segunda-feira, dezembro 20, 2021

Por uma saúde compatível com as necessidades, interesses e possibilidades de todos os brasileiros: Uma entrevista com Antônio Britto

 Ano 16, No. 127, Dezembro de 2021


Quando em fins de 1984, os sonhos de retorno à democracia no Brasil começavam a se tornar realidade, o Congresso Nacional elegeu para Presidência da República o ex-governador de Minas Gerais, Tancredo de Almeida Neves, para substituir o último general da ditadura militar nesta posição, João Batista Figueiredo. Foi então que um jovem, mas já experiente jornalista, foi convidado como assessor de imprensa e porta-voz do novo Presidente, traduzindo para a população as palavras que revelaram a realização desse sonho, apesar da doença súbita que levou este Presidente a falecer antes de iniciar seu esperançoso mandato. Esse jovem e experiente jornalista se chamava Antonio Britto Filho, e a história de sua vida pública se confunde com a história da redemocratização no Brasil.

Tendo nascido em Santana do Livramento em 1952, Antônio Britto começou sua carreira como jornalista aos 18 anos, e em 1979 já era figura central do jornalismo da Rede Globo de Televisão, pela sua competência e dedicação. Após o papel que exerceu como porta-voz do Presidente Tancredo Neves em 1985 ganhou ampla notoriedade pública e iniciou sua carreira política como Deputado Federal pelo PMDB em 1986, onde exerceu dois mandatos, sendo o segundo incompleto, após receber o convite do Presidente Itamar Franco para exercer o cargo de Ministro da Previdência Social, onde implementou políticas que melhoraram as condições de vida dos aposentados brasileiros e deram maior sustentabilidade à previdência social pública no Brasil.  

Em 1994 foi eleito Governador do Estado do Rio Grande do Sul, realizando importantes reformas administrativas e de reestruturação das finanças públicas, para tornar o Estado mais sustentável e ágil na entrega de serviços públicos de qualidade à população. Na primeira década do milênio, Antônio Britto resolveu se dedicar ao exercício de cargos de direção no setor privado em diversos setores como indústria de calçados, telecomunicações, assumindo, em 2009, a presidência da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (INTERFARMA), onde permaneceu por mais de 10 anos, passando a ser um dos grandes conhecedores da estrutura e das necessidades do setor saúde no Brasil.

Em março de 2021, Antônio Britto assumiu a Diretoria Executiva da Associação Nacional de Hospitais Privados (ANAHP), onde tem se dedicado a coordenar importantes iniciativas junto aos principais interlocutores do setor, apoiando e dando instrumentos para aumentar a resiliência dos melhores hospitais do Brasil em prestar serviços relevantes para a população brasileira, neste segundo ano da pandemia do Covid-19. Nesta entrevista, ele faz, não apenas um balanço da sua atuação ao longo destes nove meses à frente da ANAHP, mas também fala sobre as perspectivas do setor hospitalar e da saúde no Brasil para 2022.

****

Monitor de Saúde (MS) – O Sr. assumiu a direção da ANAHP em um dos mais difíceis momentos da economia, do setor saúde e, particularmente, dos hospitais. Como o processo de resiliência dos hospitais durante este segundo ano da pandemia pode ser descrito? Quais os principais elementos que levaram os hospitais da ANAHP a ter uma recuperação tão rápida de sua operacionalidade em 2021?

Antônio Brito (AB) - Estamos muito orgulhosos com a forma como nossos hospitais atravessaram e seguem enfrentando a pandemia. Ao mesmo tempo houve grande flexibilidade na gestão para poder adaptar leitos, processos e serviços às diversas e inesperadas circunstancias; enorme capacidade e qualidade assistencial, responsáveis por resultados extremamente positivos para os pacientes; desprendimento e solidariedade que fizeram de nossos hospitais apoios fundamentais à sociedade e ao setor publico com doações, parcerias e comprometimento no combate à covid;  e, ainda, a participação decisiva em favor da ciência, disseminando informações verdadeiras, orientando a população com conhecimento e bom senso e contribuindo decisivamente para que as pesquisa clinicas em torno das vacinas fossem extraordinariamente rápidas e eficientes. A soma desses fatores permitiu cumprir com nosso papel em 2020, mesmo com queda sensível na receita, fato que este ano, lentamente, está sendo superado, permitindo um cauteloso retorno ao período pré pandemia.

 

MS – A pandemia acelerou determinadas transformações no comportamento dos pacientes e de sua relação com os hospitais. Quais as principais mudanças que a pandemia trouxe para a gestão hospitalar? Quais destas mudanças são temporárias e quais delas vieram para ficar?

AB - Fiz referência, na resposta anterior, à primeira destas transformações: nossos hospitais, gestores e equipes aprimoraram a capacidade de inventar e reinventar processos, alocação de recursos humanos e materiais e cadeias de suprimentos. Outro ponto importante, pelos relatos que recebo, é a consolidação da necessidade de equipes assistenciais multidisciplinares, a valorização de setores como fisioterapia e enfermagem, a consolidação do valor do trabalho em equipe. Uma terceira e decisiva transformação vem pela definitiva incorporação da tele saúde ao dia a dia dos hospitais, médicos e pacientes. Cremos que todas estas mudanças vieram para ficar. No caso da tele saúde, porém, vale advertir que seu futuro dependerá muito da forma como será regulamentada nos próximos meses pelo Congresso Nacional. A ANAHP espera que o texto a ser aprovado permita que a tele saúde amplie o acesso a saúde de qualidade no Brasil, ajude-nos a superar as imensas lacunas de recursos humanos e materiais como tristemente a pandemia mostrou. Para isso, a regulamentação precisa exigir qualidade, evitar transformar a tele saúde em mera equação para reduzir custos ou exacerbar corporativismos. Quem mais precisa de tele saúde é o Brasil distante, mais pobre e menos qualificado tecnologicamente. Não podemos desperdiçar essa oportunidade.

 

MS – O aumento da complementariedade entre os setores público e privado na área de saúde tem sido apontado como um dos principais elementos de sucesso na melhoria das condições gerenciais do setor saúde ao nível das nações. Como anda esta relação no Brasil? Quais são os elementos positivos e quais são os negativos? Como a política nacional de saúde poderia se beneficiar da experiência positiva dos hospitais da ANAHP para entregar melhores serviços a população brasileira?

AB - Infelizmente, o saldo até hoje não está à altura das grandes necessidades brasileiras. Primeiro, pelos preconceitos ideológicos, pessoas que em pleno 2021 ainda pensam que poderá haver um Brasil sem SUS ou só com o SUS. Depois, pela falta de coordenação dentro do sistema público e entre este e o privado. A pandemia trouxe a dramática exposição dos dois Brasis – um onde falta quase tudo, outro onde sobram recursos humanos e materiais. Carência e desperdício, lado a lado, constituem a foto do sistema. Esperamos que as lições da pandemia nos ajudem a superar os preconceitos e buscar com base nas melhores experiências nacionais e internacionais uma melhor gestão e coordenação dos dois sistemas e entre os dois sistemas. Para isso, porém, há um pressuposto político: que as autoridades do setor entendam que não há nenhuma política de saúde eficiente se não for estável, buscando resultados no médio e longo prazo. O festival de políticas de oportunidade e o rodízio de autoridades pelos cargos mais importantes do sistema nos diversos níveis da federação não fazem nada bem à saúde publica. Estabilidade, continuidade, decisões técnicas, compromisso com os cidadãos e os pacientes precisam ser reconstruídos.

A ANAHP, por seus associados e seu Conselho de Administração, tem claro isto: não queremos qualidade apenas nos nossos hospitais. Queremos qualidade no sistema como um todo e todos os conhecimentos, sistemas, plataformas, eventos e dados que possuímos estão mais que nunca à disposição das autoridades, do sistema publico e de quem quiser trabalhar por acesso com dignidade no sistema de saúde do País.

 

MS - A implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1988 foi um importante marco na melhoria do acesso à saúde da população mais pobre no Brasil. No entanto, o SUS ainda padece de graves problemas, como por exemplo: (i) sua inequidade; (ii) sua ineficiência no uso dos recursos e (iii) seu financiamento. Como o Sr. avalia a experiência de implantação do SUS e quais as prioridades que o governo deveria dar ao setor saúde para corrigir estes três grandes problemas?

AB - Primeiro, e já referido, não há SUS que resista a 13 ministros em 18 anos, não importa a que governo ou ideologia pertençam. Outro fato assustador: no final do primeiro ano de mandato dos 5700 prefeitos municipais eleitos para a gestão 2016-2020, mais de 2 mil secretários municipais de saúde deixaram o cargo. O sistema de saúde precisa de estabilidade para poder promover planos e mudanças, realizadas de forma continuada e consistente, ao longo do tempo.  Já deveríamos ter aprendido que soluções de curto prazo e receitas milagrosas e rápidas são apenas discurso de ocasião com um único resultado – agravam os problemas do sistema. Não nos falta conhecimento nem casos positivos para resolver quase todos os problemas do sistema. O que falta é o ambiente político que permita aplica-las como politicas de Estado, vacinadas e imunes à “saúde de ocasião”.

 

MS – As principais fontes de financiamento dos hospitais da ANAHP são os planos de saúde e os recursos diretos das famílias. No entanto, como resultado da pandemia, o ano de 2020 levou a um crescimento das receitas sem o crescimento dos níveis de utilização dos serviços pelos usuários dos planos de saúde. Como resultado deste represamento, em 2021, os planos de saúde passaram a ter que enfrentar um forte aumento da utilização dos serviços num momento em que suas receitas passam a ter limites para expansão. Como os hospitais da ANAHP poderão estabelecer uma relação mais estável com seus financiadores para evitar que possam ocorrer restrições financeiras em 2022?

AB - Por mais obvio que pareça, o maior problema está no fato de boa parte dos planos de saúde e mesmo alguns hospitais não terem se dado conta que fazem parte de uma cadeia. Vive-se hoje um jogo perigoso onde alguns segmentos pensam que poderão obter estabilidade e resultados empurrando a conta para o segmento seguinte. Não percebem que o resultado disso é simplesmente zero. Vivemos um problema estrutural: país empobrecido e injusto gera poucos empregos e na maior parte destes sem capacidade para contratação de saúde suplementar. Empresas empobrecidas resistem a ampliar gastos na contratação de planos para seus colaboradores. E o sistema não pensa nem contempla nenhuma forma de absorver o que é a realidade do mercado: informalidade, trabalho por conta própria, pequenas empresas. Trata-se de algo incrível: o sistema de saúde suplementar é montado para funcionar com o que está deixando de existir no Brasil. E dá as costas ao que é a nova realidade na organização das relações de trabalho e emprego. Por isso ficamos na maldição dos 50 milhões: não passamos desse número de vidas contratadas. Quando a economia tem um suspiro positivo, sobe-se um ou dois milhões. Logo depois vem uma crise e caminha-se na direção dos 45 milhões. Por que? Porque o sistema tem que ser repensado.

Em vez de trabalharmos como cadeia na questão estrutural, boa parte da saúde suplementar tenta resolver o problema conjunturalmente, espetando contas no segmento ao lado. Em vez de discutirmos valor em saúde, nos engalfinhamos por preço na saúde.

MS – O ano de 2022, além de ser um ano eleitoral de forte polarização, será um ano com indicadores bastante precários: inflação mais alta, juros elevados e crescimento baixo do PIB. Como isto poderá afetar o desempenho dos hospitais da ANAHP e quais estratégias poderiam ser utilizadas para a sua superação.

AB - Infelizmente não vemos no cenário para 2022 a oportunidade das discussões estruturais que o sistema de saúde reclama com urgência. E, pior, convivemos com ameaças de ocasião, medidas sem amparo técnico, muito mais movidas pela necessidade eleitoral do que pela convicção administrativa.  Então, os hospitais e os demais segmentos de saúde devem estar conscientes que o que tiver de ser feito será feito dentro de cada um deles, buscando cada vez mais eficiência, revisão de processos, aperfeiçoamento de recursos humanos. Para usar uma linguagem nossa, gaúcha, o que mudar em 2022 será da porteira para dentro...

Este cenário também cria um outro perigo: soluções que se apresentam ao mercado cortando custos, indiscriminadamente, sem pensar ou respeitar o dever moral e legal da saúde – oferecer assistência digna aos pacientes.  Em saúde, talvez mais que em qualquer outro setor da atividade econômica, cortar custos é extremamente fácil – basta dar as costas ao sagrado dever de buscar qualidade. O problema, esse nada fácil, não é cortar custos, simplesmente. E buscar sofridamente equações eficientes que, mantida a qualidade, permitam resultados positivos. Os melhores hospitais, pequenos ou grandes, privados ou públicos sabem que essa é a missão e o desafio.

 

MS - A ANAHP tem tido um grande êxito em sua produção de dados e indicadores para o setor, bem como no enriquecimento do debate sobre o setor saúde no Brasil. A produção do Observatório da ANAHP, Notas Técnicas Trimestrais e a base de dados do SINHA é hoje uma referência para o setor e para a imprensa. Quais são os planos da ANHAP para não apenas continuar esta história de sucesso, mas também fortalecer sua presença no debate sobre os rumos do setor saúde em 2022?

AB - Temos claro o compromisso de contribuir para a qualificação dos hospitais, associados ou não, públicos ou privados. Nosso programa de acompanhamento de desfechos clínicos e nosso sistema de indicadores de qualidade terão grandes novidades em 2022, já definidas e aprovadas. O objetivo central: ampliar seu alcance e seus benefícios a todos os hospitais interessados.


domingo, dezembro 05, 2021

Desafios para as Políticas de Saúde no Século do Envelhecimento

 Ano 16, No. 126, Dezembro de 2021

André Cezar Medici

 

O mundo viveu nos últimos 60 anos uma transição demográfica e epidemiológica sem precedentes, graças à melhoria das condições de vida, aos avanços da medicina e da saúde pública. Embora essas melhorias tenham impactado de forma diferenciada muitas regiões do mundo, em decorrência das desigualdades nos processos de desenvolvimento econômico e social, aumentaram a longevidade das populações em diferentes partes do planeta.

Olhando para as mudanças demográficas dos últimos vinte anos e prevendo as tendências para os próximos trinta anos, fica claro que o século 21 será o século do envelhecimento. Não apenas porque os idosos como parcela da população mundial, tenderão a continuar crescendo como porcentagem da população global, mas também porque os conceitos, práticas e o cotidiano dos idosos ao longo do ciclo de vida, da atividade econômica e da proteção social deverão ser reformulados para incorporar e dar sentido a vidas mais longas, saudáveis ​​e satisfatórias.

Isso não significa que os sistemas de previdência e proteção social criados nos últimos anos terão que ser desmantelados, mas eles deverão, com certeza, estar baseados em novos conceitos e políticas de previdência e proteção social onde atividades econômicas produtivas e comportamentos mais saudáveis ​​deverão incluir um volume crescente de pessoas idosas. Um novo mundo está começando a se formar para incluir os idosos como atores relevantes nos mercados de trabalho, padrões de consumo, lazer e entretenimento.

Esses novos padrões demográficos e sociais devem estar baseados no progresso tecnológico, da ciência e da medicina. Espera-se que a população mundial atinja seu pico nas próximas décadas e comece a declinar a partir de então. O desenvolvimento sustentável da vida humana e do planeta requerem que a sociedade seja convertida de uma economia baseada no carbono para outra onde o uso generalizado de fontes de energia renováveis, levando à redução das pegadas de carbono atuais para que os desafios climáticos possam ser mitigados ou revertidos, a biodiversidade conservada e o meio ambiente protegido.

Nesse contexto, que desafios surgem do ponto de vista do mercado de trabalho para incorporar um número cada vez maior de novos idosos ativos e mais saudáveis? Como os sistemas de aposentadoria e pensão deverão ser adaptados para manter a vida da população idosa economicamente sustentável e socialmente inclusiva? Algumas das respostas a estas questões passam, necessariamente, pela discussão de como os sistemas de saúde serão gerenciados para manter as populações idosas saudáveis ​​e contando com mecanismos de promoção, prevenção, tratamento e reabilitação adequados às suas necessidades de saúde. Quais políticas públicas seriam desejáveis ​​ou já estão começando a se tornar realidade ao nível internacional para trazer soluções inovadoras e sustentáveis ​​para esses desafios?

Um vasto conjunto de tendências, dados e projeções relacionadas ao envelhecimento no século 21 foram explorados por muitos autores e organizações internacionais. A Divisão de População do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas (UNDESA) publicou uma sequência de quatro relatórios entre 2002 e 2015 sobre Envelhecimento da População Mundial (WPA), documentando extensivamente as tendências de envelhecimento e dados demográficos e socioeconômicos relacionados e projeções de previsão pelas próximas décadas. Um desses relatórios, publicado em 2015, sintetizou várias tendências relacionadas ao envelhecimento populacional, seus vetores demográficos e sua relação com o desenvolvimento sustentável. O último desses relatórios[i] atualiza informações para as estimativas atuais da população e faz análises sobre como o envelhecimento da população afeta os ativos, as transferências econômicas intergeracionais e o trabalho no futuro, além de discutir as implicações políticas dessas transformações.

Para responder a estas questões no que se refere às políticas de saúde a Divisão de População da Organização das Nações Unidas (ONU) publicou um artigo que escrevi, o qual detalha as tendências e desafios das políticas públicas de saúde, ao nível global, para enfrentar os temas deste século do envelhecimento.

O artigo se chama Health Sector Challenges and Policies in the Context of Ageing Populations e pode ser baixado em PDF no link permanente abaixo:

https://www.un.org/development/desa/pd/sites/www.un.org.development.desa.pd/files/files/documents/2021/Nov/technical_paper_healthy_life_expectancy_29nov.2021_0.pdf

O objetivo deste artigo é atualizar, na esteira desse processo de envelhecimento, as seguintes questões: Quais são as condições de saúde e os riscos à saúde que envolvem as populações em envelhecimento? Quais são as tendências relacionadas a morbidade e a incapacidade associada à doença na terceira idade e os desafios econômicos relacionados? Como a promoção e a prevenção na saúde dos idosos podem contribuir para uma vida mais saudável com custos sustentáveis? Que tipo de serviços e sistemas de proteção social à saúde estão disponíveis para aumentar o acesso aos cuidados e garantir proteção financeira da saúde para a população idosa?

A pandemia Covid-19, desde o início de 2020 até o presente, representou um grande desafio para os governos e para a população idosa. Afetou desproporcionalmente a mortalidade em idades mais avançadas e o funcionamento de instituições voltadas para pessoas idosas, como asilos, lares e comunidades de idosos. Mas as medidas de proteção para essas populações aumentaram, assim como as novas políticas sociais também ajudaram a reverter parcialmente essa situação. Em qualquer caso, o mundo pós-pandêmico apresenta novos desafios para os idosos que precisam ser enfrentados.

Em síntese, este artigo busca investigar como esses desafios foram enfrentados até o momento, incluindo soluções de políticas em países selecionados, para reduzir esses riscos e trazer soluções para alcançar vidas saudáveis, ativas, sustentáveis ​​e de qualidade para essas novas gerações de idosos que ocuparão este século de envelhecimento. Espero que vocês se interessem, possam acessar e ler o artigo, a partir do link colocado anteriormente.



[i] United Nations, Department of Economic and Social Affairs, Population Division (2019). World Population Ageing 2019: Highlights (ST/ESA/SER.A/430).

quarta-feira, dezembro 01, 2021

A Vacinação Global e a Variante Omicron: Teremos novamente que postergar as expectativas?

Ano 16, Número 125, Dezembro de 2021

André Cezar Medici

Os progressos na vacinação contra a Covid-19

Apesar do crescimento de casos de Covid-19 na Europa e Estados Unidos ao longo dos últimos meses, e da resistência irracional de parte da população destes países contra as vantagens cientificamente comprovadas pela imunização, o avanço nos processos de vacinação contra o vírus da Covid-19 trouxe uma luz no fim do túnel para os governos e para a sociedade que ainda sofrem o stress trazido pela pandemia e pela ansiedade em retomar as atividades econômicas, sociais, educacionais e a “liberdade de ir e vir”, as quais garantem o crescimento econômico sustentável numa sociedade cada vez mais globalizada.  

Observando os dados, podemos dizer que a vacinação contra a pandemia, que começa logo no início de 2021, interrompeu um período de crescimento quase exponencial do número de casos de Covid-19 ao longo de 2020, ainda que tenha inaugurado uma espécie de “roller-coaster” na dinâmica global da pandemia nos últimos meses. Em outras palavras, os novos casos diários de Covid-19, ao nível global, deixaram de crescer de forma contínua, como ocorreu em 2020, e passaram a se configurar como um movimento cíclico de vai e vem ao longo de 2021, como pode ser visto no gráfico 1.


Nos países mais ricos e com instituições sólidas, o crescimento da vacinação teve rápido crescimento entre os segmentos da população com melhores níveis educacionais e mais informação. Eles acreditaram que a imunização era a chave para reduzir o risco pandêmico e retornar à normalidade. Mas, na medida em que esses segmentos se vacinaram e os níveis reduzidos de contaminação trouxeram o retorno progressivo de atividades econômicas, educacionais e de convivência social, começou a ficar visível a resistência à vacinação entre determinados segmentos menos conscientes, criando barreiras para evitar a expansão do número de infectados. Se soma a isso tudo o descontrole da expansão pandêmica entre os países mais pobres, sem disponibilidade de recursos ou organização logística para vacinar seus habitantes. O negacionismo e a pobreza são hoje os dois grandes desafios para universalizar a vacinação e, dessa forma, prever o fim da pandemia.


Os Desafios na Vacinação Contra a Covid-19

 

Desde outubro de 2021 o mundo registra um novo crescimento dos casos diários de Covid-19, associado a expansão das Variantes Delta e Delta-Plus, em crescimento na Europa e nos Estados Unidos[i], e à resistência prolongada de setores da população nestes países em aceitar como necessária a vacinação, seja por motivos religiosos, ideológicos ou mesmo por acreditar em notícias falsas veiculadas nas redes sociais. Novas variantes do vírus numa sociedade com dificuldades de expandir rapidamente a cobertura vacinal tem sido elementos que fazem com que os avanços trazidos pelas vacinas contra o Covid-19 não tenham alcançado ainda plenos resultados.

Em 27 de novembro de 2021, segundo os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas 42,8% da população mundial tinha completado o processo de vacinação contra o Covid-19, apesar de já terem sido administradas quase 8 bilhões de doses de vacina, ao nível mundial. A cobertura de vacinas varia desde 100% da população, em micro países ou localidades ricas como Aruba, Bahrain, Ilhas Cayman, Gibraltar, Malta, Turks & Caicos e Emirados Árabes Unidos, até menos de 2% em países muito pobres como Burundi, Chad, Congo, Etiópia, Guine Bissau, Haiti, Madagascar e Sudão do Sul.

O gráfico 2 mostra a evolução do processo de vacinação contra o Covid-19 entre os distintos grupos de países, segundo o nível de renda, na classificação do Banco Mundial, demonstrando que há uma forte correlação entre a renda per-capita e o progresso nos níveis de vacinação.

Os dados revelam que, em fins de novembro de 2021, os níveis de vacinação permanecem críticos entre os países de renda baixa, com valores médios inferiores a 10 vacinas para cada 100 habitantes, enquanto que os países de renda alta e de renda média alta alcançaram taxas de vacinação superiores a 140 para cada 100 habitantes. Há ainda um hiato razoável para que seja completado o processo de vacinação, inclusive nos países de renda alta, ao se considerar que, em geral, são necessárias pelo menos de duas doses para cada habitante (com exceção da Jensen) para uma imunização total. Se soma a isso, a necessidade de reforço ou terceira dose para determinados segmentos da população (idosos, pessoas com condições crônicas, etc.), o qual se tornou premente com os resultados de estudos científicos que acompanham os níveis de anticorpos entre populações vacinadas, evidenciando que há um declínio ou perda de imunidade entre vacinados num período de 6 a 8 meses a partir da segunda dose. Adicionalmente, o advento de variantes onde a eficácia da vacina é menor, como as Delta e Delta-Plus tem sido outros fatores que aumentam a necessidade de doses de reforço.

A necessidade de mais vacinas também aumenta pelo fato de que muitos países, como os Estados Unidos, já estão autorizando a aplicação de vacinas para crianças a partir dos cinco anos de idade e já cogitam a terceira dose imediata para os maiores de 18 anos com mais de 6 meses de distância da segunda dose, processo que certamente se repetirá em todos os países.


O gráfico 2 mostra também a trajetória do processo de vacinação desde dezembro de 2020.  Fica evidente que os países de renda alta (Estados Unidos, Europa, Japão, etc.) saem na frente no processo de vacinação, mas são alcançados pelos países de renda média alta (como Brasil, Rússia, China, África do Sul, etc.) a partir de outubro-novembro de 2021 que aceleraram o ritmo de vacinação de suas populações na mesma fase em que desacelera o ritmo de imunização nos países de renda alta[ii].

Pode-se ainda dizer que, por razões que necessitam maiores estudos sociais e comportamentais, os países de renda alta, mesmo tendo uma ampla disponibilidade de vacinas para sua população, tem apresentado, como já mencionado, forte resistência de parte substancial de seus habitantes, em se vacinar, especialmente aqueles sob influência de lideranças políticas ou religiosas radicais ou grupos de menor escolaridade, por questões não só de desinformação ou por informações falsas veiculadas em redes sociais de mídia que são, atualmente, o principal acesso comunicacional de parte expressiva dessas populações.

No caso dos países de renda média alta, ao contrário dos países ricos, há uma ampla aceitação de sua população às vacinas e o nível de vacinação avança de acordo com a disponibilidade das empresas farmacêuticas nacionais e internacionais em produzir ou exportar vacinas para estes países. Essa diferença comportamental é importante para explicar algum sucesso na redução de casos e mortes pela pandemia nos países de renda média alta, especialmente em determinadas regiões como a América Latina.  

Os Casos do Brasil e dos Estados Unidos

 

Vejamos, por exemplo, o que ocorre na comparação entre os Estados Unidos e o Brasil - dois populosos países, um de renda alta e outro de renda média alta - que detiveram, por algum tempo, os maiores quantitativos de casos e mortes por Covid-19. O gráfico 3 mostra a evolução do número de vacinas aplicadas por 100 habitantes entre janeiro e novembro de 2021. 

Fonte: https://ourworldindata.org/covid-vaccinations

 

Observa-se que nos Estados Unidos, há substancial crescimento das taxas de vacinação entre janeiro e junho de 2021, como resultado das promessas de campanha de Joe Biden em vacinar a maioria dos habitantes no primeiro semestre de 2021, após vencer as eleições contra Donald Trump. O uso de estímulos econômicos do governo federal e dos governos estaduais para que a população jovem ou mais pobre se vacinasse, como pagamentos de bônus monetários aos que se dispunham a vacinar, prêmios de loterias e outro, foram importantes incentivos para adesão da população relutante e para o progresso da imunização, que alcançou níveis aparentemente confortáveis até a festa da independência, quando muitos norte-americanos, confiantes na vacinação e observando a redução de casos após a primeira onda pandêmica, lotaram os espaços públicos para comemorar a queima de fogos de artifício no dia 4 de julho.

No entanto, entre julho e novembro de 2021 se iniciou uma redução no ritmo de crescimento das vacinas administradas, demonstrando que existe um teto para o número de norte-americanos que aceitam ser incluídos no processo de vacinação contra o Covid-19. Atualmente, o número de pessoas totalmente vacinadas nos Estados Unidos se aproxima ao número de pessoas que receberam a primeira dose, demonstrando um espaço de rejeição substancial entre os que ainda não se vacinaram.

O uso de regulações restritivas para os não-vacinados tem sido tímido e o governo tem estudado meticulosamente se vale ou não a pena tomar medidas mais drásticas, como proibir a circulação de pessoas em espaços públicos fechados, ambientes de trabalho, estabelecimentos comerciais e templos religiosos, sob a pena de perder a popularidade entre aqueles que acham que tem o direito individual de não se vacinar, colocando em risco suas vidas e as de parte substancial da coletividade. Poucos estados, como Nova York[iii], têm adotado o passaporte de vacina para o uso de espaços públicos, como restaurantes, ou para autorizar o retorno presencial ao trabalho.

No Brasil, ocorreu o contrário, ou seja, se observou uma ampla disposição das famílias em se vacinar, apesar do negacionismo do presidente da república e de suas estratégias de marketing para criar um sentimento contrário à vacinação entre a população brasileira. Sendo assim, o avanço da vacinação no Brasil tem sido exponencial e só não foi maior em função de várias disfuncionalidades iniciais, como a falta de vacinas provocada pelo atraso em negociar acordos do governo com as empresas farmacêuticas para a compra antecipada e produção nacional de imunobiológicos para o Covid-19, além de demoras não previstas na produção nacional de vacinas como a CoronaVac e a Oxford-AstraZeneca. Muitos destes atrasos na negociação de vacinas ocorreram apesar dos esforços de algumas farmacêuticas, como a Pfizer, em tentar fechar antecipadamente acordos com o governo que poderiam ter posto o país numa situação mais segura no início do processo de vacinação.

O aspecto positivo, no entanto, foi o grande esforço da imprensa, das redes de comunicação, de algumas mídias sociais e dos governos estaduais e municipais não alinhados com o governo federal, em conscientizar a população e pressionar a classe política para avançar com o processo de vacinação e disponibilização de recursos para a compra e distribuição de vacinas, o que acabou levando o Brasil a alcançar, em 1º. de novembro de 2021, um número de vacinas administradas por 100 habitantes (130,4) superior ao existente nos Estados Unidos (127,0), como se observa no gráfico 3.

 O Dilema  da Vacinação nos Países Pobres

 

Nos países mais pobres e de renda média baixa, como demonstrou o gráfico 2, a vacinação tem avançado a passos muito lentos. Em 27 de novembro de 2011, por exemplo, o número de vacinas administradas nos países de renda média baixa era em torno de 70 por 100 habitantes, enquanto que nos países de renda baixa era de apenas 8 por 100 habitantes.

Os países de renda alta e de renda média alta tiveram mais do dobro de vacinas administradas por 100 habitantes do que o registrado nos países de renda média baixa em 27 de novembro de 2011 (em torno de 148 por 100 habitantes). Enquanto isso, os países de renda baixa tinham, nesta mesma data, níveis de administração de vacinas equivalentes aos registrados em 1º de fevereiro de 2021 nos países de renda alta. Isso pode indicar que, apesar de sua importância, os mecanismos de disponibilização de vacinas para os países mais pobres, como o COVAX, administrado por um consórcio de instituições multilaterais e-bilaterais liderados pela OMS, não têm sido suficientes para reduzir o fosso de cobertura entre as necessidades de vacinação e a disponibilidade de vacinas nos países mais pobres[iv]. Tudo isso, está associado, a vários fatores, cabendo destacar:

·       Primeiramente, a absorção de grande parte da produção de vacinas do Covid-19 pelos países de renda alta e de renda média alta, os quais tem poder de compra e disponibilidade de recursos para adquirir e estocar mais vacinas do que necessitam, em detrimento dos países de renda média baixa e renda baixa, que além das dificuldades financeiras, técnicas e operacionais para comprar, estocar e administrar vacinas, dependem da ajuda dos organismos multilaterais e da caridade dos países ricos para adquirir vacinas para seus cidadãos; 

·      Em segundo lugar, pelo fato de que há um forte desconhecimento das necessidades de vacinação nos países mais pobres. Segundo estimativas do Institute of Health Metrics and Evaluation (IHME), se pode dizer que embora o número oficial de mortes globais por Covid 19 esteja em torno de 5,1 milhões ao fim de Novembro de 2021, o número real do legado de mortes trazidos pela pandemia foi em torno de 12,2 milhões de vidas (variando entre 8.6 e 17,7 milhões), e a maior parte das mortes não registradas esteve concentrada nos países mais pobres. A inexistência de dados e registros consistentes sobre casos e mortes por Covid-19 se soma à falta de testes para diagnóstico e infraestrutura de saúde para tratamentos e hospitalizações, acarretando em um número extraordinário de casos e de mortes não registradas ou declaradas.

O gráfico 4 mostra que existe uma correlação exponencial entre o percentual de registro de mortes por Covid-19 como proporção das mortes totais pela doença e a renda per-capita das regiões mundiais, ou seja, quanto mais rica é a região, maior a capacidade institucional de registrar mortes por Covid-19 e, portanto, de ter indicadores que possam orientar a ação do governo no sentido de políticas proativas para orientar a vacinação, além da precisão das medidas de distanciamento social, hospitalização, alocação de recursos para o combate à pandemia e tratamento de casos.


Regiões mais pobres, como a África Subsaariana e a Ásia do Sul, registraram até novembro de 2021 entre 10% e 20% das mortes estimadas por Covid-19. Em um patamar um pouco mais alto está a Ásia do Leste e Pacífico e o Oriente Médio e Norte da África, que registram entre 30% e 40% das mortes estimadas. Um pouco mais acima, se encontram regiões como a América Latina e Caribe e Europa e Ásia Central, que registraram entre 70% e 80% das mortes.  Por fim, a América do Norte (Estados Unidos e Canadá) foi a região com o melhor desempenho no registro de mortes por Covid-19, alcançando uma contabilidade de mais de 80% das mortes estimadas.

A América Latina e Caribe, como região, teve um bom desempenho relativo no registro de mortes pela pandemia, sendo, em relação à sua renda per-capita, um ponto fora da curva apresentada no gráfico 4 quando comparada com as demais regiões mundiais. Apesar de ter uma renda média per capita equivalente a um terço da estimada para os países da Europa e Ásia Central, a região apresentou um desempenho na capacidade de registro de mortes por Covid-19 ligeiramente superior ao daquela região, o que demonstra um alto nível de confiabilidade nos sistemas de vigilância epidemiológica montados para o registro de mortes associadas ao Covid-19.

Já nos países da África Subsaariana (com algumas exceções) os governos não têm como atender às necessidades de suas populações frente ao avanço da contaminação pandêmica. Além de outros graves problemas, como a incidência endêmica de outras doenças transmissíveis já erradicadas nos países de maior renda, indicadores precários de desnutrição e mortalidade materna e infantil, se somam às fortes deficiências nas estruturas de promoção, prevenção e tratamento organizadas através dos sistemas de saúde locais. Tudo isso tem levado muitos governos africanos a um negacionismo extremo, à indiferença ou a soluções inefetivas para o combate à pandemia.

Artigo recente publicado no The Wall Street Journal reportou que na Tanzânia, o ex-presidente John Magafuli que morreu em fevereiro de 2021 em decorrência de complicações de Covid-19, negou a existência da pandemia em seu país, propondo práticas irresponsáveis como receitar publicamente panaceias para o tratamento de gripe ou pneumonia e proibindo o registro e a coleta de dados sobre casos e mortes associados ao Covid-19[v], além da perseguição política a médicos e entidades que ajudavam as comunidades pobres a se proteger e a tomar medidas de precaução em relação à pandemia.

A Necessidade de Vacinar vai Além das Fronteiras Nacionais

Os progressos da vacinação contra o Covid-19 em 2021, embora tenham sido aquém do desejável, foram muito importantes para a redução do número de casos graves, hospitalizações e mortes pela pandemia.

Sabe-se hoje que as vacinas existentes podem não ser totalmente eficazes na prevenção dos casos de Covid-19, mas são a melhor forma de evitar casos graves e de hospitalização pela doença. Um estudo conduzido pelo Center of Diseases Control (CDC) dos Estados Unidos entre 4 de abril e 2 de outubro de 2021[vi], demonstrou que uma pessoa não vacinada tem 5,8 vezes mais probabilidade de contrair Covid-19 e 14 vezes mais risco de mortalidade pela doença do que uma pessoa totalmente vacinada (ou seja, duas semanas após receber a segunda dose da vacina), como pode ser visto no gráfico 4[vii].


A vacinação em massa, portanto, é a melhor aposta para a regressão da contaminação pandêmica. Mas o esforço de vacinação numa sociedade globalizada, onde as pressões para a retomada das atividades econômicas e do comércio mundial são a essência da prosperidade e do combate à pobreza, tem que ser um esforço global, e não apenas dos países que podem custear a produção de vacinas e a administração das estratégias de vacinação.

Se os países ricos e de renda média alta não colaborarem com os organismos multilaterais em buscar recursos e estratégias para a vacinação dos países mais pobres[viii], onde o número de casos e de mortes reais pela pandemia é várias vezes superior ao número de casos e mortes registradas, estarão contribuindo para que o quadro de risco pandêmico não venha a se reverter tão cedo. E a razão para isso é muito simples. Nestes países, onde os níveis de contaminação são mais elevados como resultado dos baixos níveis de vacinação, se geram condições mais favoráveis para o surgimento de variantes de "interesse" e "preocupação" do Covid-19, dado que um número maior de organismos humanos infectados aumenta a probabilidade do coronavírus, ao infectar células e reproduzir-se, produzir erros ao copiar seu próprio material genético, gerando então novos vírus com mudanças na sequência de RNA. Portanto, quanto mais pessoas forem infectadas, maior será a taxa de replicação e maiores são as chances de surgirem novas variantes do Covid-19.

Na ausência de medidas globais de controle de aeroportos e fronteiras, distanciamento social, uso de máscaras e vacinação mandatória, as novas variantes que surgem nos países onde a transmissão é elevada e a vacinação é baixa, novamente passam a correr o mundo e acabam contaminando as pessoas que não se vacinaram nos países ricos ou até mesmo as pessoas com vacinação completa, dado que, como mencionamos antes, novas variantes podem enfraquecer o grau de imunização das vacinas até o momento ministradas.

Assim, a Variante P1 foi gerada no Amazonas – um estado brasileiro pobre e desigual - num momento em que enfrentava uma grande crise de contaminação pandêmica. A variante Delta foi gerada na Índia em condições similares, tomando em consideração que a Índia, apesar de ter alcançado níveis relativamente elevados de vacinação completa para um país de renda média baixa (32% em 27 de novembro de 2021), apresentava, na mesma data, um registro de mortes por Covid-19 de 14% do total de mortes estimadas no país, o que demonstra que o sistema de vigilância ainda é bastante débil.

Toda vez que o vírus replica no organismo de uma pessoa, há uma chance de surgir uma variante. Quanto maior a taxa de replicação, e quanto mais pessoas são infectadas, maiores são as chances de surgirem novas variantes. Mas nem sempre os países mais pobres têm a possibilidade de identificar estas variantes, dado que as mesmas dependem de sofisticados sistemas de sequenciamento do genoma do vírus que não estão disponíveis nestes países.

Portanto, os insuficientes níveis de vacinação nos países mais pobres, além de abrirem espaço para a criação de novas variantes do Covid-19, fazem com que a descoberta destas novas variantes ocorra quando os níveis de infecção das mesmas já atingem níveis comunitários e são exportados para outros países, o que torna premente a necessidade de medidas globais que possam facilitar o aumento dos níveis de cobertura vacinal contra o Covid-19 nos países mais pobres.

 O Desafio da Nova Variante Omicron

Desde a semana passada há notícias, em certo sentido alarmantes, sobre a expansão da variante Omicron do Covid-19 (Variante B.1.1.529). Identificada inicialmente em 9 de novembro de 2021 em Botswana, a variante foi reportada à OMS pelo sistema de saúde da África do Sul tendo sido imediatamente classificada como “variante de preocupação”[ix] porque em seu sequenciamento genético foi identificado um número muito superior de mutações quando comparado com qualquer outra variante previamente identificada. Seguem abaixo algumas das características que marcam esta nova variante:

  •  Número de mutações:  Cientistas reunidos pela OMS nos     últimos        dias            descobriram preliminarmente que a variante Omicron tem entre 45 e 52 mutações em seu perfil genético, mas dessas, foram destacadas como relevantes 26 a 32 mutações que   ocorrem na proteína “spike”, a qual estabelece  os     canais     de     infecção    do   vírus    nas células humanas na transmissão e desenvolvimento da Covid-19.
  • Efeitos das mutações: A avaliação das novas variantes busca detectar se as mutações são capazes de tornar o vírus resistente aos efeitos das vacinas, se tornam o vírus mais transmissível em comparação com as variantes existentes e/ou se aumentam a severidade e a hospitalização relacionada à doença. Estes temas estão sendo pesquisados em várias frentes em relação a variante Omicron, mas ainda não há respostas definitivas. Mas parece que a Omicron aumenta a transmissibilidade da doença em proporções maiores do que a variante Delta, em função dos resultados encontrados na África do Sul, expressos no gráfico 6, onde a Omicron (B.1.1.529) passa a representar quase 75% dos novos casos de Covid-19 registrados na primeira quinzena de novembro de 2021.



  •  Número de países onde a variante foi detectada: Até 30 de novembro de 2021 havia a notícia de que o número de países que identificaram a variante Omicron estava em torno de 20, mas esse número é incerto, dado que a cada hora novas notícias se sobrepõe, como a identificação, há poucas horas, de 61 dos 624 passageiros em um voo que chegou em Amsterdã proveniente da África do Sul. Em 1º de dezembro 3 casos já haviam sido identificados em São Paulo (Brasil) de passageiros oriundos da África do Sul e Etiópia (noticiado pela rede Bandeirantes), nos Estados Unidos (pelo menos un caso na California). Dos vários casos já identificados no Reino Unido, seis foram encontrados na Escócia, dos quais um deles de uma pessoa que não havia viajado para outros países e localidades, criando suspeitas de que já existe transmissão comunitária.
  • resposta das farmacêuticas e produtoras de vacinas: As empresas farmacêuticas estão apreensivas, mas já iniciaram testes em relação a variante Omicron. Mikael Dolstein, cientista da Pfizer, admite que a Omicron pode exigir novas vacinas se a nova variante superar a Delta globalmente e reduzir a proteção da vacina atual. Neste caso, a empresa deverá produzir uma nova vacina que deverá estar pronta até março de 2022. Paul Burton, diretor médico da Moderna, afirma que a empresa também poderia lançar uma vacina reformulada contra a variante no início do próximo ano, embora ainda não esteja claro se novas formulações serão necessárias ou se as vacinas atuais fornecerão proteção contra a nova variante. Já os representantes da AstraZeneca afirmaram que estão estudando os efeitos da vacina na variante Omicron em Botswana e Eswatini para coletar dados, enfatizando que sua vacina tem se mostrado eficaz em relação a todas as variantes do SARS CoV-2 até o momento.

Ainda é cedo para saber se a variante Omicron trará uma nova onda de contaminações, mortes e restrições à vida cotidiana, afetando ainda mais o crescimento econômico global e, especialmente, dos países pobres. Mas, pelo menos em minhas reflexões, considero que a melhor resposta global para evitar um longo e penoso período de doença e estagnação na economia global, seria aumentar a cobertura de vacinação em todos os países, tornando mandatório os testes e provas de vacinação para voos internacionais e investindo pesadamente em níveis globais de imunização que evitem a circulação do vírus e o surgimento de novas variantes. Isto exige, fundamentalmente, a responsabilidade e cooperação global para fortalecer os mecanismos de imunização e os sistemas de saúde dos países mais pobres, de onde saem hoje as principais variantes da pandemia. Não é apenas uma questão de solidariedade, mas também de sobrevivência e bem estar dos países ricos. Caso contrário, teremos que postergar indefinidamente nossas expectativas de retomar uma rota de crescimento sustentável.



[i] A variante Delta-Plus em países como a Inglaterra e os Estados Unidos representava cerca de 11% dos novos casos pandêmicos ao início de novembro de 2021.

[ii] A China, por exemplo, alcançou em 28 de novembro uma taxa de 1,9 vacinas para cada habitante, tendo como política explicita a universalização da segunda dose antes do final do ano em 2021.

[iii] Além de Nova York, que já adotou o passaporte da vacina, outros estados como Havaí e Illinois estão em processo de adotar. Enquanto isso, outros estados como Florida, Texas, Georgia, Tennessee, Missouri e Nebraska se pronunciaram veementemente que não irão adotar o passaporte ou medidas públicas restritivas contra não vacinados.

[iv] O mecanismo COVAX se dispõe a distribuir 2,0 bilhões de doses de vacinas para 92 países pobres em 2021 e 1,8 bilhões de doses adicionais em 2022, mas estes números para 2021, até o momento, não foram alcançados. A estimativa, em setembro deste ano, reflete um total de 1,4 bilhões de vacinas a serem distribuídas. Sobre as projeções iniciais do COVAX, ver Medici, A.C. (2021), Necessidades de Financiamento Global para Combater a Pandemia e Disponibilizar a Vacina em 2021, in blog Monitor de Saúde, Ano 15, No. 113, Janeiro de 2021, Link:   https://monitordesaude.blogspot.com/2021/01/covid-19-necessidades-de-financiamento.html

[v] Ver Parkinson, J. (2021), “Inside the World´s Most Blatant Covid-19 Coverup: Secret Burials, a Dead President” in The Wall Street Journal, published in November 4, 2021.

[vi]CDC (2021), “Rates of COVID-19 Cases and Deaths by Vaccination Status”. Link: https://covid.cdc.gov/covid-data-tracker/#rates-by-vaccine-status.

[vii] O gráfico 4 mostra também que existe evidência de diferenciais na eficácia relativa das vacinas no número de casos de Covid-19 na população totalmente vacinada, onde a Moderna e, em seguida a Pfizer, se posicionaram melhor do que a Janssen.

[viii] Até a data da publicação deste artigo, os Estados Unidos haviam distribuído, via COVAX, mais de 300 milhões de doses sobrantes de vacinas para países pobres e a China havia se comprometido a entregar cerca de 1 bilhão de vacinas somente para os países africanos.

[ix] Sobre a classificação das variantes do Covid-19 utilizada pela WHO, ver Medici, A.C. (2021), A Dança das Variantes in Blog Monitor de Saúde, Ano 15, No. 120, Junho de 2021, link: https://monitordesaude.blogspot.com/2021/06/covid-19-danca-das-variantes.html

 

quarta-feira, outubro 13, 2021

Experimentos Naturais e Economia da Saúde: Um Comentário sobre o Prêmio Nobel de Economia de 2021

 Ano 16, No. 124, Outubro de 2021

André Cezar Medici


Introdução

No dia 11 de outubro foi anunciado o prêmio Nobel de ciências econômicas de 2021, agraciado a três economistas norte-americanos: David Card, da Universidade da Califórnia (Berkeley), Joshua Angrist, do Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT) e Guido Imbens, da Universidade de Stanford. O tema que levou à premiação foi a utilização dos métodos associados a experimentos naturais na solução de problemas de análise econômica. Caso Alan Krueger, que foi professor da Universidade de Princeton, ainda estivesse vivo, provavelmente seria o quarto a receber este prêmio em 2021, dadas suas vastas contribuições associadas ao tema.

Um experimento natural é um estudo empírico ou observacional no qual o controle das variáveis de interesse não é feito artificialmente pelos pesquisadores. Dessa forma, os resultados do experimento são determinados por fatores naturais que estão fora do controle dos pesquisadores. Assim, ao contrário dos experimentos aleatórios tradicionais, os experimentos naturais são observados e analisados pelos pesquisadores sem que estes exerçam seu controle sobre eles. Seus resultados são mais eficazes quando o desenho destes experimentos replica condições próximas às que ocorrem em experimentos aleatórios tradicionais. Para que isso ocorra, deve se identificar na população um grupo claramente definido que é exposto à condição a ser investigada, ao lado da ausência dessa exposição em outro grupo semelhante da população, o qual é utilizado como grupo de controle ou de comparação. Quando é possível identificar a presença destes dois grupos (o de investigação e o de controle), o desenho dos experimentos naturais poderá ter resultados similares ao da randomização de um experimento aleatório tradicional (controlado), mesmo não havendo a interferência dos pesquisadores.

É necessário também fazer uma distinção entre os experimentos naturais e os estudos puramente observacionais[i]. Os primeiros seguem os princípios básicos dos experimentos controlados, pois imitam da forma mais aproximada possível a existência de grupos de controle existentes nos experimentos controlados, pesquisando, além da observação, uma relação de causalidade entre as variáveis estudadas. Já os estudos puramente observacionais tendem a ser mais descritivos e as circunstâncias que os cercam, por serem complexas na maioria dos casos, trazem observações relevantes, mas sem  poder comprovar inequivocamente a existência de causalidade.

Experimentos aleatórios tradicionais ou controlados tem sido utilizado há algum tempo nas ciências médicas, estando relacionados a estudos randomizados e controlados para o teste de novas terapias, medicamentos, vacinas ou equipamentos médicos, onde se podem conduzir ensaios clínicos rigidamente controlados para provar se os efeitos positivos, por exemplo, de uma nova droga ou vacina, realmente se manifestam nas populações testadas, comparando os grupos que recebem a nova terapia, medicamento, vacina ou tratamento com aqueles que não a recebem (placebo).

Mas diferentemente do que já ocorre a tempos nos estudos médicos, os economistas raramente haviam conduzido estudos econômicos baseados em experimentos aleatórios tradicionais ou controlados para mapear, por exemplo, seus efeitos em populações afetadas por políticas econômicas. Entre as razões para tal se encontra o fato de que estudos randomizados e controlados em economia são muito mais custosos do que aqueles realizados nas ciências médicas, onde os objetos de investigação, por serem limitados e com populações mais claramente identificadas, não necessitam de grandes amostras populacionais e acabam sendo menos custosos.  Mas, como consequência, persiste o sentimento geral de que a ausência de randomização é a principal razão pela qual as pesquisas econométricas parecem menos convincente do que as pesquisas em medicina ou em outras ciências experimentais[ii].

A incerteza tem sido uma condição presente na análise econômica, já que a realidade sempre desafia as tentativas dos economistas em estabelecer relações de causalidade. Mas recentemente tem crescido o número de economistas que buscam utilizar processos de randomização para estudar os efeitos de políticas públicas na economia. Por exemplo, ao estudar os efeitos dos programas públicos de treinamento profissional sobre a renda dos participantes, os economistas laborais tem dado mais crédito aos estudos randomizados de atribuição aleatória do que aos estudos econométricos baseados em modelagem estrutural. Estudar, por exemplo, como o aumento dos salários afeta o nível de emprego nem sempre é uma tarefa fácil, já que muitas outras variáveis podem afetar os resultados.

Os Experimentos Naturais em Economia

O que marca a diferença na premiação do Nobel de 2021 é o fato de que os estudos de Card, Angrist e Imbens utilizaram os experimentos naturais para temas econômicos, nos quais algumas particularidades observadas foram pesquisadas em séries históricas de dados que simularam efeitos semelhantes a um teste randomizado controlado ou intencional. 

Card, utilizou o instrumental dos experimentos naturais para produzir estudos baseados em evidências empíricas sobre economia laboral, enquanto que Angrist e Imbens concentraram sua produção acadêmica nas áreas de metodologias de observação e análise de experimentos naturais em economia, com inserções também nos temas de economia laboral. Eles demonstraram, sobretudo, que experimentos naturais podem ajudar na resposta de muitas situações que surgem na vida real simulando as utilizadas nos eventos aleatórios randomizados, como pesquisas de caso-controle. 

Foi assim que um estudo publicado em 1993 por David Card, em colaboração com Alan Krueger[iii], fez comparações sobre o impacto de um aumento do salário mínimo no estado norte-americano de Nova Jersey, comparando as variações em seus níveis de emprego com a variação dos níveis de emprego do estado da Pensilvânia, onde o piso salarial permaneceu inalterado, e encontrando um resultado inesperado de que estes aumentos no salário mínimo não trouxeram uma redução acentuada no nível de emprego. Card realizou também um estudo similar comparando os efeitos da imigração cubana para o estado da Florida, com a de outros estados norte-americanos que não receberam imigrantes cubanos, demonstrando, através do detalhamento dos efeitos causais, que a imigração de cubanos para a Flórida não teve nenhum efeito observável no aumento do nível de desemprego ou na variação dos salários, quando comparado aos demais Estados.

Os estudos pioneiros de Card, Krueger, Angrist e Imbens abriram as portas para o uso de experimentos naturais por economistas em temas que seriam difíceis ou caros para testar através de experimentos aleatórios controlados, mas que muitas vezes são necessários quando há alguma mudança em leis, normas ou práticas de política econômica em um espaço territorial definido (nação ou espaços subnacionais) ou mesmo em determinados grupos sociais.

Além dos temas de economia laboral, alguns exemplos de pesquisas econômicas que tem utilizado experimentos naturais incluem temas como análise das taxas de retorno dos investimentos em ensino médio ou superior, efeitos do serviço militar nas rendas vitalícias, efeitos da proibição de fumar em hospitais, consequências econômicas da maternidade em mulheres que não estão em união, e outros mais.

O uso de experimentos naturais, como forma de dar maior precisão e confiabilidade aos estudos econométricos, tem como princípio a geração de evidências confiáveis sobre as diferenças observadas entre os grupos a serem comparados. Para tal, tem sido frequente o uso de métodos de regressão, análise de correspondência, ou ainda a utilização de ferramentas econométricas que permitam simular e dar uma dimensão robusta da realidade observada pelo experimento. Os ensaios randomizados constituirão sempre uma referência conceitual para avaliar se houve sucesso ou fracasso nos projetos dos experimentos naturais que fazem uso de ferramentas estatísticas e econométricas robustas, mesmo quando parece ser difícil estudar questões de maior complexidade causal. Portanto, em todos os estudos que utilizam experimentos naturais, tem muita importância a qualidade e a consistência do desenho desses experimentos, dado que a clareza e as evidências trazidas por experimentos aleatórios tradicionais ou controlados só podem ser reproduzidas nos experimentos naturais através de técnicas robustas para que sejam alcançados resultados similares, trazendo benefícios como menores custos de investigação e rapidez na resposta.

Vale ainda destacar que a aplicação de experimentos naturais tem sido reveladora no campo da história econômica, buscando várias evidências antes desconhecidas. A análise de experimentos naturais históricos impactou profundamente a pesquisa econômica, permitindo criar uma ponte entre a história econômica e outros campos de conhecimento. Especialistas em história econômica, com o uso desse instrumental, passaram a ser capazes de usar o ferramental econométrico dos experimentos naturais para rastrear as raízes históricas dos comportamentos contemporâneos das variáveis econômicas[iv].

 A Economia da Saúde e as Pesquisas Baseadas em Experimentos Naturais

A economia da saúde tem sido um campo fértil para a aplicação de experimentos naturais.  Um exemplo clássico é o texto seminal de Almond (2006)[v], que utiliza dados sobre a pandemia da gripe espanhola de 1918 num experimento natural para testar seus efeitos de longo prazo nas gerações futuras norte-americanas. Utilizando dados dos censos demográficos, o estudo revelou que as coortes populacionais que estavam no útero durante a pandemia de 1918-1919 tiveram piores resultados educacionais, maiores taxas de deficiência física, redução nos níveis de renda e menor status socioeconômico quando comparadas com outras coortes que nasceram antes e depois, demonstrando que investimento em saúde das mulheres durante a gravidez podem trazer ganhos fundamentais no capital humano[vi].

Outro estudo utilizando técnicas similares, realizado por Alsan e Goldin (2019)[vii], analisou o primeiro período de declínio sustentado na mortalidade infantil nos EUA realizando estimativas dos efeitos independentes e combinados de água limpa e sistemas de esgoto eficazes na mortalidade de menores de cinco anos no estado de Massachusetts, entre 1880 a 1920, quando as autoridades desenvolveram um distrito de saneamento e água na área de Boston. O estudo revelou que as intervenções combinadas e simultâneas nestes dois setores responderam por aproximadamente um terço do declínio no registro da mortalidade infantil durante 41 anos, o que constitui uma lição para os países em desenvolvimento provando que é improvável que uma abordagem fragmentada para investimentos em infraestrutura (água e saneamento temporalmente separados) melhore significativamente a saúde infantil, como fazem muitos países pobres, desperdiçando recursos de investimento que seriam mais efetivos se fossem planejados e coordenados para integrar sistemas de água com saneamento básico de forma simultânea.

A pandemia do Covid-19 apresenta um largo horizonte para atuais e futuros estudos econométricos utilizando experimentos naturais. Bacher-Ricks & Goodman (2021) propõe estudos que possam demonstrar os efeitos da pandemia na educação de crianças, na passagem para o ensino online. Segundo eles, a pandemia gerou uma onda de artigos chamando essa mudança educacional de um “experimento natural” que poderia ser usado para estudar os efeitos da educação online. No entanto, a pandemia interrompeu tantos aspectos da vida acadêmica, social, emocional, epidemiológica e econômica das crianças, que seu amplo escopo apresenta sérios desafios para isolar o impacto causal de qualquer mudança específica, como a mudança para o ensino remoto. Assim, educadores e formuladores de políticas devem agir com cautela ao interpretar os estudos que tentam identificar tais efeitos específicos e se concentrar em explicar o impacto geral da pandemia sobre os alunos, dando ênfase especial à descoberta de quais grupos sociais sofreram os piores efeitos e especificando suas características sociais, econômicas, demográficas e comportamentais. As evidências até o momento, segundo eles, indicam que a pandemia teve um impacto negativo substancial geral e prejudicou desproporcionalmente o aprendizado de alunos desfavorecidos[viii].

Um outro estudo nesta direção foi patrocinado pela United Healthcare Group dos Estados Unidos (Cook et al, 2021), utilizando o instrumental dos experimentos naturais para analisar os impactos diretos e indiretos da pandemia, detalhando efeitos específicos relacionados com o distanciamento social no fechamento e redução da demanda de hospitais e centros de saúde e suas consequências na saúde dos pacientes, utilizando os registros de bigdata disponíveis na instituição[ix].

Outro importante estudo utilizando experimentos naturais em economia da saúde foi realizado por Nelson (2015)[x] que demonstrou, através de uma revisão sistemática de estudos econométricos e experimentos naturais relacionados ao consumo de álcool e tributação, que o aumento dos impostos ou preços do álcool provavelmente não será eficaz como meio de reduzir o consumo excessivo de álcool, independentemente do sexo ou faixa etária da população.

Enfim, existem muitas áreas dentro da economia da saúde onde o uso de experimentos naturais pode ser aplicado com sucesso, e nos últimos vinte o número de estudos utilizando estes métodos em economia da saúde tem aumentado rapidamente, não apenas para dar mais precisão aos resultados e ao desenho de políticas e planos estratégicos das empresas de saúde, mas também porque estes estudos podem garantir segurança com uma certa economia dos custos de pesquisas operacionais. Temas como os efeitos de diferentes taxas de copagamento nos contratos de seguro saúde e seus resultados nos níveis de utilização de serviços e nos custos assistenciais, a partir da utilização de experimentos naturais e diante das amplas bases de dados que contam as operadoras, tem sido frequentes na indústria de seguros de saúde.

Muitos outros temas merecem estudos similares, inclusive no Brasil, tais como:

  • os efeitos do aumento da cobertura em saúde nos níveis de utilização e resultados de saúde;
  • os efeitos dos incentivos econômicos na eficiência de diferentes provedores privados;
  • o papel dos sistemas de auditoria, da transparência e da simplificação de processos na capacidade resolutiva da gestão em saúde;
  • os resultados assistenciais associados a diferentes modelos de pagamento de provedores;
  • o papel dos subsídios para testes, diagnósticos e detecção precoce na redução dos custos e melhoria da qualidade assistencial;
  • os determinantes da escolha dos seguros de saúde pela população e pelas empresas;
  • os determinantes econômicos e comportamentais da cobertura de vacinação, do uso de medicamentos e o efeito de incentivos para que sejam adequados;
  • os efeitos de diferentes tipos de informações sobre fatores risco (tabaco, obesidade, má alimentação, sedentarismo, consumo de açúcar e de álcool) no comportamento da população em relação a prevenção e autocuidado;
  • o uso de incentivos financeiros e estímulos para a adoção destas medidas de prevenção e autocuidado por parte da população;  
  • efeitos, eficiência e estímulos a adesão do monitoramento domiciliar de saúde;
  • o uso de técnicas de combate ao stress, ao burnout e exercícios mentais para manter a população em bom estado psicológico e aptidão ao trabalho, ao lazer e à felicidade;
  • os efeitos colaterais não intencionais de incentivos financeiros e não financeiros na saúde; 
  • o efeito comportamental dos sistemas de apoio à decisão e feedback;
  • os determinantes sociais, econômicos e comportamentais das causas externas, como posse de armas, agressividade, preferências de risco, atividades ilegais, depressão e tendências ao suicídio; 
  • os determinantes das decisões de fim de vida e seus impactos na utilização e custos familiares e dos serviços de saúde.   

Boa parte do uso dos experimentos naturais em economia de saúde pode se confundir com os aspectos de economia do comportamento (behavioral economics)[xi]. Adaptar e ajustar o amplo espectro analítico dos experimentos naturais com o uso crescente de bases de dados de características comportamentais é essencial para enfrentar os desafios crescentes das políticas de saúde e as principais questões de pesquisa que surgirão a partir deste processo. Além disso, é provável que surjam, nos próximos anos, redes de colaboração internacional para desenvolver estudos desta natureza em distintos centros nacionais de pesquisa, investigando eventuais padrões que diferenciam as nações em seus micro e macro determinantes da saúde. Isto possibilitará uma melhor tomada de decisão das instituições de saúde e das empresas, possibilitando aos governos a formulação de políticas de saúde mais precisas e bem desenhadas.

NOTAS AO TEXTO



[i] Moffat, M. (2019), What Are Natural Experiments and How Do Economists Use Them? in ThoughCo, Updated April 10, 2019, Link: https://www.thoughtco.com/natural-experiments-in-economics-1146134

[ii]   Ver Angrist, J.D & Krueger, A.B., (1999), Chapter 23, Empirical strategies in Labor Economics in Handbook of Labor Economics, Volume 3, Edited by O. Ashenfelter and D. Card, Ed. Elsevier Science, 1999.

 [iii] Card, D. & Krueger, A. (1993), Minimum Wages and Employment: A Case Study of the Fast-Food Industry in New Jersey and Pennsylvania, Ed. National Bureau of Economic Research (NBER), Working Paper 4509, DOI 10.3386/w4509, October 1993, Link, https://www.nber.org/papers/w4509

 [iv] Cantoni, D. & Yuchtman, N. (2020), Historical Natural Experiments: Bridging Economics and Economic History, in NBER Economic Paper Series 26754, Ed. National Bureau of Economic Research, Cambridge, MA, February 2020, Link  https://www.nber.org/system/files/working_papers/w26754/w26754.pdf

 [v] Almond, D. (2006), Is the influenza pandemic over? Long-term effects of the utero influenza exposure in Post-1940 U.S. Population, in Journal of Political Economy Vol. 114, No. 4 (August 2006), pp. 672-712 (41 pages), Published By: The University of Chicago Press. Link https://www.jstor.org/stable/10.1086/507154.

 [vi] Um estudo como este poderá ser feito com a geração que nasceu durante a pandemia do Covid-19 a partir de 2019, para ver se efeitos similares poderão ocorrer.

 [vii] Alsan, M. & Goldin, C. (2019), Watersheds in Child Mortality: The Role of Effective Water and Sewerage Infrastructure, 1880 to 1920, in J Polit Econ. 2019 Apr;127(2):586-638. doi: 10.1086/700766. Epub 2019 Feb 13, link https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/31073249/

 [viii] Bacher-Hicks, A. & Goodman, J. (2021), The Covid-19 Pandemic Is a Lousy Natural Experiment for Studying the Effects of Online Learning, in Technology, Ed. Education Next, Vol. 21, No.4, Fall 2021, Link  https://www.educationnext.org/covid-19-pandemic-lousy-natural-experiment-for-studying-the-effects-online-learning/

 [ix] Cook, D., Altman, R., Westman, J. & Ventura, M.L. (2021), Can the Covid-19 Natural Experiment Teach Us About Care Value and System Preferences? Ed. NEJM Group, May 2021, link: https://catalyst.nejm.org/doi/full/10.1056/CAT.21.0063

 [x] Nelson, J.P. (2015), Binge drinking and alcohol prices: a systematic review of age-related results from econometric studies, natural experiments and field studies, Health Economics Review volume 5, Article number: 6 (2015), Link: https://healtheconomicsreview.biomedcentral.com/articles/10.1186/s13561-014-0040-4

 [xi] Ver Galizzi, M. & Wiesen, D. (2018), Behavioral Experiments in Health Economics, Ed. Oxford Economics, Published online on March 28, 2018, link: https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190625979.013.244