sexta-feira, janeiro 06, 2023

A Saúde em Perspectiva: Balanço de 2022 e Tendências para 2023 em Rápidas Pinceladas

Ano 18, No. 130, Janeiro de 2023

André Medici


Feliz ano novo?


Antes de tudo, um feliz ano novo para todos. Mas quais são as reais chances de que 2023 venha a ser um ano feliz? Embora a felicidade seja sempre um aspecto subjetivo em nossas vidas, há fatores objetivos que nos fazem duvidar. As previsões dos organismos multilaterais para o crescimento da economia mundial em 2023 foram rebaixadas significativamente nos últimos meses. Embora ainda não apontem para decréscimos no PIB, já se registra forte desaceleração das economias que lideram o crescimento mundial, o que aumenta a probabilidade de uma recessão global em 2023. E as economias de renda alta e renda média não tem desenvolvido, como resposta, políticas econômicas sólidas e convincentes para evitar uma recessão global, fortalecer as estruturas macroeconômicas, impulsionar as perspectivas de crescimento de médio prazo e enfrentar as mudanças climáticas.

Esta postagem mostra que o ano de 2022 não foi fácil para a saúde global e brasileira e que ambas continuarão a ser problemáticas em 2023. Os desafios mostram uma dependência crescente entre a economia mundial e a performance do setor saúde. Envelhecimento populacional, ameaças aos regimes democráticos, extremismos ideológicos, desigualdades econômicas e sociais, populismos autoritários tentando travestir-se de democracias, promessas idílicas para os pobres sem bases estratégicas e evidências para tornarem-se realidade, guerras dispendiosas, sangrentas e intermináveis e crises de governabilidade reduzem as possibilidades de uma recuperação vigorosa da economia mundial e poderão trazer fortes consequências negativas para uma boa performance do setor saúde.

 

A economia mundial e brasileira em 2022 e perspectivas para 2023

Ao longo de 2022, a economia mundial teve um crescimento menor do que o esperado e a inflação foi a maior das últimas décadas, trazendo aumentos no custo de vida e aperto creditício, com a elevação das taxas de juros na maioria dos países. A esperada recuperação pós-pandemia não ocorreu no ritmo desejado, em função dos altos custos trazidos pela injustificável guerra entre Rússia e Ucrânia e pelo surgimento da variante ômicron, que trouxe as mais elevadas taxas de infecção de toda a trajetória pandêmica ao longo dos primeiros meses de 2022, com efeitos graves na economia dos países de renda elevada e média.

Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI)[1], o crescimento econômico mundial de 6,0% em 2021 irá desacelerar-se para 3,2% em 2022 e para 2,7% em 2023, com pelo menos um terço da economia mundial em recessão. A inflação global deverá subir de 4,7% em 2021 para 8,8% em 2022, mas poderá cair para 6,5% em 2023 e para 4,1% em 2024, ainda que o FMI não tenha atualizado suas projeções com base no que ocorreu no último trimestre de 2022. As taxas de juros aumentarão de uma média de 1,8% e -0,2% nos mercados norte-americano e europeu em 2022 para algo em torno de 4,0% e 0,8% nestes mesmos mercados em 2023.

De todos os modos, serão necessárias, não apenas uma política monetária apertada, mas reformas estruturais que permitam controlar a inflação, melhorar a eficiência e a produtividade e diminuir as restrições na oferta em boa parte dos países de alta e média renda. As mudanças climáticas exigirão novos padrões de consumo de energia e a transição para uma economia verde que permita prevenir e, em alguns casos reverter, os desastres naturais e humanitários que têm ocorrido como resultado da mudança do clima e da degradação ambiental.

A China – um dos pilares do crescimento da economia global – depois de um incrível crescimento médio de sua renda per-capita de 9,7% ao ano no período 2004-2013, reduziu suas taxas de crescimento médio para 6,3% entre 2014 e 2019 – muito acima da média anual da economia mundial no mesmo período (2,1%). Em 2020, a China foi um dos poucos países com crescimento positivo de sua renda per-capita (2.1%), voltando a crescer 8,0% em 2021. Mas as projeções do FMI indicam que em 2022 e 2023 este crescimento será bem menor, estando estimado em 3,2% e 4,5%, respectivamente.

Uma retrospectiva do que ocorreu na economia mundial e no Brasil, nas últimas duas décadas, pode trazer uma perspectiva do que poderá ocorrer em 2022 e 2023. Os gráficos 1 e 2 mostram a evolução real da renda per-capita mundial e brasileira (em dólares associados a paridade do poder de compra) entre 2004 e 2021 e as perspectivas para 2022 e 2023.


 Fonte: FMI-World Economic Outlook, Outubro de 2022. Os dados originais foram calculados em dólares constantes de 2017 com paridade do poder de compra.

 

Verifica-se, no gráfico 1, que a renda per-capita da economia brasileira cresceu a uma taxa média de 3.0% entre 2004-2013, enquanto a da economia mundial cresceu apenas a 2,5% no mesmo período. Esse processo levou o Brasil a tomar a dianteira no crescimento entre muitas economias emergentes, colocando o país numa situação favorável, expressa, como vocês devem se lembrar, na capa da revista “The Economist”, edição de 12 de Novembro de 2009, que mostra o Cristo Redentor decolando (Brazil takes off). Mas os dez anos que se seguem não mantiveram essa tendência. A renda per-capita da economia mundial passou sistematicamente a crescer a taxas superiores à da economia brasileira, situação que deverá se prolongar até 2023.

O gráfico 2 mostra, em números índices, o que aconteceu (e poderá acontecer ainda) com a renda per-capita mundial e brasileira entre 2014 e 2023. Verifica-se que entre 2013 e 2019 a renda per-capita mundial cresceu 13% enquanto a renda per-capita do brasileiro sofreu uma queda de 7%. Mesmo em 2020 – o primeiro ano da pandemia – o decréscimo da renda per capita mundial foi menor do que o ocorrido no Brasil (-4,1% comparado com -4,6%, respectivamente).

No primeiro ano de recuperação da pandemia (2021) a renda per capita mundial aumentou 5,4% enquanto a renda per capita brasileira aumentou apenas 4,2%. As projeções para 2022 e 2023 indicam que a renda per capita brasileira crescerá apenas 2,2% e 0,4%, enquanto a renda per capita mundial aumentará 2,4% e 1,6% ao longo destes dois anos, respectivamente.

 

Fonte: FMI-World Economic Outlook, Outubro de 2022. Os dados originais foram calculados em dólares constantes de 2017 com paridade do poder de compra.

 

Portanto, no frigir dos ovos, se pode dizer que entre 2013 e 2023, mesmo com a pandemia, a renda per capita mundial está projetada para crescer 17,1% enquanto a renda per-capita brasileira deverá apresentar uma queda acumulada de -5,1%, ao longo deste período, com base nas projeções do FMI de outubro de 2022.

Nenhum país merece uma queda tão prolongada de sua renda per-capita, e consequentemente do padrão de vida de seu povo, em um longo período de dez anos. Mas o que ocorreu no Brasil foi o resultado de poucas opções e más escolhas eleitorais e, também, do referendo (ora incompetente, ora inescrupuloso) das autoridades em todas as esferas e níveis de governo a políticas econômicas, sociais e ambientais equivocadas. A revisão dos estatutos jurídicos sobre a condução de processos legais e a tolerância no uso de conceitos distorcidos de ética e probidade no uso dos recursos públicos acabaram detonando os orçamentos governamentais, com a redução dos instrumentos legais que poderiam corrigir os problemas existentes e prevenir que outros similares (ou até piores) venham a surgir. Este rosário de malfeitos poderá continuar a trafegar a esburacada, lenta e perigosa estrada que leva a população brasileira ao seu destino ainda incerto nos próximos anos.

 

O legado não inventariado da pandemia

Em 2022 a incidência do Covid-19 continuou a dominar o cenário dos principais problemas mundiais, apesar da clara tendência à redução do número de casos e de mortes associadas à pandemia. A dominância do Covid-19 derivou do fato de que muitos dos problemas enfrentados pelo setor saúde, ao nível mundial, continuam associados às consequências econômicas, sociais, epidemiológicas e demográficas trazidas pela pandemia no cenário global.

No final de 2022, as atenções se voltam para a China, que passa a ser vitimada por um poderoso ciclo de crescimento da pandemia decorrente de erros logísticos e organizacionais, como longos lockdowns, baixas taxas de vacinação, especialmente entre idosos, e inconsistência nas medidas regulatórias em relação ao controle social da endemia[2]. É possível que este fato, como colocado em nossa postagem anterior, venha a trazer consequências para o mundo inteiro pela geração e disseminação de novas variantes que deverão surgir em um país que poderá apresentar milhões de casos diários de Covid-19 sem possibilidades de tratamento.

Desde fins de dezembro de 2022 a China deixou de registrar novos casos de Covid-19 num momento em que a pandemia atinge taxas diárias de infecção estimadas em milhões, mas não confirmadas pelas autoridades do país. As consequências de curto prazo estão no esgotamento das vagas em hospitais, no excesso de mortalidade e na falta de capacidade dos necrotérios e cemitérios em receber e enterrar os mortos, bem como em um crescimento econômico muito baixo em relação à média histórica do país ao longo da década passada.

Mas mesmo fora da China, em outubro de 2022, surge a variante ômicron XBB.1.5, identificada inicialmente em Singapura e na Índia, mas presente em dezembro deste ano em mais de 30 países, de acordo com os registros da Organização Mundial da Saúde (OMS). Sendo a mais transmissível das variantes da ômicron, ela já representa mais de 40% dos novos casos de Covid-19 nos Estados Unidos, num momento em que o número de casos e as taxas de hospitalização está crescendo rapidamente.

Como decorrência da pandemia, a esperança de vida, ao nível mundial, se reduziu em muitos países desde 2020, embora ainda não existam dados que permitam realizar uma estimativa sólida global de todos os efeitos sobre a mortalidade trazidos pela pandemia. Estudo realizado pela Universidade de Oxford, no Reino Unido[3], estima que a redução da expectativa de vida nos dois primeiros anos da pandemia tenha sido a maior desde a segunda guerra mundial. Em 27 dos 29 países pesquisados neste estudo a redução de expectativa de vida foi uma decorrência direta ou indireta da pandemia. A redução direta ocorreu em função da própria mortalidade trazida pela Covid-19 e a indireta pelas consequências da pandemia na redução dos atendimentos médicos que levaram ao excesso de mortalidade por doenças crônicas, ao aumento de distúrbios mentais (como o consumo de drogas[4]), às sequelas de um conjunto de efeitos negativos à saúde, conhecido como “Covid-Longa”, à deterioração das condições de vida dos mais pobres e a outras consequências que precisariam ser mais bem quantificadas e estudadas.

Para exemplificar, pode-se notar que nos Estados Unidos, a expectativa de vida ao nascer, que havia alcançado 78,8 anos em 2019, caiu para 77,0 anos em 2020 e para 76,4 anos em 2021. Em 2022 ainda não existem dados fechados e, como o número de mortes por Covid-19 sofreu substancial redução, é possível que a esperança de vida tenha voltado a crescer. Mas uma redução da expectativa de vida em dois anos consecutivos naquele país, como a ocorrida entre 2019 e 2021, somente havia sido registrada na história recente no período da gripe espanhola[5].

No Brasil, estudos realizados pelo CEDEPLAR-UFMG[6]  calcularam, somente em 2020, uma redução de quase dois anos na expectativa de vida dos brasileiros como reflexo do excesso de mortalidade trazido pela Covid-19, indicando que, uma vez computados os dados de 2021 e 2022, os resultados poderão indicar uma redução ainda maior na expectativa de vida como resultado do excesso de mortalidade trazido pela pandemia.

Como já destacado na postagem anterior deste blog, o Brasil foi um dos países que apresentou uma mortalidade desproporcionalmente alta como resultado da Covid-19, em comparação com outros países, em função do comportamento negacionista de parte das autoridades públicas, do baixíssimo nível de testes para detecção de casos e dos atrasos na compra e aplicação de vacinas.

A verdade é que a pandemia do Covid-19 afetou substancialmente o modo de vida da população mundial com efeitos negativos que vão muito além da simples mortalidade e redução da expectativa de vida. Entre eles, os efeitos econômicos já mencionados nos países de renda alta e média, refletidos em excessos de gastos públicos para fazer frente às quedas acentuadas da renda per-capita, na rentabilidade das empresas e na descontinuidade no abastecimento das cadeias produtivas. Seguiram-se choques inflacionários que, como visto, ecoam até hoje, os quais serão difíceis de sanar a curto prazo dados os elevados graus de endividamento público, e os choques de oferta de produtos essenciais como energia e alimentos.

 

Tendências do Setor Saúde em 2023 no Mundo e no Brasil

Efeitos da Pandemia na Prestação de Serviços: Os efeitos da pandemia ainda trouxeram, entre 2020 e 2022, fortes desajustes na continuidade da prestação de serviços, no esgotamento físico e mental e na escassez de pessoal de saúde, na ruptura das cadeias de suprimentos, medicamentos e equipamentos. Hospitais e planos de saúde sofreram margens flutuantes ou decrescentes em seus rendimentos e tem dificuldades de encontrar um equilíbrio para atender a demanda contida por atendimentos médicos, exames e medidas de prevenção e controle durante os anos de pandemia. Parte destes problemas estarão presentes em 2023 e todos devem ter a consciência do que serão necessárias reformas na administração dos sistemas de saúde públicos e privados para enfrentá-los.  

Para exemplificar, no Brasil, entre janeiro de 2018-junho de 2019, e janeiro de 2020-junho de 2021, o número de internações do SUS se reduziu em 17,8 milhões para 16,0 milhões em grande medida, como decorrência de cirurgias eletivas canceladas ou pela ocupação dos hospitais com leitos para o Covid-19[7]. Ações de promoção e prevenção se reduziram 35% e procedimentos com finalidade diagnóstica se reduziram 13%. Procedimentos clínicos se reduziram 27% e procedimentos cirúrgicos ambulatoriais 53%. Transplantes de órgãos e tecidos apresentaram uma redução de 20%, no mesmo período.

Portanto, os períodos em que ocorreram os maiores volumes de óbitos por Covid-19 coincidem com os de maiores volumes de óbitos por outras causas, e com os menores volumes de atendimentos para causas não Covid-19, denotando claramente uma sobre mortalidade e um sub atendimento por doenças crônicas em decorrência dos problemas na utilização da rede regular do SUS durante a pandemia. A queda em ações de promoção e prevenção, as quais já apresentavam redução antes da epidemia, se intensificou durante a incidência elevada de Covid-19, agravando o quadro de doenças crônicas e o represamento dos atendimentos no SUS. Isto influenciou diretamente o crescimento de óbitos por outras causas, e trouxe dificuldades para a retomada dos atendimentos do SUS que necessitarão de investimentos para alcançar os níveis pré-pandêmicos.

Os dados completos do SUS ainda não estão disponíveis para o ano de 2022, mas provavelmente deve ter havido uma recuperação de alguns serviços com a redução das taxas de incidência pandêmica. Mas este retorno ainda é insuficiente para a retomada do nível de normalidade de atendimento às demandas populacionais relacionadas a internações e atividades ambulatoriais do SUS. Portanto, em 2023 ainda há uma enorme demanda insatisfeita com atendimentos hospitalares e ambulatoriais do SUS que deverá demandar recursos, pessoal e capacidade instalada para satisfazer as necessidades da população da maioria dos estados brasileiros.

 

Inflação em Alta e Mudanças Regulatórias nos Planos de Saúde: Com a elevação das taxas de inflação, o setor saúde deverá ser fortemente afetado pelos preços dos insumos, da força de trabalho, dos medicamentos, exames e demais serviços em 2023. Os preços dos seguros e planos de saúde poderá impactar o custo de vida levando famílias a perderem seus seguros e, dessa forma, atrasarem os cuidados de rotina e exames, afetando negativamente os resultados de saúde.

No Brasil, em particular, um tsunami de normativas, tais como redefinições nas fórmulas de reajustes dos planos individuais de saúde, mudanças no rol de procedimentos da ANS (de taxativo para exemplificativo) fim das restrições de serviços associados a terapias, aumento do número de terapias orais para o câncer e outros, deverão impactar o funcionamento das operadoras de planos de saúde.

A criação de um piso salarial para enfermagem, num momento em que os hospitais privados e os públicos estaduais e municipais se encontram limitados para o pagamento de aumentos salariais, também poderá aumentar fortemente a inflação setorial, ficando, no caso dos planos de saúde, cada vez mais difícil transferir os aumentos de custos para o valor dos prêmios de seguros, e no caso do SUS, a obtenção de recursos orçamentários para o pagamento dos aumentos salariais de enfermagem em seus hospitais próprios ou contratados.

E tudo isto acontece num ano onde os planos de saúde já acumulam prejuízos operacionais de R$5,5 bilhões no terceiro trimestre de 2022. De acordo com os dados da ANS os planos de saúde já apresentam resultados negativos em suas receitas ao longo de seis semestres consecutivos, com uma sinistralidade que já ultrapassou os 90%[8]. Mesmo assim, o número de pessoas com acesso a planos de assistência médica voltou a ultrapassar os 50,1 milhões, retomando o contingente de segurados registrado em 2014 antes da crise que levou a uma forte redução no número de beneficiários dos planos de saúde.

Depois dos prejuízos verificados em 2022, é esperado que os planos comecem a se estruturar para aumentar sua rentabilidade em 2023, mas o tsunami regulatório poderá trazer surpresas que impactarão muito o setor, obrigando-o a aumentar sua eficiência e reduzir seus custos para alcançar esses objetivos. Portanto, os resultados são ainda bastante incertos.

 

Redução das Margens de Rentabilidade:   Muitos sistemas de saúde, ao nível mundial, sofreram reduções de receitas durante e no pós-pandemia e ainda não recuperaram os níveis pré-pandêmicos. Com o aumento dos custos de suprimentos e mão de obra, 2022 pode acabar sendo um dos piores anos nas finanças dos hospitais privados ao longo das últimas décadas. A receita dos hospitais e sistemas de saúde tem sido afetada pela inadimplência dos pacientes, maiores glosas dos seguros de saúde e atrasos nos atendimentos. Um número crescente de pacientes está mudando para centros ambulatoriais em vez de hospitais na busca por procedimentos não emergenciais que lhes representem, não apenas maior comodidade, mas também menores custos.

Nos Estados Unidos, as margens operacionais médias dos hospitais e sistemas de saúde caíram 46% em setembro de 2022 em comparação com o mesmo mês do ano anterior. Essa compressão de margens pode não ser sustentável para muitos hospitais, especialmente organizações pequenas e controladas localmente. Como resultado, alguns hospitais podem sofrer processos de concentração, serem vendidos ou forçados a fechar suas portas.

No Brasil, os indicadores da Associação Nacional dos Hospitais Privados (ANAHP) mostram uma tendência à redução das margens de rentabilidade. A margem EBTIDA dos hospitais da ANAHP no período janeiro e agosto de 2022, em comparação com o mesmo período de 2021, se reduziu de 13,3% para 12,5%[9]. Associado a isso, observa-se um aumento do volume de glosas como porcentagem das receitas (de 3,6% para 4,9%) e um aumento nos prazos de recebimento das faturas hospitalares (de 68 para 75 dias), no mesmo intervalo de tempo. Se o tsunami de medidas regulatórias apertar ainda mais, as margens de rentabilidade dos planos de saúde em 2023 e outros indicadores correlatos poderão apresentar uma deterioração ainda maior.

 

Digitalização da Saúde: Com o aumento das taxas de juros, as organizações de saúde poderão ter dificuldades para fazer empréstimos destinados a modernizar sua tecnologia e adotar as transformações digitais. De acordo com pesquisa realizada pela empresa de consultoria Deloitte, cerca de 29% de dirigentes do setor saúdem disseram que a transformação digital provavelmente terá um grande impacto na estratégia de sua organização em 2023, mas 63% consideram que terá um efeito moderado. Entre os executivos de planos de saúde, no entanto, espera-se que a transformação digital acelerada tenha um “grande impacto” (43%) ou um “impacto moderado” (50%) em 2023.

No Brasil, a pandemia avançou, por questões de necessidade, o uso da telemedicina e da telessaúde de forma muito rápida, mas com as restrições de rentabilidade, crédito e inflação, dificilmente se poderá esperar investimentos de grande porte no setor em 2023. A maioria dos dirigentes, tanto no setor público como no privado, não decidiram se realizarão investimentos ou de onde sairão os recursos que necessitam para fazê-los.

 

VBHC e novos modelos de remuneração:  Já faz alguns anos que se fala em mudanças nos modelos de pagamento em saúde, tendo em vista a transição de sistemas de remuneração por serviço para remuneração por valor e resultado (Value Based Health Care ou VBHC). Mas os avanços, até o momento, têm sido muito tímidos e se limitam a poucas experiências.

A transição para novos modelos de pagamento via VBHC se anuncia como a principal prioridade entre os executivos de planos de saúde privados, mas eventuais restrições financeiras em 2023, associadas ao tsunami regulatório na saúde suplementar e a uma eventual continuidade na redução das margens de rentabilidade dos hospitais privados, poderão trazer dificuldades para que os planos de saúde, como pagadores, negociem estes processos. Eventualmente, seguros de saúde verticalizados, com suas próprias redes, terão mais graus de liberdade para negociar e implementar estes modelos. Mesmo assim, isso ocorrerá, provavelmente, de forma limitada.  Hospitais e sistemas de saúde, por outro lado, estarão mais focados em aumentar suas margens em 2023. Isso pode dificultar que os planos de saúde venham a convencer os provedores vinculados a suas redes para que aceitem novos modelos de pagamento e remuneração num ambiente de incerteza.


No SUS é difícil dizer o que poderá acontecer. No âmbito federal, poderá haver uma certa dificuldade na aceitação de modelos de pagamento baseados em resultados. As regras que deverão reger a gestão do SUS no novo governo se fundamentam em processos corporativos, baseados no assalariamento e na progressão em carreira de profissionais, com remuneração não associada a resultados. Além do mais, consideram qualquer argumentação que busque, ao fim, aumentar a eficiência na saúde uma parte do discurso neoliberal. O que vale, nesse contexto, é um pretenso discurso de proteção ao profissional de saúde, mesmo que na prática lhe paguem baixos salários e não existam incentivos para que estes evoluam e se realizem profissionalmente através do alcance de melhores resultados para seus pacientes. No entanto, como o SUS é descentralizado, deve-se confiar que a bandeira do VBHC e dos resultados no setor público venha a ser levada a sério pelos secretários estaduais e municipais de saúde, e que estes coloquem o paciente como centro e garantam a melhoria da saúde de suas populações como meta. Nesse contexto, o VBHC no SUS poderá evoluir.

[1] International Monetary Fund - IMF (2022), World Economic Outlook – October 2022”, Ed. IMF, Washington (DC), 2022.

[2] Este blog fará, em breve, uma postagem sobre o caso da Covid-19 na China com base em relatos de pessoas que vivem naquele país, apresentando informações desconhecidas para quem não vive o dia a dia da população chinesa. Para acessar a postagem anterior, use o link: https://monitordesaude.blogspot.com/2022/12/

 

[3] Schöley, et al (2022), Life expectancy changes since COVID-19, in Nature Human Behavior 2022 Dec;6(12):1649-1659. Doi: 10.1038/s41562-022-01450-3. Oct 17, 2022. Link: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/36253520/

 

[4] Somente nos Estados Unidos ocorreram 107 mil mortes por consumo de drogas em 2021 (número 50% maior do que 2019), das quais quase 40% associadas ao opioide conhecido como fentanyl. Os dados indicam que em 2022 esse número deverá ser ainda maior.

 

[5] Nos EUA a pandemia de influenza diminuiu a expectativa de vida de 54,0 para 47,6 anos num período de 6 anos (entre 1918 e 2024). Ao longo de dois anos (entre 2019 e 2021) o COVID-19 reduziu a expectativa de vida norte-americana em cerca de 78.8 para 76.4 anos. Nesse sentido, enquanto a gripe espanhola reduziu a expectativa de vida a uma taxa de 2,1% ao ano, a Covid-19, até o momento, reduziu a esperança de vida a uma taxa de 1,5% ao ano.

 

[6] Ver Castro, M.C. et al. (2021), Reduction in the 2020 Life Expectancy in Brazil after COVID-19 in Nature Medicine | VOL 27 | September 2021 | 1629–1635 | www.nature.com/naturemedicine, Link file:///C:/Users/medic/Downloads/s41591-021-01437-z%20(1).pdf

 

[7] O “represamento” do atendimento em saúde no SUS, Nota Técnica 22, 09 de novembro de 2021, MonitoraCovid-19 – ICICT / FIOCRUZ, link: https://bigdata-covid19.icict.fiocruz.br/nota_tecnica_22.pdf

 

[8] O conceito de sinistralidade pode ser dado pela divisão dos gastos assistenciais e não assistenciais com beneficiários dos planos de saúde de uma operadora pela sua receita de prêmios de seguro, multiplicados por 100.

 

[9] Ver Indicadores Hospitalares da ANAHP, outubro de 2022, link: https://www.anahp.com.br/pdf/indicadores-out22.pdf

 

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