sábado, janeiro 21, 2023

Mudanças nos Critérios de Reajuste dos Prêmios nos Planos de Saúde Individuais

 

Ano 18, No. 131, Janeiro de 2023 

André Cezar Medici[1]

Introdução

 

Em nossa última postagem, mencionamos que 2023 será o ano em que ocorrerá um tsunami regulatório na saúde suplementar, com prováveis impactos na cobertura, na qualidade e nos níveis de atendimento das demandas da população beneficiária de planos de saúde. Mas ninguém sabe como estas mudanças na regulação poderão afetar (positivamente ou negativamente) os beneficiários de planos de saúde.

Em geral, para o senso comum, é fácil pensar que medidas como contenção dos valores dos prêmios por debaixo da variação dos custos ou aumento ilimitado de cobertura podem ser vantajosas no curto prazo, porque trazem benefícios para os usuários (menores gastos com maior cobertura) e levam as operadoras a alcançar melhores resultados frente aos seus custos, caso estas estejam funcionando abaixo de sua fronteira de eficiência.  

Mas a realidade econômica nem sempre funciona de acordo com o senso comum. Longos períodos de contenção do valor dos prêmios frente ao  aumento das despesas médico-assistenciais podem levar a perdas de rentabilidade que obrigam as operadoras a desistirem de operar em determinados segmentos de mercado. Ao mesmo tempo, cobertura ilimitada sem provisões financeiras ou prêmios compatíveis com o crescimento correspondente dos custos podem aumentar a sinistralidade das operadoras levando-as, mesmo involuntariamente, à redução na cobertura e na qualidade dos serviços, ou até mesmo a fechar suas portas, resultando em perdas de cobertura para os beneficiários.

O que chamamos de tsunami regulatório é o resultado de alguns processos que estão em vias de mudar regulações importantes na saúde suplementar, neste ano que se inicia, tais como: (a) a revisão da fórmula de reajuste dos planos individuais de saúde; (b) a mudança do rol de procedimentos da ANS (de taxativo para exemplificativo); (c) o fim das restrições de serviços associados a terapias; e (d) o aumento do número de terapias orais para o câncer, entre outros.

Para enfrentar os desafios do tsunami regulatório, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) lançou, no dia 19 de janeiro de 2023, a Agenda Regulatória 2023-2025, destinada a elencar os temas prioritários para orientar sua atuação regulatória futura à curto e médio prazo. A agenda se organiza em três seções: (i) análise de impacto regulatório (AIR) com base em evidências que permitam avaliar os possíveis impactos das decisões a serem tomadas para o alcance dos objetivos pretendidos; (ii) avaliação de resultado regulatório (ARR) para a verificação dos efeitos decorrentes da edição de atos normativos sobre o mercado e a sociedade, em decorrência de sua implementação e (iii) desenvolvimento de estudos preliminares  onde se apresentam temas para o futuro mas que ainda não  estão maduros para a elaboração de análises ou avaliações de impacto ou resultado regulatório[2].

Cada um destes temas merece uma discussão longa e, por isso, a presente postagem vai discutir apenas um dos temas incluídos na Agenda Regulatória 2023-2025 que é a revisão dos critérios de reajuste dos planos individuais de saúde suplementar no Brasil. Discutiremos os outros temas que integram esse tsunami regulatório da saúde suplementar em futuras postagens

O IRPI e a atual regulação no valor dos prêmios dos planos individuais

A fórmula do Índice de Reajuste dos Planos Individuais de Saúde (IRPI) - o atual mecanismo pelo qual a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) define um teto anual para os reajustes dos prêmios dos planos individuais de saúde no Brasil – foi criada em 2018[3]. Ela faz parte do conjunto de regulações para planos individuais de saúde no Brasil e se soma a outras, como por exemplo, a proibição das operadoras em romperem unilateralmente o contrato com os indivíduos ou famílias, após sua vigência, por razões distintas da inadimplência.

Todas essas regulações, supostamente, têm por objetivo a manutenção do equilíbrio dos contratos entre as operadoras e beneficiários, visando maximizar a proteção à saúde dos segurados e, para tanto, a sustentabilidade de longo prazo do sistema. Mas é necessária uma análise permanente dos efeitos da regulação para verificar se estes objetivos estão sendo cumpridos.

O Brasil é um caso ímpar quando comparado com outros países que têm planos privados de seguro de saúde, dado ser o único que define um teto anual para a variação dos prêmios em planos privados de saúde individuais. Em outros países, a regulação dos prêmios de planos de saúde pelo governo é frequente em planos públicos, onde o seguro é gerido pelo governo, de forma monopolista, e a competição não existe. Este é o caso do Medicare e Medicaid ou dos chamados “exchange health Insurance plans[4], nos Estados Unidos, ou ainda dos seguros públicos compulsórios de saúde existentes em muitos países europeus, onde o governo determina o valor dos prêmios, podendo estes estarem até mesmo aquém dos custos, dado que eventuais desequilíbrios financeiros podem ser financiados parcialmente pelo endividamento público, em situações especiais, embora isto não seja bem-visto pelos gestores de política econômica.

No entanto, em mercados competitivos, planos de saúde privados costumam não limitar o pecentual de reajuste dos prêmios de forma “ex-ante”. Para estes tipos de mercado, a regulação de operadoras de planos de saúde está voltada para garantir as condições de solvência e competitividade no mercado, e até mesmo para monitorar os resultados assistenciais alcançados, mas não para impor controles compulsórios nos reajustes dos prêmios, dado que estes devem ser negociados livremente no mercado. Isto porque, se houvesse controle de preços ou dos reajustes dos prêmios que levassem à insolvência das operadoras, o Estado não estaria lá para bancar as perdas derivadas dos tetos de reajuste aquém dos custos incorridos, dado que se trata de mercados privados.

A intenção de regular o valor dos prêmios e os reajustes anuais dos planos individuais de saúde no Brasil é tão antiga quanto à criação da legislação que regula a saúde suplementar, e a ANS vêm, desde sua origem, estabelecendo tetos para a variação do valor prêmios, sendo esse um de seus principais objetivos, dado que sua atuação no mercado de planos coletivos é bastante limitada.

As razões pelas quais existe um teto de reajuste dos prêmios dos planos de saúde individuais no Brasil não são explícitas, mas se baseiam em percepções dos gestores públicos de que as há uma assimetria de informação sobre os processos de precificação dos prêmios entre as operadoras e os beneficiários. Também se associam a uma suposta tendência de cartelização inerente ao setor, no sentido de que as operadoras, se deixadas ao sabor do livre reajuste dos prêmios, podem associar-se para cobrar valores abusivos sem que os usuários tenham meios de se proteger.


Evolução da regulação dos prêmios: do modelo de yardstick competition ao price cap

Desde o ano 2000, a ANS definiu procedimentos para impor um teto de reajuste para os prêmios dos planos individuais de saúde. A primeira metodologia definida  baseou-se num modelo conhecido como yardstick competition, onde se utiliza como parâmetro a variação média dos preços de um mercado similar que estimule reduções de custos devido a uma maior exposição à processos concorrenciais que aumentam a transparência e reduzem as assimetrias de informação. Assim, escolheu-se como parâmetro para a correção anual do valor dos prêmios nos planos individuais, o reajuste médio anual praticado no mercado de planos coletivos que, apesar de não regulado pela ANS, serviria como referencial de um mercado competitivo similar.

Mas a escolha não agradou os gestores públicos por muito tempo. Os reajustes dos prêmios no mercado dos planos coletivos eram considerados exagerados e atribuídos a suspeitas de cartelização e existência de acordos de preços entre operadoras. Esses mercados também eram criticados por haver assimetria de informação e falta de transparência. Por todas essas críticas, o mercado de planos coletivos deixou de ser considerado pela ANS como um modelo de comparação para o mercado de planos individuais.

Assim, a partir de 2009, a direção da ANS iniciou a discussão de novas fórmulas que incorporassem critérios de reajuste dos prêmios que protegessem os beneficiários e estimulassem o crescimento do mercado de planos individuais de saúde. Discussões técnicas travadas entre 2009 e 2018 levaram à adoção de um novo modelo de teto de reajustes conhecido como price cap, utilizado para regular preços de monopólios expostos ao processo de privatização de serviços de utilidade pública, como ocorreu no governo de Margareth Thatcher na Inglaterra e nas grandes privatizações de empresas de energia e telecomunicações nos Estados Unidos.

O modelo de price cap substitui o repasse integral da variação dos custos para os preços por um processo, em que se desconta, dessa variação integral, um fator de produtividade, definido com antecedência pelo regulador (chamado de fator X), como forma de induzir a empresa (neste caso monopolista ou oligopolista) a buscar ganhos de eficiência superiores para descontá-los do aumento dos custos. Assim, os eventuais ganhos reais de produtividade são compartilhados com os consumidores. Esse compartilhamento ocorreria naturalmente num mercado competitivo, onde os preços mais baixos aumentariam a vantagem competitiva das empresas mais eficientes. Mas em mercados monopolistas, não haveria estímulo para tal, devendo, portanto, o regulador público intervir com uma fórmula de price cap para tornar compulsório este compartilhamento.


A Construção do IRPI e sua fórmula


O IRPI foi estabelecido pela Resolução Normativa 441 de 2018 da ANS, e baseou-se num modelo de price cap estabelecendo um índice ponderado de despesas assistenciais (80% do reajuste) e não assistenciais (20% dos reajustes). As despesas assistenciais são reajustadas através de índice específico (Índice de Variação da Despesa Assistencial ou IVDA) e as despesas não assistenciais reajustadas pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) calculado pelo IBGE, (expurgado do componente de saúde deste índice). Como o IPCA é, na grande maioria dos casos, inferior a qualquer índice de variação de despesa assistencial, ele por si só já atua, na prática, como redutor do valor do reajuste dos prêmios.

 IRPI = 0.8*IVDA + 0.2*IPCA

 Mas além da redução provocada pela aplicação do IPCA às despesas não assistenciais, existem outros fatores de redução do reajuste dos prêmios dos planos individuais que estão associados à fórmula do IVDA, uma vez que no cálculo deste índice, a ANS considerou três variáveis: (a) a variação média per-capita das despesas assistenciais (VDA) de todos os planos individuais do país ; (b) a variação média per-capita da receita de contraprestações destes planos ajustada por faixa etária dos beneficiários (VFE)  (incluindo os planos com cobertura odontológica) e; (c) o fator de estímulo aos ganhos de eficiência (FGE), que seria deduzido do quociente entre o VDA e o VFE, seguindo a lógica do modelo de price cap. Tudo isso seria dado, de forma simplificada, pela fórmula:

                                                          

O FGE é calculado pela diferença do VDA médio de cada operadora (VDAi) em relação ao VDA médio das operadoras que se encontram no 3º quartil superior (VDAq3), em um período de quatro anos, ponderada pelo número de beneficiários (Bi) de cada operadora, ou seja:

                                            

A inclusão do FGE na fórmula é o elemento introduzido pelo conceito de price cap, com base em quatro argumentos: (i) na ausência de um índice de eficiência, o cálculo do IRPI ficaria restrito ao índice de recomposição de receita e as operadoras não teriam incentivo para aumentar a eficiência através da redução de custos; (ii) os ganhos de eficiência não seriam apropriados pelas operadoras, mas sim pelos beneficiários; (iii) a concorrência do setor gera incentivos para o uso crescente de tecnologia que leva ao aumento de custos; (iv) a estrutura de custos do setor de saúde suplementar tende a ser concentrada e o uso do FGE seria um estímulo para que as operadoras aumentassem a concorrência.

Resultados dos reajustes nos prêmios no número de beneficiários

A aplicação do modelo de price cap (IRPI), de acordo aos objetivos da ANS de ampliar e dar mais segurança aos beneficiários dos planos individuais de saúde suplementar parece ter dado resultados opostos ao ao esperado. O gráfico abaixo (com dois eixos) mostra a evolução do número de beneficiários dos planos individuais e dos planos coletivos de saúde suplementar entre 2011 e 2022. Observa-se que entre 2011 e 2014 há um crescimento do número de beneficiários nos dois tipos de plano. Mas com a crise 2015-2016, o número de beneficiários, também nos dois tipos de plano, apresenta forte queda. Onúmero de beneficiários dos planos coletivos se estabiliza a partir de 2017 e volta a crescer em 2018, com percentuais elevados, ultrapassando em 2021 o número de beneficiários registrado em 2014, antes da crise.

                 Fonte: Dados de beneficiários da ANS


Mas no que se refere aos planos individuais, verifica-se uma queda acentuada do número de beneficiários desde 2014 e um tímido crescimento, a partir de 2021, o qual nunca recuperou os níveis anteriores. Nesse sentido, se pode aventar a hipótese de que o uso, a partir de 2018, do modelo price cap (IRPI) de reajuste dos prêmios dos planos individuais, além de não cumprir o objetivo de ampliar o tamanho do mercado, teve efeitos opostos levando à sua redução.

De fato, desde que se iniciou a aplicação do IRPI, a participação dos beneficiários de planos individuais caiu de 19,3% para 17,9% do total de beneficiários dos planos médicos da saúde suplementar, considerado o período setembro 2018 a setembro 2022. E o grande motivo associado a isso é o fato de que as operadoras não têm incentivos para continuar a ofertar planos individuais num contexto em que os reajustes dos prêmios destes planos não recuperam, sequer, a variação dos custos médico-hospitalares (VCMH).

A tabela abaixo mostra como o IRPI tem se comportado recentemente em relação à variação média dos planos de saúde coletivos (utilizada como parâmetro para o antigo critério de reajuste dos planos individuais no modelo yardstick competition) e duas metodologias de VCMH (do IESS e da Arquitetos da Saúde).

Comparação entre os reajustes do IRPI, dos planos coletivos com 30 vidas e mais e de dois tipos de VCMH: 2018-2022

Anos

IRPI (%)

Planos Coletivos (%)

VCMH1(*)

VCMH2(**)

2018

10,00

11,33

17,60

10,59

2019

7,35

9,99

16,90

8,33

2020

8,14

7,10

14,20

11,03

2021

-8,19

5,55

-3,10

-5,09

2022

15,52

19,37

27,10

19,61

Fontes: ANS, ABRAMGE, IESS e Arquitetos da Saúde. (*) VCMH do IESS. Os dados são relativos ao mês de setembro do ano anterior. (**) VCMH da Arquitetos da Saúde.

 Observa-se que qualquer que seja a comparação o IRPI representa para as operadoras um reajuste nos prêmios dos planos individuais menor do que o relacionado aos planos coletivos e a VCMH, que é a medida mais próxima dos custos incorridos pelas operadoras. A aplicação do IRPI retira o incentivo para que planos de saúde individuais continuem a ser oferecidos pelas operadoras, dado que o mercado de planos coletivos, como resultado da livre-negociação, oferece melhores condições para a reposição de perdas na variação dos custos médico-hospitalares.

Tudo isso acaba tendo consequências para os beneficiários e também para as operadoras, dado que, com reajustes anuais mais baixos do que os dos planos coletivos, os gestores dos planos individuais podem utilizar diversos expedientes para compensar suas perdas, tais como recorrer a valores mais elevados nos novos contratos para contrabalançar as perdas futuras, ou ainda simplesmente desestimular o uso desses contratos e fomentar o uso de contratos coletivos por adesão para aqueles que poderiam ingressar nos contratos individuais.


Principais deficiências do uso do IRPI para reajustar prêmios dos planos individuais

 a)       O uso do modelo de price cap

O modelo de price cap, aplica-se aos mercados monopolistas ou oligopolistas de empresas públicas que foram privatizadas ou concessionadas, para garantir que os consumidores não sejam extorquidos por aumentos abusivos nos preços. Mas seria o mercado de seguros privados voluntários de saúde um candidato à aplicação do modelo de price cap? Parece que não. Em primeiro lugar, porque esse mercado, no Brasil, já nasce privado e os serviços que oferecem são ofertados livremente no mercado. Serviços essenciais de saúde seriam em tese, oferecidos gratuitamente pelo SUS e, portanto, aqueles que optam pela saúde suplementar (empresas ou indivíduos) o fazem por livre e espontânea vontade, e não pela falta de uma opção pública de acesso aos serviços de saúde. Em segundo lugar, o mercado de saúde suplementar, apesar de ter tendências crescentes a concentração, não é um mercado monopolista ou oligopolista pleno, nem é derivado de privatizações de serviços essenciais ofertados pelo Estado, existindo, uma competição do tipo oligopólio diferenciado no setor. Portanto, este mercado não é um candidato natural ao uso do modelo price cap.

b)      O uso do IVDA na fórmula do IRPI

Uma decomposição da fórmula do IVDA demonstra que ele não é uma medida da variação de custos, e sim uma medida que mostra se a variação das despesas assistenciais foi maior ou menor que a variação estimada das receitas de contribuição. Assim, o IVDA não representa a variação real dos custos médicos hospitalares incorridos pelas operadoras dos planos individuais de saúde, a qual deveria ser medida pela VCMH, que calcula as variações entre os custos médico-hospitalares ponderada pelas variações nos níveis de utilização dos serviços.

c)       O uso do fator de reajuste por faixa etária do beneficiário

A fórmula de cálculo do VFE infla artificialmente o valor da receita per capita em função de ajustar o valor médio per capita das receitas de contribuição pela mudança na composição etária dos beneficiários da carteira ao longo do período de variação analisado. Simulações realizadas no momento da definição da fórmula do IRPI, demonstraram, através da análise da recomposição do VDA para os anos de 2015 a 2017 por faixa etária, que por conta dos efeitos da migração de planos em cada grupo de idade ocorreram decréscimos no número de beneficiários em todas as faixas etárias, com exceção da última, levando a uma apuração de efeito negativo do ajuste por faixa etária.

d)      O FGE não estimula a eficiência

O FGE não estimula a eficiência das operadoras, dado que ele será sempre um redutor da relação entre a variação das despesas assistenciais (VDA) e das receitas de benefícios (VFE). Se uma operadora gerou melhores resultados assistenciais para seus beneficiários, muitas vezes ela pode incorrer em despesas assistenciais maiores, mas esse tipo de eficiência não é capturado ou recompensado pelo FGE onde a eficiência é medida somente pela dimensão financeira (receita em relação ao gasto). O ganho de eficiência medido pelo FGE – ao ser deduzido da relação entre a variação das despesas sobre as receitas – gera um desestimulo às operadoras que entregam melhores serviços, dado que o FGE não captura os ganhos diferenciais por resultados assistenciais logrados no cálculo do reajuste do valor dos prêmios. O FGE considera como critério de eficiência o esforço das operadoras em reduzir a VDA ou aumentar a VFE, e não o esforço delas em gerar melhores serviços aos beneficiários.

e)      O IPCA expurgado não atualiza os custos não assistenciais

Custos não-assistenciais nos mercados privados de saúde podem variar tanto quanto os custos assistenciais em função das rápidas mudanças tecnológicas, da complexidade da cobertura, das necessidades específicas de gestão da informação, e dos processos detalhados de comunicação e interação com os beneficiários dos planos. Tudo isso faz com que a dinâmica dos custos não-assistenciais dos seguros de saúde seja intrinsecamente diferente da existente em outros mercados de bens e serviços. Os processos administrativos aplicados em saúde, por exemplo, são muito mais complexos do que em outros setores e são sensíveis às variações de custos associadas ao uso crescente de tecnologia da informação, à logística de aquisição e estocagem de insumos, a gestão particular e intensa de recursos humanos e a grande densidade, heterogeneidade e fragmentação de procedimentos que são específicos do setor saúde. Investimentos em tecnologia da informação, especialmente em telemedicina, tendem a aumentar o nível de utilização dos planos de saúde, o que também contribui para o crescimento dos custos não-assistenciais. 

f)        O IRPI traz inércia inflacionária no processo de reajuste dos planos

Os componentes do IRPI – o IVDA e o INPC expurgado - refletem a conjuntura inflacionária do ano anterior.  Ao transferi-la para o ano em curso, cria-se um componente inercial da inflação passada para os reajustes futuros dos planos individuais, sem antecipar os fatores que estão influenciado a composição dos gastos em saúde no momento presente. Este processo pode trazer efeitos graves para as operadoras, dado que em épocas em que a inflação tende a crescer, ele estaria reajustando os prêmios por um valor menor do que as reais pressões inflacionárias. Analogamente, em épocas em que a inflação é declinante, ele estaria inflacionando artificialmente o valor dos prêmios em relação aos aumentos de custo praticados no presente, prejudicando os beneficiários.

g)       As operadoras não recuperam a integralidade de seus gastos com o uso do IRPI

A perda média acumulada das operadoras no valor dos prêmios, entre 2018 e 2022, em função do uso do IRPI ao invés do VCMH para o reajuste prêmios dos planos individuais, alcançou um percentual de 10,2%, ou seja, caso o reajuste não fosse realizado pelo IRPI, mas pela VCMH, o reajuste acumulado dos prêmios individuais até 2022 permitiria que o valor do prêmio fosse 10% mais elevado do que o registrado. Dadas essas perdas crescentes, é natural que as operadoras se sintam prejudicadas ao terem que obedecer a um teto uniforme de reajustes para todos os planos individuais, dado pelo IRPI, independentemente dos custos reais incorridos por elas e dos ganhos de eficiência no atendimento aos beneficiários. Com isso, as operadoras tendem a desestimular a busca por novos contratos de planos individuais e são estimuladas a concentrar os novos contratos em planos coletivos por adesão.

h)      O IRPI não respeita a heterogeneidade regional/institucional dos mercados de planos individuais

O IRPI é aplicado como um índice único de teto de reajustes para a totalidade das operadoras em todos os mercados de saúde suplementar que vendem planos individuais. Mas os mercados de saúde suplementar no Brasil são segmentados por tipo de operadora e por estado ou região, não havendo nenhum sentido em utilizar um teto de reajustes único dos planos individuais que seja válido para todo o país. A melhor aproximação para o percentual de reajuste de um prêmio para um plano de saúde individual é a variação específica do VCMH de cada operadora, desde que obedecendo a parâmetros estabelecidos de transparência e auditoria dos dados.

Considerações Finais

 O IRPI, como fórmula de reajuste dos planos individuais da saúde suplementar ainda se encontra vigente, mas será revisto em 2023, como parte da agenda regulatória da ANS para o triênio 2023-2025.  Seja como for, sugere-se, nesta postagem, que os novos critérios para o reajuste dos planos individuais de saúde não sejam necessariamente presos a fórmulas, mas sim a processos que permitam o cumprimento de alguns princípios básicos que garantam o equilíbrio de longo prazo dos contratos de asseguramento de saúde entre beneficiários de planos individuais e operadoras.

Esses princípios são: simplicidade, objetividade, transparência, sustentabilidade, competitividade, reconhecimento e auditabilidade. Se observados esses princípios e analisar como eles se aplicam na atual fórmula do IRPI, podemos dizer que o IRPI:

(a)   não cumpre o princípio da simplicidade, dado que sua fórmula não é simples nem de fácil aceitação por todos os stakeholders envolvidos;

(b)   não cumpre o princípio da objetividade, que deveria ser a sustentabilidade a longo prazo dos planos individuais, dado que não compensa, de forma fidedigna, as perdas inflacionárias das operadoras, desestimulando-as a expandir esse mercado;

(c)    não cumpre o princípio da transparência, dado que não torna pública as demonstrações contábeis que permitam conhecer as variações de custos de cada operadora, ao longo dos anos, e nem realiza auditorias associadas aos informes sobre custos apresentados pelas operadoras;

(d)    não garante sustentabilidade, nem para as operadoras que tiveram variações de custos superiores ao IRPI, nem para os beneficiários situados em alguns segmentos de mercado, ou como estados ou municípios, onde a variação dos custos foi inferior ao IRPI unificado médio nacional, o qual serve de parâmetro para o teto de reajuste do valor de todos os prêmios de planos individuais de saúde;

(e)    não garante competitividade, pois o FGE, utilizado para incentivar a concorrência entre as operadoras, acaba atuando como desincentivo, dado que, por ser descontado da variação das despesas assistenciais, acaba reduzindo o interesse das operadoras em oferecer novos planos individuais no mercado;

(f)    não cumpre o princípio do reconhecimento, pois não compensa as operadoras mais eficientes ou que alcançam melhores resultados, dado que não está associado a performance da operadora no que se refere aos resultados para seus beneficiários e;

(g)   não cumpre o princípio da auditabilidade, dado que não criou uma estrutura capilarizada que permita que os dados apresentados pelas operadoras possam ser auditados e garantam a integralidade das suas fontes de informação e a realização de projeções futuras para prever eventuais quebras que sempre acabam prejudicando os beneficiários.

A busca de processos que garantam o cumprimento dos princípios acima elencados, deverá ser fundamental na manutenção do equilíbrio dos contratos entre operadoras e beneficiários a longo prazo e nas condições que permitam o crescimento do mercado de planos individuais de saúde que sofreu fortes quedas nos últimos 11 anos.



[1] O autor agradece as discussões e atividades mantidas com várias técnicos e especialistas em saúde suplementar ao longo do ano passado sobre o tema, cabendo destacar Luiz Feitoza e Adriano Londres, empreendedores da Arquitetos da Saúde, Cláudio Contador, gerente da SILCON e Sandro Leal Alves, superintendente da FENASAUDE. 

[2] A Agenda Regulatória 2023-2025 foi montada a partir dos resultados da Tomada Pública de Subsídios 01/2022, realizada entre os dias 19 de setembro e 18 de outubro de 2022, que teve por objetivo obter contribuições e informações para sua elaboração. Participaram desta consulta pública 23 entidades e 2 contribuintes individuais. Os temas selecionados para, pela ANS para a agenda podem ser encontrados no link: https://www.gov.br/ans/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-da-sociedade/agenda-regulatoria/MinutadaAgendaRegulatria_23011.pdf

 [3] Resolução Normativa (RN) da ANS Nº 441, DE 19 de dezembro de 2018.

 [4] Ver a esse respeito Medici, A.C (2021), O Desafio da Cobertura Universal de Saúde nos Estados Unidos: De Barack Obama a Joe Biden, Ed. Universal Health Monitor, Potomac, 2021, Link: https://www.researchgate.net/publication/348606634_O_Desafio_da_Cobertura_Universal_de_Saude_nos_Estados_Unidos_De_Barack_Obama_a_Joe_Biden

 

sexta-feira, janeiro 06, 2023

A Saúde em Perspectiva: Balanço de 2022 e Tendências para 2023 em Rápidas Pinceladas

Ano 18, No. 130, Janeiro de 2023

André Medici


Feliz ano novo?


Antes de tudo, um feliz ano novo para todos. Mas quais são as reais chances de que 2023 venha a ser um ano feliz? Embora a felicidade seja sempre um aspecto subjetivo em nossas vidas, há fatores objetivos que nos fazem duvidar. As previsões dos organismos multilaterais para o crescimento da economia mundial em 2023 foram rebaixadas significativamente nos últimos meses. Embora ainda não apontem para decréscimos no PIB, já se registra forte desaceleração das economias que lideram o crescimento mundial, o que aumenta a probabilidade de uma recessão global em 2023. E as economias de renda alta e renda média não tem desenvolvido, como resposta, políticas econômicas sólidas e convincentes para evitar uma recessão global, fortalecer as estruturas macroeconômicas, impulsionar as perspectivas de crescimento de médio prazo e enfrentar as mudanças climáticas.

Esta postagem mostra que o ano de 2022 não foi fácil para a saúde global e brasileira e que ambas continuarão a ser problemáticas em 2023. Os desafios mostram uma dependência crescente entre a economia mundial e a performance do setor saúde. Envelhecimento populacional, ameaças aos regimes democráticos, extremismos ideológicos, desigualdades econômicas e sociais, populismos autoritários tentando travestir-se de democracias, promessas idílicas para os pobres sem bases estratégicas e evidências para tornarem-se realidade, guerras dispendiosas, sangrentas e intermináveis e crises de governabilidade reduzem as possibilidades de uma recuperação vigorosa da economia mundial e poderão trazer fortes consequências negativas para uma boa performance do setor saúde.

 

A economia mundial e brasileira em 2022 e perspectivas para 2023

Ao longo de 2022, a economia mundial teve um crescimento menor do que o esperado e a inflação foi a maior das últimas décadas, trazendo aumentos no custo de vida e aperto creditício, com a elevação das taxas de juros na maioria dos países. A esperada recuperação pós-pandemia não ocorreu no ritmo desejado, em função dos altos custos trazidos pela injustificável guerra entre Rússia e Ucrânia e pelo surgimento da variante ômicron, que trouxe as mais elevadas taxas de infecção de toda a trajetória pandêmica ao longo dos primeiros meses de 2022, com efeitos graves na economia dos países de renda elevada e média.

Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI)[1], o crescimento econômico mundial de 6,0% em 2021 irá desacelerar-se para 3,2% em 2022 e para 2,7% em 2023, com pelo menos um terço da economia mundial em recessão. A inflação global deverá subir de 4,7% em 2021 para 8,8% em 2022, mas poderá cair para 6,5% em 2023 e para 4,1% em 2024, ainda que o FMI não tenha atualizado suas projeções com base no que ocorreu no último trimestre de 2022. As taxas de juros aumentarão de uma média de 1,8% e -0,2% nos mercados norte-americano e europeu em 2022 para algo em torno de 4,0% e 0,8% nestes mesmos mercados em 2023.

De todos os modos, serão necessárias, não apenas uma política monetária apertada, mas reformas estruturais que permitam controlar a inflação, melhorar a eficiência e a produtividade e diminuir as restrições na oferta em boa parte dos países de alta e média renda. As mudanças climáticas exigirão novos padrões de consumo de energia e a transição para uma economia verde que permita prevenir e, em alguns casos reverter, os desastres naturais e humanitários que têm ocorrido como resultado da mudança do clima e da degradação ambiental.

A China – um dos pilares do crescimento da economia global – depois de um incrível crescimento médio de sua renda per-capita de 9,7% ao ano no período 2004-2013, reduziu suas taxas de crescimento médio para 6,3% entre 2014 e 2019 – muito acima da média anual da economia mundial no mesmo período (2,1%). Em 2020, a China foi um dos poucos países com crescimento positivo de sua renda per-capita (2.1%), voltando a crescer 8,0% em 2021. Mas as projeções do FMI indicam que em 2022 e 2023 este crescimento será bem menor, estando estimado em 3,2% e 4,5%, respectivamente.

Uma retrospectiva do que ocorreu na economia mundial e no Brasil, nas últimas duas décadas, pode trazer uma perspectiva do que poderá ocorrer em 2022 e 2023. Os gráficos 1 e 2 mostram a evolução real da renda per-capita mundial e brasileira (em dólares associados a paridade do poder de compra) entre 2004 e 2021 e as perspectivas para 2022 e 2023.


 Fonte: FMI-World Economic Outlook, Outubro de 2022. Os dados originais foram calculados em dólares constantes de 2017 com paridade do poder de compra.

 

Verifica-se, no gráfico 1, que a renda per-capita da economia brasileira cresceu a uma taxa média de 3.0% entre 2004-2013, enquanto a da economia mundial cresceu apenas a 2,5% no mesmo período. Esse processo levou o Brasil a tomar a dianteira no crescimento entre muitas economias emergentes, colocando o país numa situação favorável, expressa, como vocês devem se lembrar, na capa da revista “The Economist”, edição de 12 de Novembro de 2009, que mostra o Cristo Redentor decolando (Brazil takes off). Mas os dez anos que se seguem não mantiveram essa tendência. A renda per-capita da economia mundial passou sistematicamente a crescer a taxas superiores à da economia brasileira, situação que deverá se prolongar até 2023.

O gráfico 2 mostra, em números índices, o que aconteceu (e poderá acontecer ainda) com a renda per-capita mundial e brasileira entre 2014 e 2023. Verifica-se que entre 2013 e 2019 a renda per-capita mundial cresceu 13% enquanto a renda per-capita do brasileiro sofreu uma queda de 7%. Mesmo em 2020 – o primeiro ano da pandemia – o decréscimo da renda per capita mundial foi menor do que o ocorrido no Brasil (-4,1% comparado com -4,6%, respectivamente).

No primeiro ano de recuperação da pandemia (2021) a renda per capita mundial aumentou 5,4% enquanto a renda per capita brasileira aumentou apenas 4,2%. As projeções para 2022 e 2023 indicam que a renda per capita brasileira crescerá apenas 2,2% e 0,4%, enquanto a renda per capita mundial aumentará 2,4% e 1,6% ao longo destes dois anos, respectivamente.

 

Fonte: FMI-World Economic Outlook, Outubro de 2022. Os dados originais foram calculados em dólares constantes de 2017 com paridade do poder de compra.

 

Portanto, no frigir dos ovos, se pode dizer que entre 2013 e 2023, mesmo com a pandemia, a renda per capita mundial está projetada para crescer 17,1% enquanto a renda per-capita brasileira deverá apresentar uma queda acumulada de -5,1%, ao longo deste período, com base nas projeções do FMI de outubro de 2022.

Nenhum país merece uma queda tão prolongada de sua renda per-capita, e consequentemente do padrão de vida de seu povo, em um longo período de dez anos. Mas o que ocorreu no Brasil foi o resultado de poucas opções e más escolhas eleitorais e, também, do referendo (ora incompetente, ora inescrupuloso) das autoridades em todas as esferas e níveis de governo a políticas econômicas, sociais e ambientais equivocadas. A revisão dos estatutos jurídicos sobre a condução de processos legais e a tolerância no uso de conceitos distorcidos de ética e probidade no uso dos recursos públicos acabaram detonando os orçamentos governamentais, com a redução dos instrumentos legais que poderiam corrigir os problemas existentes e prevenir que outros similares (ou até piores) venham a surgir. Este rosário de malfeitos poderá continuar a trafegar a esburacada, lenta e perigosa estrada que leva a população brasileira ao seu destino ainda incerto nos próximos anos.

 

O legado não inventariado da pandemia

Em 2022 a incidência do Covid-19 continuou a dominar o cenário dos principais problemas mundiais, apesar da clara tendência à redução do número de casos e de mortes associadas à pandemia. A dominância do Covid-19 derivou do fato de que muitos dos problemas enfrentados pelo setor saúde, ao nível mundial, continuam associados às consequências econômicas, sociais, epidemiológicas e demográficas trazidas pela pandemia no cenário global.

No final de 2022, as atenções se voltam para a China, que passa a ser vitimada por um poderoso ciclo de crescimento da pandemia decorrente de erros logísticos e organizacionais, como longos lockdowns, baixas taxas de vacinação, especialmente entre idosos, e inconsistência nas medidas regulatórias em relação ao controle social da endemia[2]. É possível que este fato, como colocado em nossa postagem anterior, venha a trazer consequências para o mundo inteiro pela geração e disseminação de novas variantes que deverão surgir em um país que poderá apresentar milhões de casos diários de Covid-19 sem possibilidades de tratamento.

Desde fins de dezembro de 2022 a China deixou de registrar novos casos de Covid-19 num momento em que a pandemia atinge taxas diárias de infecção estimadas em milhões, mas não confirmadas pelas autoridades do país. As consequências de curto prazo estão no esgotamento das vagas em hospitais, no excesso de mortalidade e na falta de capacidade dos necrotérios e cemitérios em receber e enterrar os mortos, bem como em um crescimento econômico muito baixo em relação à média histórica do país ao longo da década passada.

Mas mesmo fora da China, em outubro de 2022, surge a variante ômicron XBB.1.5, identificada inicialmente em Singapura e na Índia, mas presente em dezembro deste ano em mais de 30 países, de acordo com os registros da Organização Mundial da Saúde (OMS). Sendo a mais transmissível das variantes da ômicron, ela já representa mais de 40% dos novos casos de Covid-19 nos Estados Unidos, num momento em que o número de casos e as taxas de hospitalização está crescendo rapidamente.

Como decorrência da pandemia, a esperança de vida, ao nível mundial, se reduziu em muitos países desde 2020, embora ainda não existam dados que permitam realizar uma estimativa sólida global de todos os efeitos sobre a mortalidade trazidos pela pandemia. Estudo realizado pela Universidade de Oxford, no Reino Unido[3], estima que a redução da expectativa de vida nos dois primeiros anos da pandemia tenha sido a maior desde a segunda guerra mundial. Em 27 dos 29 países pesquisados neste estudo a redução de expectativa de vida foi uma decorrência direta ou indireta da pandemia. A redução direta ocorreu em função da própria mortalidade trazida pela Covid-19 e a indireta pelas consequências da pandemia na redução dos atendimentos médicos que levaram ao excesso de mortalidade por doenças crônicas, ao aumento de distúrbios mentais (como o consumo de drogas[4]), às sequelas de um conjunto de efeitos negativos à saúde, conhecido como “Covid-Longa”, à deterioração das condições de vida dos mais pobres e a outras consequências que precisariam ser mais bem quantificadas e estudadas.

Para exemplificar, pode-se notar que nos Estados Unidos, a expectativa de vida ao nascer, que havia alcançado 78,8 anos em 2019, caiu para 77,0 anos em 2020 e para 76,4 anos em 2021. Em 2022 ainda não existem dados fechados e, como o número de mortes por Covid-19 sofreu substancial redução, é possível que a esperança de vida tenha voltado a crescer. Mas uma redução da expectativa de vida em dois anos consecutivos naquele país, como a ocorrida entre 2019 e 2021, somente havia sido registrada na história recente no período da gripe espanhola[5].

No Brasil, estudos realizados pelo CEDEPLAR-UFMG[6]  calcularam, somente em 2020, uma redução de quase dois anos na expectativa de vida dos brasileiros como reflexo do excesso de mortalidade trazido pela Covid-19, indicando que, uma vez computados os dados de 2021 e 2022, os resultados poderão indicar uma redução ainda maior na expectativa de vida como resultado do excesso de mortalidade trazido pela pandemia.

Como já destacado na postagem anterior deste blog, o Brasil foi um dos países que apresentou uma mortalidade desproporcionalmente alta como resultado da Covid-19, em comparação com outros países, em função do comportamento negacionista de parte das autoridades públicas, do baixíssimo nível de testes para detecção de casos e dos atrasos na compra e aplicação de vacinas.

A verdade é que a pandemia do Covid-19 afetou substancialmente o modo de vida da população mundial com efeitos negativos que vão muito além da simples mortalidade e redução da expectativa de vida. Entre eles, os efeitos econômicos já mencionados nos países de renda alta e média, refletidos em excessos de gastos públicos para fazer frente às quedas acentuadas da renda per-capita, na rentabilidade das empresas e na descontinuidade no abastecimento das cadeias produtivas. Seguiram-se choques inflacionários que, como visto, ecoam até hoje, os quais serão difíceis de sanar a curto prazo dados os elevados graus de endividamento público, e os choques de oferta de produtos essenciais como energia e alimentos.

 

Tendências do Setor Saúde em 2023 no Mundo e no Brasil

Efeitos da Pandemia na Prestação de Serviços: Os efeitos da pandemia ainda trouxeram, entre 2020 e 2022, fortes desajustes na continuidade da prestação de serviços, no esgotamento físico e mental e na escassez de pessoal de saúde, na ruptura das cadeias de suprimentos, medicamentos e equipamentos. Hospitais e planos de saúde sofreram margens flutuantes ou decrescentes em seus rendimentos e tem dificuldades de encontrar um equilíbrio para atender a demanda contida por atendimentos médicos, exames e medidas de prevenção e controle durante os anos de pandemia. Parte destes problemas estarão presentes em 2023 e todos devem ter a consciência do que serão necessárias reformas na administração dos sistemas de saúde públicos e privados para enfrentá-los.  

Para exemplificar, no Brasil, entre janeiro de 2018-junho de 2019, e janeiro de 2020-junho de 2021, o número de internações do SUS se reduziu em 17,8 milhões para 16,0 milhões em grande medida, como decorrência de cirurgias eletivas canceladas ou pela ocupação dos hospitais com leitos para o Covid-19[7]. Ações de promoção e prevenção se reduziram 35% e procedimentos com finalidade diagnóstica se reduziram 13%. Procedimentos clínicos se reduziram 27% e procedimentos cirúrgicos ambulatoriais 53%. Transplantes de órgãos e tecidos apresentaram uma redução de 20%, no mesmo período.

Portanto, os períodos em que ocorreram os maiores volumes de óbitos por Covid-19 coincidem com os de maiores volumes de óbitos por outras causas, e com os menores volumes de atendimentos para causas não Covid-19, denotando claramente uma sobre mortalidade e um sub atendimento por doenças crônicas em decorrência dos problemas na utilização da rede regular do SUS durante a pandemia. A queda em ações de promoção e prevenção, as quais já apresentavam redução antes da epidemia, se intensificou durante a incidência elevada de Covid-19, agravando o quadro de doenças crônicas e o represamento dos atendimentos no SUS. Isto influenciou diretamente o crescimento de óbitos por outras causas, e trouxe dificuldades para a retomada dos atendimentos do SUS que necessitarão de investimentos para alcançar os níveis pré-pandêmicos.

Os dados completos do SUS ainda não estão disponíveis para o ano de 2022, mas provavelmente deve ter havido uma recuperação de alguns serviços com a redução das taxas de incidência pandêmica. Mas este retorno ainda é insuficiente para a retomada do nível de normalidade de atendimento às demandas populacionais relacionadas a internações e atividades ambulatoriais do SUS. Portanto, em 2023 ainda há uma enorme demanda insatisfeita com atendimentos hospitalares e ambulatoriais do SUS que deverá demandar recursos, pessoal e capacidade instalada para satisfazer as necessidades da população da maioria dos estados brasileiros.

 

Inflação em Alta e Mudanças Regulatórias nos Planos de Saúde: Com a elevação das taxas de inflação, o setor saúde deverá ser fortemente afetado pelos preços dos insumos, da força de trabalho, dos medicamentos, exames e demais serviços em 2023. Os preços dos seguros e planos de saúde poderá impactar o custo de vida levando famílias a perderem seus seguros e, dessa forma, atrasarem os cuidados de rotina e exames, afetando negativamente os resultados de saúde.

No Brasil, em particular, um tsunami de normativas, tais como redefinições nas fórmulas de reajustes dos planos individuais de saúde, mudanças no rol de procedimentos da ANS (de taxativo para exemplificativo) fim das restrições de serviços associados a terapias, aumento do número de terapias orais para o câncer e outros, deverão impactar o funcionamento das operadoras de planos de saúde.

A criação de um piso salarial para enfermagem, num momento em que os hospitais privados e os públicos estaduais e municipais se encontram limitados para o pagamento de aumentos salariais, também poderá aumentar fortemente a inflação setorial, ficando, no caso dos planos de saúde, cada vez mais difícil transferir os aumentos de custos para o valor dos prêmios de seguros, e no caso do SUS, a obtenção de recursos orçamentários para o pagamento dos aumentos salariais de enfermagem em seus hospitais próprios ou contratados.

E tudo isto acontece num ano onde os planos de saúde já acumulam prejuízos operacionais de R$5,5 bilhões no terceiro trimestre de 2022. De acordo com os dados da ANS os planos de saúde já apresentam resultados negativos em suas receitas ao longo de seis semestres consecutivos, com uma sinistralidade que já ultrapassou os 90%[8]. Mesmo assim, o número de pessoas com acesso a planos de assistência médica voltou a ultrapassar os 50,1 milhões, retomando o contingente de segurados registrado em 2014 antes da crise que levou a uma forte redução no número de beneficiários dos planos de saúde.

Depois dos prejuízos verificados em 2022, é esperado que os planos comecem a se estruturar para aumentar sua rentabilidade em 2023, mas o tsunami regulatório poderá trazer surpresas que impactarão muito o setor, obrigando-o a aumentar sua eficiência e reduzir seus custos para alcançar esses objetivos. Portanto, os resultados são ainda bastante incertos.

 

Redução das Margens de Rentabilidade:   Muitos sistemas de saúde, ao nível mundial, sofreram reduções de receitas durante e no pós-pandemia e ainda não recuperaram os níveis pré-pandêmicos. Com o aumento dos custos de suprimentos e mão de obra, 2022 pode acabar sendo um dos piores anos nas finanças dos hospitais privados ao longo das últimas décadas. A receita dos hospitais e sistemas de saúde tem sido afetada pela inadimplência dos pacientes, maiores glosas dos seguros de saúde e atrasos nos atendimentos. Um número crescente de pacientes está mudando para centros ambulatoriais em vez de hospitais na busca por procedimentos não emergenciais que lhes representem, não apenas maior comodidade, mas também menores custos.

Nos Estados Unidos, as margens operacionais médias dos hospitais e sistemas de saúde caíram 46% em setembro de 2022 em comparação com o mesmo mês do ano anterior. Essa compressão de margens pode não ser sustentável para muitos hospitais, especialmente organizações pequenas e controladas localmente. Como resultado, alguns hospitais podem sofrer processos de concentração, serem vendidos ou forçados a fechar suas portas.

No Brasil, os indicadores da Associação Nacional dos Hospitais Privados (ANAHP) mostram uma tendência à redução das margens de rentabilidade. A margem EBTIDA dos hospitais da ANAHP no período janeiro e agosto de 2022, em comparação com o mesmo período de 2021, se reduziu de 13,3% para 12,5%[9]. Associado a isso, observa-se um aumento do volume de glosas como porcentagem das receitas (de 3,6% para 4,9%) e um aumento nos prazos de recebimento das faturas hospitalares (de 68 para 75 dias), no mesmo intervalo de tempo. Se o tsunami de medidas regulatórias apertar ainda mais, as margens de rentabilidade dos planos de saúde em 2023 e outros indicadores correlatos poderão apresentar uma deterioração ainda maior.

 

Digitalização da Saúde: Com o aumento das taxas de juros, as organizações de saúde poderão ter dificuldades para fazer empréstimos destinados a modernizar sua tecnologia e adotar as transformações digitais. De acordo com pesquisa realizada pela empresa de consultoria Deloitte, cerca de 29% de dirigentes do setor saúdem disseram que a transformação digital provavelmente terá um grande impacto na estratégia de sua organização em 2023, mas 63% consideram que terá um efeito moderado. Entre os executivos de planos de saúde, no entanto, espera-se que a transformação digital acelerada tenha um “grande impacto” (43%) ou um “impacto moderado” (50%) em 2023.

No Brasil, a pandemia avançou, por questões de necessidade, o uso da telemedicina e da telessaúde de forma muito rápida, mas com as restrições de rentabilidade, crédito e inflação, dificilmente se poderá esperar investimentos de grande porte no setor em 2023. A maioria dos dirigentes, tanto no setor público como no privado, não decidiram se realizarão investimentos ou de onde sairão os recursos que necessitam para fazê-los.

 

VBHC e novos modelos de remuneração:  Já faz alguns anos que se fala em mudanças nos modelos de pagamento em saúde, tendo em vista a transição de sistemas de remuneração por serviço para remuneração por valor e resultado (Value Based Health Care ou VBHC). Mas os avanços, até o momento, têm sido muito tímidos e se limitam a poucas experiências.

A transição para novos modelos de pagamento via VBHC se anuncia como a principal prioridade entre os executivos de planos de saúde privados, mas eventuais restrições financeiras em 2023, associadas ao tsunami regulatório na saúde suplementar e a uma eventual continuidade na redução das margens de rentabilidade dos hospitais privados, poderão trazer dificuldades para que os planos de saúde, como pagadores, negociem estes processos. Eventualmente, seguros de saúde verticalizados, com suas próprias redes, terão mais graus de liberdade para negociar e implementar estes modelos. Mesmo assim, isso ocorrerá, provavelmente, de forma limitada.  Hospitais e sistemas de saúde, por outro lado, estarão mais focados em aumentar suas margens em 2023. Isso pode dificultar que os planos de saúde venham a convencer os provedores vinculados a suas redes para que aceitem novos modelos de pagamento e remuneração num ambiente de incerteza.


No SUS é difícil dizer o que poderá acontecer. No âmbito federal, poderá haver uma certa dificuldade na aceitação de modelos de pagamento baseados em resultados. As regras que deverão reger a gestão do SUS no novo governo se fundamentam em processos corporativos, baseados no assalariamento e na progressão em carreira de profissionais, com remuneração não associada a resultados. Além do mais, consideram qualquer argumentação que busque, ao fim, aumentar a eficiência na saúde uma parte do discurso neoliberal. O que vale, nesse contexto, é um pretenso discurso de proteção ao profissional de saúde, mesmo que na prática lhe paguem baixos salários e não existam incentivos para que estes evoluam e se realizem profissionalmente através do alcance de melhores resultados para seus pacientes. No entanto, como o SUS é descentralizado, deve-se confiar que a bandeira do VBHC e dos resultados no setor público venha a ser levada a sério pelos secretários estaduais e municipais de saúde, e que estes coloquem o paciente como centro e garantam a melhoria da saúde de suas populações como meta. Nesse contexto, o VBHC no SUS poderá evoluir.

[1] International Monetary Fund - IMF (2022), World Economic Outlook – October 2022”, Ed. IMF, Washington (DC), 2022.

[2] Este blog fará, em breve, uma postagem sobre o caso da Covid-19 na China com base em relatos de pessoas que vivem naquele país, apresentando informações desconhecidas para quem não vive o dia a dia da população chinesa. Para acessar a postagem anterior, use o link: https://monitordesaude.blogspot.com/2022/12/

 

[3] Schöley, et al (2022), Life expectancy changes since COVID-19, in Nature Human Behavior 2022 Dec;6(12):1649-1659. Doi: 10.1038/s41562-022-01450-3. Oct 17, 2022. Link: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/36253520/

 

[4] Somente nos Estados Unidos ocorreram 107 mil mortes por consumo de drogas em 2021 (número 50% maior do que 2019), das quais quase 40% associadas ao opioide conhecido como fentanyl. Os dados indicam que em 2022 esse número deverá ser ainda maior.

 

[5] Nos EUA a pandemia de influenza diminuiu a expectativa de vida de 54,0 para 47,6 anos num período de 6 anos (entre 1918 e 2024). Ao longo de dois anos (entre 2019 e 2021) o COVID-19 reduziu a expectativa de vida norte-americana em cerca de 78.8 para 76.4 anos. Nesse sentido, enquanto a gripe espanhola reduziu a expectativa de vida a uma taxa de 2,1% ao ano, a Covid-19, até o momento, reduziu a esperança de vida a uma taxa de 1,5% ao ano.

 

[6] Ver Castro, M.C. et al. (2021), Reduction in the 2020 Life Expectancy in Brazil after COVID-19 in Nature Medicine | VOL 27 | September 2021 | 1629–1635 | www.nature.com/naturemedicine, Link file:///C:/Users/medic/Downloads/s41591-021-01437-z%20(1).pdf

 

[7] O “represamento” do atendimento em saúde no SUS, Nota Técnica 22, 09 de novembro de 2021, MonitoraCovid-19 – ICICT / FIOCRUZ, link: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/nota_tecnica_22.pdf

 

[8] O conceito de sinistralidade pode ser dado pela divisão dos gastos assistenciais e não assistenciais com beneficiários dos planos de saúde de uma operadora pela sua receita de prêmios de seguro, multiplicados por 100.

 

[9] Ver Indicadores Hospitalares da ANAHP, outubro de 2022, link: https://www.anahp.com.br/pdf/indicadores-out22.pdf