcionários sem estímulo para atender uma demanda insatisfeita por melhores condições de saúde num clima de baixos salários e más condições de trabalho. Terá que lidar com hospitais e postos de saúde semi-destruidos pela falta de investimentos em infra-estrutura e desabastecidos de medicamentos e insumos básicos e terá que promover uma ação ética e de combate a corrupção setorial que está nos poros de toda a administração pública.
Como herança, recebeu vários projetos de investimento e doações de Bancos Multilaterais, de organizações das Nações Unidas e da cooperação técnica dos países desenvolvidos. A soma desses recursos é considerável e, se bem adminstrada, poderia resolver a médio e longo prazo partes das carências de investimento do sistema de saúde. No entanto, os recursos estão atados a projetos que não foram desenvolvidos por sua equipe, a qual substituiu quase integralmente a equipe do governo anterior. A gestão destes recursos representa um enorme custo de transação para o Ministério, já que cada projeto esta submetido à regras distintas de demonstração dos gastos, avaliação de resultados, compras e licitações, sistemas de controle interno e auditoria e absorvem o tempo e inteligência dos funcionários e técnicos do Ministério que poderiam estar se dedicando mais ao planejamento e execução de programas para melhor atender às necessidades de saúde da carente população do país.
A ajuda internacional – financeira e não financeira – cobre temáticamente todas as áreas que poderiam fazer do Ministério um exemplo de administração. Ao abrir as portas das oficinas do Ministério, desabam das prateleiras instáveis pilhas de informes de consultoria – todos muito bons e revolucionários em suas propostas de solução para os problemas do país – mas que caducam pela falta de recursos financeiros, técnicos e humanos para sua implementação. Muitos deles não contaram com funcionários do Ministério para sua elaboração e, dessa forma, não foram absorvidos por aqueles que administram as emergências do sistema no dia-a-dia. Os poucos funcionários que aprenderam alguma coisa ao participar de sua elaboração aumentaram seu conhecimento e poder mas se frustaram em não conseguir implementar o que aprenderam. Alguns, resolveram abandonar a causa pública nacional e ganhar dinheiro em consultorias internacionais em outros países similares para elaborar relatórios similares que, também de forma similar, tem poucas chances de implementação.
Por todos esses motivos, o diálogo do novo Ministério com os organismos internacionais, a cooperação técnica bilateral e os bancos multilaterais tem sido lento e difícil. Projetos em execução tem sido aceitos com certas reservas, procurando utilizar as margens de monobra que tem para mudar componentes e atividades de acordo com suas metas ministeriais ainda em processo de definição. Recursos novos ou programados para o futuro devem ser examinados com muito cuidado para que complementem as atividades que faltam no dia-a-dia do setor.
Este processo não deixa de ter seus custos de transação para o país. Afinal de contas, a descontinuidade ou paralização dos projetos em execução ou negociação aumenta ainda o tempo necessário para a transformação e fortalecimento das instituições públicas de um país que tem um governo débil pela falta de recursos financieros, físicos, humanos e instrumentos gerenciais. Como país pobre altamente endividado (HIPC), Nicaragua tem recebido frequentemente o perdão de sua divida junto aos organismos financeiros internacionais e o novo Governo de Daniel Ortega já tem obtido condições favoráveis nesse sentido. Mas a paralização de projetos baseados em empréstimos ou doações tem custos financeiros para o país, no primeiro caso, e interrompem o fluxo de recursos de doação, no segundo caso, postergando a solução de problemas e o alcance de metas de gestão, tema que está sob suspeita aos olhos da nova administração.
A Ministra tem seus motivos. Frequentemente se queixa que os projetos internacionais levam o Ministério a contratar consultores externos, com salários muito superiores aos quadros da administração pública, para operação e implementação de programas que não são de interesse nacional. Obrigam os governos a contratar empresas consultoras nacionais e internacionais que entregram seus produtos e somem sem dar assistência técnica para a transferência de conhecimento aos quadros ministeriais ou às administrações locais. Em suas próprias palavras, não aceitará mais a venda de experiências piloto ou demonstrativas e quer que os recursos transferidos pelos organismos externos se somem ao orçamento nacional para financiar suas estratégias ainda em definição e o custeio das atividades correntes do Ministerio.
Os organismos externos (internacionais, bilaterais, multilaterais), por sua vez, não escutam adequadamente ou levam em consideração as demandas dos Ministérios e em muitos casos trazem soluções que, ainda que provadas em outros contextos, dificilmente se adaptariam às condições sociais e culturais nacionais e locais. Não sensibilizam ou transferem conhecimento aos funcionarios locais para o uso destas soluções. Não documentam adequadamente as experiências realizadas. Mas, com razão, também não aceitam facilmente que os recursos internacionais sejam utilizados para o financiamento de gastos correntes, como pessoal e consumo de materiais, já que desta forma estariam perdendo a oportunidade de usar estes recursos para realizar investimentos que poderão melhorar no futuro as condições de saúde do país. A debilidade maior dos Ministérios da Saúde em países pobres latino-americanos reside na falta de recursos para investimento e melhorias de gestão, o que poderia ser suprido pelo financiamento externo.
Joseph Stiglitz, - premio Nobel de economia em 2001, ex-chefe do Conselho de Assessoria Econômica da Administração Clinton e ex-economista-chefe do Banco Mundial na administração Wolfenson - falando de sua experiência no Governo norte-americano, relatou que sabia que não só as idéias, mas também a política é importante, e uma de suas tarefas era convencer o Presidente Clinton de que uma boa gestão econômica também era a melhor política. Mas ao mudar para o Banco Mundial, descobriu que nem a boa gestão econômica e nem a boa política dominavam as relações entre os governos e os organismos internacionais. As decisões eram tomadas por uma mistura de ideologia e desastrada política econômica, baseando-se em dogmas que muitas vezes eram uma cortina de fumaça que escondia os reais interesses pactados.
Alguns organismos externos bilaterais utilizam seus recursos de cooperação técnica como meio para abrir mercados para as empresas, produtos e consultores de seus países, obrigando os países receptores a atar os recursos de financiamento à aquição de bens e serviços do país que concede os recursos. Mas ao fazer isso, perdem a perspectiva de que o verdadeiro benefício que poderiam gerar – não somente para os países que recebem os recursos mas para os próprios mercados internacionais – é a criação de condições de desenvolvimento sustentável que alimentem no futuro a participação do país que recebe os recursos nos mercados globais de importação e exportação, em condições que aumentem a equidade e reduzam o hiato de desenvolvimento entre as nações.
As estratégias de curto prazo traçadas pelos organismos financeiros internacionais e bilaterais podem, nessa perspectiva, obstaculizar tanto a melhoria dos mercados internos e a utilização e crescimento da inteligência local como as condições de comércio e bem-estar no contexto global a longo prazo, mesmo que as intenções explícitas destas instituições sejam opostas.
Nicaragua tem sido apontada como um dos países onde existem boas perscectivas de funcionamento de um acordo de coordenação setorial de insitituições internacionais, bilaterais e multilaterais (SWAP) na área de saúde. Mas, embora exista um documento que defina as regras e os mecanismos em que se baseia este acordo, os progressos concretos do SWAP tem sido questionáveis:
a) Primeiro, porque a suposta coordenação, desde o governo anterior, não tem tido a participação ativa do Ministério da Saúde na definição das prioridades. As reuniões de coordenação ocorrem por iniciativa das instituições financiadoras e poucas vezes os técnicos do Ministério se somam a elas. Assim, as prioridades acabam sendo definidas pela cooperação externa e o empoderamento e o interesse do Ministério da Saúde para sua execução é baixo ou inexistente;
b) Em segundo lugar, porque, dada a debilidade dos mecanismos de compras, administração financeira e auditoria do Ministério da Saúde, algumas das organizações participantes do SWAP – em geral as que mais aportam recursos financeiros - mantém formal ou informalmente suas regras de gestão, demonstração financeira e auditoria dos recursos desembolsados pelo Ministério, fazendo com que o esforço de prestar contas passe a ser maior do que o de implementar os programas.
As soluções para as queixas de ambos os lados – governos e organismos internacionais – está na busca de instrumentos de coordenação, negociação, avaliação dos contextos nacionais de saúde, diálogo com atores relevantes, identificação e provisão de um mix de recursos internos e externos para o investimento. Uma melhor coordenação inter-setorial interna no desenho, implementação e avaliação de políticas factíveis e sustentáveis a longo prazo (com os recursos orçamentários alocados de livre e expontânea vontade pelos governos dos países) é outra condição sine-qua-non.
Por fim, para que este processo seja viável, os protagonistas devem ser os técnicos e funcionários dos Ministérios da Saúde e não os bem intencionados técnicos e dirigentes dos organismos internacionais. Estes poderão continuar com seu importante trabalho de dar sugestões, promover recursos para executar aquelas que são aceitas e transferir conhecimento e tecnologia e capacitação para os funcionários dos Ministérios. Mas terão que ficar fora de cena. O palco, o foco e a cadeira de direção deverão estar nas mãos dos Ministérios da Saúde.
A verdade é que, ao diminuir o rítmo de repasse de recursos e rediscutir o papel dos instrumentos de financiamento e coordenação de organismos externos, a Ministra tem um ponto importante. É o país quem decide. Mas o país só decide adequadamente se conseguir manter motivados seus quadros de pessoal, ter instrumentos de comunicação e sensibilização da população sobre o tema e garantir, das autoridades financieras nacionais, os recursos necessários para o financiamento da saúde como prioridade imediata. Sem resolver estes temas, o Ministério da Saúde rapidamente não tardará a ser reconhecido mais uma vez pela cooperação internacional como um tigre de papel e perderá progressivamente a capacidade de ter acesso aos recursos e usar adequadamente o potencial de geração e transferência de conhecimento que esses organismos podem oferecer, sob a administração responsável dos dirigentes nacionais.