segunda-feira, dezembro 20, 2021

Por uma saúde compatível com as necessidades, interesses e possibilidades de todos os brasileiros: Uma entrevista com Antônio Britto

 Ano 16, No. 127, Dezembro de 2021


Quando em fins de 1984, os sonhos de retorno à democracia no Brasil começavam a se tornar realidade, o Congresso Nacional elegeu para Presidência da República o ex-governador de Minas Gerais, Tancredo de Almeida Neves, para substituir o último general da ditadura militar nesta posição, João Batista Figueiredo. Foi então que um jovem, mas já experiente jornalista, foi convidado como assessor de imprensa e porta-voz do novo Presidente, traduzindo para a população as palavras que revelaram a realização desse sonho, apesar da doença súbita que levou este Presidente a falecer antes de iniciar seu esperançoso mandato. Esse jovem e experiente jornalista se chamava Antonio Britto Filho, e a história de sua vida pública se confunde com a história da redemocratização no Brasil.

Tendo nascido em Santana do Livramento em 1952, Antônio Britto começou sua carreira como jornalista aos 18 anos, e em 1979 já era figura central do jornalismo da Rede Globo de Televisão, pela sua competência e dedicação. Após o papel que exerceu como porta-voz do Presidente Tancredo Neves em 1985 ganhou ampla notoriedade pública e iniciou sua carreira política como Deputado Federal pelo PMDB em 1986, onde exerceu dois mandatos, sendo o segundo incompleto, após receber o convite do Presidente Itamar Franco para exercer o cargo de Ministro da Previdência Social, onde implementou políticas que melhoraram as condições de vida dos aposentados brasileiros e deram maior sustentabilidade à previdência social pública no Brasil.  

Em 1994 foi eleito Governador do Estado do Rio Grande do Sul, realizando importantes reformas administrativas e de reestruturação das finanças públicas, para tornar o Estado mais sustentável e ágil na entrega de serviços públicos de qualidade à população. Na primeira década do milênio, Antônio Britto resolveu se dedicar ao exercício de cargos de direção no setor privado em diversos setores como indústria de calçados, telecomunicações, assumindo, em 2009, a presidência da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (INTERFARMA), onde permaneceu por mais de 10 anos, passando a ser um dos grandes conhecedores da estrutura e das necessidades do setor saúde no Brasil.

Em março de 2021, Antônio Britto assumiu a Diretoria Executiva da Associação Nacional de Hospitais Privados (ANAHP), onde tem se dedicado a coordenar importantes iniciativas junto aos principais interlocutores do setor, apoiando e dando instrumentos para aumentar a resiliência dos melhores hospitais do Brasil em prestar serviços relevantes para a população brasileira, neste segundo ano da pandemia do Covid-19. Nesta entrevista, ele faz, não apenas um balanço da sua atuação ao longo destes nove meses à frente da ANAHP, mas também fala sobre as perspectivas do setor hospitalar e da saúde no Brasil para 2022.

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Monitor de Saúde (MS) – O Sr. assumiu a direção da ANAHP em um dos mais difíceis momentos da economia, do setor saúde e, particularmente, dos hospitais. Como o processo de resiliência dos hospitais durante este segundo ano da pandemia pode ser descrito? Quais os principais elementos que levaram os hospitais da ANAHP a ter uma recuperação tão rápida de sua operacionalidade em 2021?

Antônio Brito (AB) - Estamos muito orgulhosos com a forma como nossos hospitais atravessaram e seguem enfrentando a pandemia. Ao mesmo tempo houve grande flexibilidade na gestão para poder adaptar leitos, processos e serviços às diversas e inesperadas circunstancias; enorme capacidade e qualidade assistencial, responsáveis por resultados extremamente positivos para os pacientes; desprendimento e solidariedade que fizeram de nossos hospitais apoios fundamentais à sociedade e ao setor publico com doações, parcerias e comprometimento no combate à covid;  e, ainda, a participação decisiva em favor da ciência, disseminando informações verdadeiras, orientando a população com conhecimento e bom senso e contribuindo decisivamente para que as pesquisa clinicas em torno das vacinas fossem extraordinariamente rápidas e eficientes. A soma desses fatores permitiu cumprir com nosso papel em 2020, mesmo com queda sensível na receita, fato que este ano, lentamente, está sendo superado, permitindo um cauteloso retorno ao período pré pandemia.

 

MS – A pandemia acelerou determinadas transformações no comportamento dos pacientes e de sua relação com os hospitais. Quais as principais mudanças que a pandemia trouxe para a gestão hospitalar? Quais destas mudanças são temporárias e quais delas vieram para ficar?

AB - Fiz referência, na resposta anterior, à primeira destas transformações: nossos hospitais, gestores e equipes aprimoraram a capacidade de inventar e reinventar processos, alocação de recursos humanos e materiais e cadeias de suprimentos. Outro ponto importante, pelos relatos que recebo, é a consolidação da necessidade de equipes assistenciais multidisciplinares, a valorização de setores como fisioterapia e enfermagem, a consolidação do valor do trabalho em equipe. Uma terceira e decisiva transformação vem pela definitiva incorporação da tele saúde ao dia a dia dos hospitais, médicos e pacientes. Cremos que todas estas mudanças vieram para ficar. No caso da tele saúde, porém, vale advertir que seu futuro dependerá muito da forma como será regulamentada nos próximos meses pelo Congresso Nacional. A ANAHP espera que o texto a ser aprovado permita que a tele saúde amplie o acesso a saúde de qualidade no Brasil, ajude-nos a superar as imensas lacunas de recursos humanos e materiais como tristemente a pandemia mostrou. Para isso, a regulamentação precisa exigir qualidade, evitar transformar a tele saúde em mera equação para reduzir custos ou exacerbar corporativismos. Quem mais precisa de tele saúde é o Brasil distante, mais pobre e menos qualificado tecnologicamente. Não podemos desperdiçar essa oportunidade.

 

MS – O aumento da complementariedade entre os setores público e privado na área de saúde tem sido apontado como um dos principais elementos de sucesso na melhoria das condições gerenciais do setor saúde ao nível das nações. Como anda esta relação no Brasil? Quais são os elementos positivos e quais são os negativos? Como a política nacional de saúde poderia se beneficiar da experiência positiva dos hospitais da ANAHP para entregar melhores serviços a população brasileira?

AB - Infelizmente, o saldo até hoje não está à altura das grandes necessidades brasileiras. Primeiro, pelos preconceitos ideológicos, pessoas que em pleno 2021 ainda pensam que poderá haver um Brasil sem SUS ou só com o SUS. Depois, pela falta de coordenação dentro do sistema público e entre este e o privado. A pandemia trouxe a dramática exposição dos dois Brasis – um onde falta quase tudo, outro onde sobram recursos humanos e materiais. Carência e desperdício, lado a lado, constituem a foto do sistema. Esperamos que as lições da pandemia nos ajudem a superar os preconceitos e buscar com base nas melhores experiências nacionais e internacionais uma melhor gestão e coordenação dos dois sistemas e entre os dois sistemas. Para isso, porém, há um pressuposto político: que as autoridades do setor entendam que não há nenhuma política de saúde eficiente se não for estável, buscando resultados no médio e longo prazo. O festival de políticas de oportunidade e o rodízio de autoridades pelos cargos mais importantes do sistema nos diversos níveis da federação não fazem nada bem à saúde publica. Estabilidade, continuidade, decisões técnicas, compromisso com os cidadãos e os pacientes precisam ser reconstruídos.

A ANAHP, por seus associados e seu Conselho de Administração, tem claro isto: não queremos qualidade apenas nos nossos hospitais. Queremos qualidade no sistema como um todo e todos os conhecimentos, sistemas, plataformas, eventos e dados que possuímos estão mais que nunca à disposição das autoridades, do sistema publico e de quem quiser trabalhar por acesso com dignidade no sistema de saúde do País.

 

MS - A implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1988 foi um importante marco na melhoria do acesso à saúde da população mais pobre no Brasil. No entanto, o SUS ainda padece de graves problemas, como por exemplo: (i) sua inequidade; (ii) sua ineficiência no uso dos recursos e (iii) seu financiamento. Como o Sr. avalia a experiência de implantação do SUS e quais as prioridades que o governo deveria dar ao setor saúde para corrigir estes três grandes problemas?

AB - Primeiro, e já referido, não há SUS que resista a 13 ministros em 18 anos, não importa a que governo ou ideologia pertençam. Outro fato assustador: no final do primeiro ano de mandato dos 5700 prefeitos municipais eleitos para a gestão 2016-2020, mais de 2 mil secretários municipais de saúde deixaram o cargo. O sistema de saúde precisa de estabilidade para poder promover planos e mudanças, realizadas de forma continuada e consistente, ao longo do tempo.  Já deveríamos ter aprendido que soluções de curto prazo e receitas milagrosas e rápidas são apenas discurso de ocasião com um único resultado – agravam os problemas do sistema. Não nos falta conhecimento nem casos positivos para resolver quase todos os problemas do sistema. O que falta é o ambiente político que permita aplica-las como politicas de Estado, vacinadas e imunes à “saúde de ocasião”.

 

MS – As principais fontes de financiamento dos hospitais da ANAHP são os planos de saúde e os recursos diretos das famílias. No entanto, como resultado da pandemia, o ano de 2020 levou a um crescimento das receitas sem o crescimento dos níveis de utilização dos serviços pelos usuários dos planos de saúde. Como resultado deste represamento, em 2021, os planos de saúde passaram a ter que enfrentar um forte aumento da utilização dos serviços num momento em que suas receitas passam a ter limites para expansão. Como os hospitais da ANAHP poderão estabelecer uma relação mais estável com seus financiadores para evitar que possam ocorrer restrições financeiras em 2022?

AB - Por mais obvio que pareça, o maior problema está no fato de boa parte dos planos de saúde e mesmo alguns hospitais não terem se dado conta que fazem parte de uma cadeia. Vive-se hoje um jogo perigoso onde alguns segmentos pensam que poderão obter estabilidade e resultados empurrando a conta para o segmento seguinte. Não percebem que o resultado disso é simplesmente zero. Vivemos um problema estrutural: país empobrecido e injusto gera poucos empregos e na maior parte destes sem capacidade para contratação de saúde suplementar. Empresas empobrecidas resistem a ampliar gastos na contratação de planos para seus colaboradores. E o sistema não pensa nem contempla nenhuma forma de absorver o que é a realidade do mercado: informalidade, trabalho por conta própria, pequenas empresas. Trata-se de algo incrível: o sistema de saúde suplementar é montado para funcionar com o que está deixando de existir no Brasil. E dá as costas ao que é a nova realidade na organização das relações de trabalho e emprego. Por isso ficamos na maldição dos 50 milhões: não passamos desse número de vidas contratadas. Quando a economia tem um suspiro positivo, sobe-se um ou dois milhões. Logo depois vem uma crise e caminha-se na direção dos 45 milhões. Por que? Porque o sistema tem que ser repensado.

Em vez de trabalharmos como cadeia na questão estrutural, boa parte da saúde suplementar tenta resolver o problema conjunturalmente, espetando contas no segmento ao lado. Em vez de discutirmos valor em saúde, nos engalfinhamos por preço na saúde.

MS – O ano de 2022, além de ser um ano eleitoral de forte polarização, será um ano com indicadores bastante precários: inflação mais alta, juros elevados e crescimento baixo do PIB. Como isto poderá afetar o desempenho dos hospitais da ANAHP e quais estratégias poderiam ser utilizadas para a sua superação.

AB - Infelizmente não vemos no cenário para 2022 a oportunidade das discussões estruturais que o sistema de saúde reclama com urgência. E, pior, convivemos com ameaças de ocasião, medidas sem amparo técnico, muito mais movidas pela necessidade eleitoral do que pela convicção administrativa.  Então, os hospitais e os demais segmentos de saúde devem estar conscientes que o que tiver de ser feito será feito dentro de cada um deles, buscando cada vez mais eficiência, revisão de processos, aperfeiçoamento de recursos humanos. Para usar uma linguagem nossa, gaúcha, o que mudar em 2022 será da porteira para dentro...

Este cenário também cria um outro perigo: soluções que se apresentam ao mercado cortando custos, indiscriminadamente, sem pensar ou respeitar o dever moral e legal da saúde – oferecer assistência digna aos pacientes.  Em saúde, talvez mais que em qualquer outro setor da atividade econômica, cortar custos é extremamente fácil – basta dar as costas ao sagrado dever de buscar qualidade. O problema, esse nada fácil, não é cortar custos, simplesmente. E buscar sofridamente equações eficientes que, mantida a qualidade, permitam resultados positivos. Os melhores hospitais, pequenos ou grandes, privados ou públicos sabem que essa é a missão e o desafio.

 

MS - A ANAHP tem tido um grande êxito em sua produção de dados e indicadores para o setor, bem como no enriquecimento do debate sobre o setor saúde no Brasil. A produção do Observatório da ANAHP, Notas Técnicas Trimestrais e a base de dados do SINHA é hoje uma referência para o setor e para a imprensa. Quais são os planos da ANHAP para não apenas continuar esta história de sucesso, mas também fortalecer sua presença no debate sobre os rumos do setor saúde em 2022?

AB - Temos claro o compromisso de contribuir para a qualificação dos hospitais, associados ou não, públicos ou privados. Nosso programa de acompanhamento de desfechos clínicos e nosso sistema de indicadores de qualidade terão grandes novidades em 2022, já definidas e aprovadas. O objetivo central: ampliar seu alcance e seus benefícios a todos os hospitais interessados.


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