sábado, agosto 27, 2022

Além da Defasagem no Valor das Tabelas de Pagamento do SUS

Ano 17, Número 128, Agosto de 2022


Prezados amigos,

Este ano de 2022 vários fatores temporais me fizeram não ativar postagens nesse blog até o presente momento. Portanto, para meus seguidores, peço desculpas pelo silêncio e espero fazer algumas postagens ainda neste ano para retomar no próximo ano a todo o vapor.

Esta postagem é a íntegra de uma entrevista que dei para o jornalista Rafael Machado do site Futuro da Saúde, sobre o tema das tabelas de pagamento pelos serviços prestados ao SUS. Caso tenham interesse em ver a matéria publicada pelo Rafael Machado (no dia 26 de agosto de 2022), é só acessarem o link: https://futurodasaude.com.br/tabela-sus-hospitais-privados/

Segue a íntegra da entrevista. Boa Leitura.

 

Rafael Machado (RM) - Como se dá a relação da prestação de serviços dos hospitais privados e filantrópicos pelo SUS?

 

André Medici (AM) - A Constituição de 1988 e a legislação posterior definiram que a participação do setor privado no SUS teria um caráter complementar, devendo ser formalizada através de contrato ou convênio. A legislação definiu que as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos teriam prioridade na contratação pelo SUS. No entanto, este processo de formalização dos contratos do SUS com os hospitais privados tem avançado lentamente e necessita de muitas discussões e precisões para que de fato funcione.

A complementaridade do SUS por serviços prestados por hospitais privados lucrativos ou filantrópicos, demandaria melhor regulação e novos arranjos e definições jurídicas. O que tem ocorrido praticamente, na maioria dos casos, é que as especialidades médico-assistenciais não disponíveis na rede pública de alguma localidade ou região, mas existentes na rede privada, acabam sendo contratadas pelos governos estaduais e municipais e remuneradas com recursos públicos, sem um contrato de longo prazo, o que leva a tratamentos incompletos e falta de continuidade para o paciente. Os contratos em geral são precários e baseados em pagamentos pontuais por unidades de serviço (tipo fee-for-service) com tabelas que tem uma defasagem histórica em relação aos custos reais.  

Considerando-se a existência de cerca de 24 mil estabelecimentos privados de saúde no Brasil, cerca de 47% deles prestava, em 2021, algum serviço para o SUS, mas muito deles o faziam de forma esporádica e intermitente. Mas pode-se dizer que a quase totalidade dos hospitais privados tem ou já teve algum tipo de contrato, ainda que precário, com o SUS.

Há muitos tempo que as autoridades públicas tem tentado definir alguns tipos de relações mais estáveis com os hospitais privados. Por exemplo, desde finais dos anos noventa, o SUS iniciou algumas experiências de contratualização, estendidas a hospitais privados filantrópicos, mas também privados (incluindo hospitais universitários), através de convênios, contratos de prestação de serviços, consórcios públicos, contratos organizativos da ação pública, organizações sociais de saúde (OSS), fundações de direito privado, e muitas outras formas.

Uma vantagem destas novas formas de relação contratual é que elas se baseiam em metas quantitativas e qualitativas de atenção à saúde ou gestão hospitalar a serem alcançadas no atendimento aos pacientes do SUS, estabelecendo alguns mecanismos correspondentes de monitoramento e avaliação. Mas apesar dessa diversidade recente, a realidade não é tão doce.

Segundo os dados existentes, somente 1.034 hospitais recebiam recentemente o chamado Incentivo de Adesão à Contratualização, como um valor financeiro adicional que gera uma série de vantagens para o hospital e também para o gestor, como acesso a linhas de crédito para investimento hospitalar do BNDES, por exemplo. Mas este processo ainda atende marginalmente à rede de hospitais privados contratados pelo SUS e a maioria dos atendidos se encontra nas capitais, grandes cidades e estados mais ricos do país.

Segundo dados do Ministério da Saúde (CNES), em dezembro de 2021, dos 6411 hospitais existentes no Brasil, 58,3% eram privados ou filantrópicos. Se considerarmos o número de leitos de internação, a proporção de privados ou filantrópicos era ainda maior (60% em junho de 2021, segundo o CNES). Em circunstâncias como essas, um sistema de saúde que pretende ser de cobertura universal, como o SUS, não pode deixar de atender a maior parte da população brasileira sem contar com a rede hospitalar privada. Portanto, seria de grande importância criar um modelo de contratação de hospitais privados que atendesse de forma mais direta a essa população, remunerando adequadamente o prestador privado e zelando pela sua eficiência, pelo seu esmero em atender a população SUS e pela sustentabilidade e solvência desses hospitais à longo prazo.

RM - Existe uma grande crítica sobre a tabela SUS estar defasada. Quais as dificuldades para ela ser atualizada?

 

AM - Criticar a defasagem da tabela do SUS é um processo de longa data, mas tem se mostrado inconsequente. Muito além da tabela defasada, o grande problema é o sistema de pagamento pelos serviços que os hospitais privados prestam ao SUS.  Existem três grandes entidades pagadoras aos prestadores privados pelo SUS: o governo federal, os governos estaduais e os governos municipais. O governo federal paga aos hospitais pela remuneração por serviços produzidos (por unidade de serviço computada pelas autorizações de internação hospitalar). Os demais governos, além de pagar com seus próprios recursos, recebem transferências do Fundo Nacional de Saúde aos Fundos Estaduais e aos Fundos Municipais de Saúde e, com esses recursos, pagam os hospitais por distintos processos, desde os mais racionais, como os contratos com as OSS, onde os recursos se transferem aos hospitais via o cumprimento de metas ou resultados, até os pagamentos tradicionais por unidades de serviço que utilizam as tabelas do SUS.

Como os pagamentos via tabela constituem a maioria das formas de pagamento, os hospitais privados e filantrópicos acabam sendo vítimas do desfinanciamento do SUS e da defasagem dos valores. Um estudo do Conselho Federal de Medicina (CFM) mostrava que em 2015 – ano em que o governo Dilma Rousseff trouxe uma das maiores crises no financiamento do SUS - o valor médio dos procedimentos pagos pela tabela federal do SUS, que compreende 4600 procedimentos, representava 23% dos valores pagos em 2009. Dos 1500 procedimentos hospitalares do SUS, 74% não tiveram seus valores reajustados de acordo com os índices de preço naquele ano. Mas os Estados e Municípios tem liberdade de adotar tabelas diferentes da federal, e alguns estados muitas vezes fazem acréscimos nestes valores ou adotam processos diferentes de contratação e pagamento.

Na verdade, a defasagem das tabelas do SUS é somente a ponta do iceberg. Os processos de remuneração via pagamento por unidade de serviço através da tabela do SUS enredam uma situação de grande ineficiência que acaba levando a subprestação de serviços ou à entrega de serviços de baixa qualidade.

A principal dificuldade para atualizar a tabela de pagamento dos serviços hospitalares são os escassos recursos que dispõe o SUS. Diante de um processo de envelhecimento da população e crescimento das demandas associadas a doenças crônicas que dominam largamente o panorama epidemiológico brasileiro, os gastos hospitalares tendem a crescer em proporção maior do que a inflação e do que os escassos recursos disponíveis ano a ano para o financiamento do SUS.

Mas simplesmente ter mais recursos para atualizar a defasagem das tabelas não seria uma solução para o problema, dado que existe uma falência do modelo de organização dos serviços e, associado a isto, uma falência dos modelos atuais de remuneração dos hospitais públicos e privados.

RM - Como os hospitais seguem conseguindo prestar esses serviços, mesmo recebendo menos do que gastam?

AM - O impacto da defasagem das tabelas do SUS é diferenciado de acordo com o tipo, tamanho, localização, densidade tecnológica e diversificação de suas fontes de financiamento. Hospitais de grande porte que prestam serviços ao SUS costumam selecionar os atendimentos que fazem. Quando estes hospitais prestam serviços de alta densidade tecnológica e procedimentos de alto custo, eles têm, junto ao Ministério da Saúde, poder de barganha e negociação para garantir pagamentos mais próximos dos valores de mercado.

Os hospitais de grande porte também dispõem de estratégias para atender diferentes mercados e, em geral, o SUS representa uma parcela muito pequena de suas receitas e dos serviços que prestam. Ao mesmo tempo, muitos deles também assinam convênios com os governos estaduais e dos grandes municípios que lhes garantem formas diferenciadas de contratação e remuneração, quando prestam serviços ao SUS, como ocorre com os hospitais privados que se beneficiam dos programas PROADI-SUS.

Já os hospitais de pequeno e médio porte, especialmente aqueles nos estados e municípios com menos recursos, passam a viver na corda bamba com os recursos que recebem, dada sua alta dependência das tabelas SUS e muitas vezes podem ser até mesmo obrigados a fechar suas portas. Os filantrópicos buscam aumentar a ajuda de seus patrocinadores, através de doações e os lucrativos buscam diversificar suas fontes de receita e obter receitas extraordinárias, como por exemplo venda de medicamentos, ou acabam se integrando a outros hospitais de maior porte e com receitas da saúde suplementar complementares, através de movimentos de fusões e aquisições.

Mas muitas vezes isto não é suficiente para evitar a falência desses hospitais. Para exemplificar, entre Dezembro de 2011 e Dezembro de 2021, o número de hospitais privados filantrópicos se reduziu de 1930 para 1789 e o de hospitais privados lucrativos se reduziu de 2216 para 1946 no mesmo período. Ou seja, como boa parte dos pequenos e médios hospitais dependem do financiamento das tabelas do SUS, se pode dizer que em 10 anos a defasagem das tabelas de pagamento levou, ainda que parcialmente, a uma redução de 7,3% do número de hospitais filantrópicos e de 12,2% do número de hospitais privados lucrativos no país. Mas pode-se pensar, por outro lado, que uma racionalização nos sistemas de pagamento e na organização dos fluxos de pacientes não necessitaria de tantos hospitais de pequeno porte os quais, em geral, costumam ter baixas taxas de ocupação de leitos e serem mais ineficientes na gestão de sua infraestrutura e resultados assistenciais.

RM - Existem alternativas para essa prestação de serviços não ser interrompida, como a adoção de programas que façam parcerias públicos-privadas (através de renúncia fiscal como pelo PROADI-SUS, por exemplo)?

AM - Mais do que pensar em alternativas, o que é necessário é redefinir os processos de organização dos serviços e o modelo de financiamento. Os Estados e Municípios que utilizam os recursos do SUS pela contratação de hospitais privados através de programas como PROADI-SUS, organizações sociais ou contratos de longo prazo tem tido melhores resultados em suas estratégias, mas não há ainda nenhum desenho ou master-plan voltado para mudar a realidade brasileira de como o SUS contrata os hospitais num sentido definitivo.

A gestão dos recursos do SUS deve buscar estratégias mais eficientes, independentemente dos recursos que dispõe, ou seja, os recursos são poucos, mas a gestão é cada vez mais sofrível e insipiente, e isso não pode continuar assim. Novos modelos de gestão do SUS deveriam estar baseados em parcerias público-privadas e no estabelecimento de formas de pagamento por patologia, associados a linhas de cuidados, ao desempenho ou a performance em termos do alcance de resultados e da geração de valor para o paciente. Com isso aumentaria o uso de soluções associadas a promoção, prevenção e atenção ambulatorial, bem como o uso da telemedicina e das soluções digitais para consultas aos pacientes. Além do mais, se eliminariam os desperdícios, como as internações desnecessárias ou sensíveis à atenção primária. Todas essas estratégias são necessárias para uma gestão mais eficiente, mas são incompatíveis com o modelo de financiamento por unidade de serviço utilizado majoritariamente pelo SUS.

RM - A forma que o SUS distribui o orçamento tem impacto nessa questão? É preciso rediscutir o modelo? E o financiamento?

AM - Certamente a redefinição do modelo é crucial e vale a pena discutir o porquê. Uma das maiores aspirações da população brasileira é ter um plano de saúde suplementar que possa dar garantia a sua família ter uma cobertura de saúde adequada, especialmente em épocas de crise pandêmica como a que ainda estamos passando. Porque? Porque sabem que o SUS muitas vezes não lhes oferece a atenção médica associada a como, aonde e quando precisam. Mas cerca de ¾ dos brasileiros não tem recursos para ter um plano privado da saúde suplementar, tendo que ser atendida através do SUS. Nessas circunstâncias, o SUS enfrenta dois tipos de problemas: o do financiamento e o da gestão.

No que se refere ao financiamento público, o Brasil gasta aquém do que deveria para financiar um sistema de saúde que se pretende universal. Segundo dados do Anuário da ANAHP de 2022, dos 9.5% do PIB que o Brasil gastou em saúde em 2021, apenas 47% corresponderam aos gastos públicos, enquanto que em países da OCDE, com gasto similar como proporção do PIB, esse percentual é da ordem de 60% a 70%. E estamos falando de anos atípicos, onde o gasto público em saúde aumentou por conta da pandemia.

Mas além disso, existe o problema de gestão. O gasto público de saúde é administrado com grande ineficiência, por ser em sua maioria, baseado em gestão centralizada da administração pública direta do governo, com processos antiquados, estrutura rígida e pouco flexível, funcionários públicos estáveis no emprego e sem motivação para o trabalho, onde as regras de boa governança e bom governo não funcionam. Frequentemente as licitações envolvem corrupção e desvios de finalidade orçamentária e há escassez de insumos básicos, remédios, equipamentos e suprimentos mínimos para que um hospital público possa funcionar com eficiência e até mesmo com decência.

Por esta razão, ainda que disponham de uma grande quantidade de leitos, os hospitais públicos costumam ter uma enorme capacidade ociosa, com muitos leitos fechados por conta de falta de insumos, de equipamento e de pessoal.  Para exemplificar, no início da pandemia (abril de 2020) estimava-se somente o Município do Rio de Janeiro tinha cerca de 1800 leitos desativados nos hospitais públicos municipais.

É lógico que existem exceções a esta regra, tanto ao nível dos Estados como de alguns Municípios, mas elas não justificam os desvios e a má utilização de recursos públicos. Em geral, os Estados e Municípios que melhor administram os recursos do SUS são aqueles que realizam contratos de gestão com hospitais e redes privadas ou filantrópicos, os quais, ainda que recebam valores muito aquém dos recursos que gastam com os pacientes do SUS por contarem com orçamentos limitados em seus contratos, procuram administrar os escassos recursos de forma mais eficiente que os hospitais públicos da administração direta. Muitas vezes estes hospitais privados ou filantrópicos subsidiam os pacientes dos contratos do SUS com recursos que recebem de doações e caridade ou de seus próprios excedentes operacionais, como ocorre com os hospitais filantrópicos e mesmo com muitos hospitais privados lucrativos. O SUS, portanto, depende muito destes estabelecimentos privados contratados e filantrópicos.

Rediscutir o modelo de remuneração do SUS com os estabelecimentos privados é condição sine-qua-non para equacionar o dilema da oferta de serviços públicos de saúde para a população brasileira e garantir um modelo efetivo de universalização de cobertura com qualidade. Mas não existe uma receita mágica. O uso de DRGs, de processos de capitação ou de pagamentos por pacotes (bundle payments) isoladamente podem não levar aos melhores resultados. É necessário avaliar riscos, definir processos e desenhar os modelos de remuneração que mais se adequem a cada situação específica, mas dentro de um menu de soluções racionais e testadas.

Soluções como a transferências em bloco de recursos associados a contratos negociados com redes de saúde privadas com metas de qualidade, compromissos de recuperação dos custos e premiação por resultados, como ocorre no caso das Accountable Care Organizations (ACOs) adotadas nos Estados Unidos após o plano Obama, têm sido replicados em outros contextos internacionais com resultados positivos (ver a entrevista de Maureen Lewis na edição 94, de maio de 2019, deste blog). Elas envolvem riscos que são compartilhados entre os prestadores e os financiadores, o que é diferente do modelo de pagamento por unidade de serviço, onde todo o risco recai sobre o financiador e não sobre o prestador. E quando existem riscos, é importante que o compromisso com a eficiência, melhorando os resultados e reduzindo desperdícios, esteja presente na negociação dos contratos para que esses ganhos possam ser maximizados para a população e eventuais perdas injustificadas possam ser minimizadas para os hospitais contratados.

 

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