Ano 14, Número 106,
Abril de 2020
Erno Harzheim, além de ter sido Secretário
de Atenção Primária de Saúde (SAPS) na gestão de Henrique Mandetta, tem uma
intensa carreira na área de saúde, apesar de sua juventude. Possui graduação em
Medicina pela UFRGS (1998), residência médica em Medicina de Família e
Comunidade pelo Grupo Hospitalar Conceição (2001), doutorado em Medicina
Preventiva e Saúde Pública pela Universidade de Alicante na Espanha (2004) e
pós-doutorado em Epidemiologia pela UFRGS (2006).
É professor associado do Departamento de Medicina Social da UFRGS e professor
pemanente do Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia da mesma instituição e
tem mais de uma centena de trabalhos publicados em eventos e periódicos
científicos do Brasil e do exterior em áreas como medicina de familia e comunidade,
epidemiologia, atenção primária, avaliação de serviços de saúde, telemedicina e
telessaúde.
Mas ao lado dessa rápida e brilhante carreira acadêmica e de pesquisa em
medicina, Erno tem uma grande experiência prática em temas gestão de saúde.
Coordenou, durante dez anos, o exitoso programa de Telessaúde RS-UFRGS trazendo
melhorias na qualidade do atendimento a milhares de pessoas no Estado. Foi
Secretário Municipal de Saúde de Porto Alegre de janeiro de 2017 a dezembro de
2018 e foi convidado para o Ministério da Saúde, para ser Secretário de Gestão
Estratégica e Participativa (janeiro-maio de 2019) e posteriormente Secretário
da Secretaria de Atenção Primária (SAPS) do Ministério da Saúde na gestão
Henrique Mandetta.
Nestes menos de dois anos a frente do Ministério da Saúde Erno e sua
equipe formularam um programa de reformas com a perspectiva de aumentar a
eficiência na entrega de serviços de atenção primária a saúde (APS) e
reorganizar o fluxo de atenção dentro do sistema de saúde. A crise mundial
trazida pelo Covid-19 atropelou os sistemas de saúde no Brasil e no mundo, mas
a equipe da SAPS liderada por Erno já elencava algumas medidas para reforçar o
papel da APS e dar respostas para o combate a pandemia no país, como será visto
ao longo desta entrevista exclusiva ao blog Monitor de Saúde.
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Monitor de Saúde (MS)
- A preparação para uma pandemia é um processo que está disseminado no
Regulamento Sanitário Internacional (RSI) da Organização Mundial da Saúde (OMS)
desde a década passada. Desde então muitos países têm se preparado, em maior ou
menor grau, para dar respostas a pandemias, o que é um processo distinto de
fazer funcionar um sistema de saúde em condições normais. Na sua visão, o SUS
está suficientemente preparado para enfrentar a pandemia do Covid-19?
Erno Harzheim (EH) - Nenhum sistema de
saúde estava preparado para a pandemia de COVID-19, nem o SUS. Temos um método
de gestão muito lento, burocratizado. Essa lentidão não é exclusiva da gestão
do SUS, é característica da gestão governamental brasileira em suas 3 esferas
de governo.
Uma pandemia exige agilidade, algo raro nos ambientes de gestão
nacionais. Além disso, alguns equívocos do Sistema Único de Saúde ficam ainda
mais evidentes: a dificuldade em adotar tecnologias inovadoras, a baixa
confiabilidade dos dados de estrutura, processo e resultado em saúde, a
presença de regulação normativa baseada em pactuações políticas e não em
regulação clinica baseada em necessidades em saúde, entre outros motivos.
A pandemia exige mais
do que nunca que o SUS inove em seu financiamento e em suas práticas de gestão
e assistência. Mas, ao contrário, a voz mais corrente é aquela que apenas clama
por mais recursos financeiros para o sistema de saúde. Mais recursos
financeiros que, se não forem acompanhados por inovações no método de
financiamento, de gestão e de assistência no SUS não o deixarão mais preparado
para uma nova pandemia. Vejo essa discussão sobre se o SUS está preparado ou
não para esta ou uma próxima pandemia muito superficial. A sociedade brasileira
tem dificuldade em olhar de forma profunda para seus problemas. Enquanto o modus operandi do Estado brasileiro
ainda for o patrimonialismo e o discurso público permanecer sequestrado pelo
interesse de pequenos grupos e corporações teremos muitas dificuldades em
avançar. Não basta trocar o grupo que se apropria do Estado, é preciso mudar a
forma como a sociedade, os políticos, os gestores, os servidores e os cidadãos se
relacionam com o Estado.
MS - Que papel pode
ter a APS na preparação e na resposta a uma pandemia, para que possa achatar
preventivamente a curva epidemiológica e evitar situações onde o sistema poderá
esgotar sua capacidade de resposta e atenção aos casos agudos nos picos de
infecção, como ocorreu na Itália, Espanha, França e Inglaterra nas últimas
semanas, e poderá ocorrer em breve nos Estados Unidos?
EH - A APS tem o papel
de apoiar fortemente a população na adoção de práticas preventivas, tanto
individuais, como coletivas; em garantir a assistência dos casos leves de
COVID-19, a coordenação do cuidado dos casos graves, a transição do cuidado
desses casos graves, além de manter a assistência para os demais problemas de
saúde. Tudo isso deve ser realizado no contexto do controle da pandemia de COVID-19,
isto é, gerando a menor mobilidade possível das pessoas. Para tanto, é
essencial lançar mão de estratégias de assistência remota. A Telemedicina e a Telessaúde
devem ser centrais nesta estratégia, assim como a introdução de mecanismos de
transição de cuidado, como telemonitoramento. Infelizmente, essas duas
estratégias são pouco frequentes na APS brasileira. O país inovou na década
passada em apostar em estratégias de Telessaúde, mas além de mantê-las
centralizadas no Estado, as mesmas encontraram forte oposição de corporações
que privilegiaram seus interesses privados no lugar do interesse público. Essas dificuldades em expandir, descentralizar
e integrar estratégias e ferramentas de telemedicina, telessaúde e de transição
de cuidado baseadas em tecnologia, infelizmente, nos deixaram menos preparados para enfrentar a
pandemia do que poderíamos estar.
Neste contexto, a
Secretaria de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde ainda sob gestão
do Ministro Luis Henrique Mandetta implantou e/ou desenvolveu treze passos para
o enfrentamento da pandemia de COVID-19. São eles:
1- Aumento dos repasses financeiros: com o Previne
Brasil, desde janeiro de 2020, R$200 milhões a mais por mês são repassados
parta custeio da APS aos 5.570 municípios brasileiros. Representa um incremento
de 14% no financiamento da APS.
2- TeleSUS: é um sistema de Telemedicina criado para rastrear,
diagnosticar, tratar e monitorar pacientes portadores de Síndrome Gripal e
COVID-19. Por meio do monitoramento e envio dos dados de atendimento a cada
secretaria municipal de saúde, constitui-se Sistema de vigilância de casos
novos de síndrome gripal, assim como Sistema de transição de cuidado.
3- Saúde na Hora: Em execução desde
2019, em 2020 o programa estendeu o repasse de recurso para estabelecimentos
que tenham pelo menos duas equipes de Saúde da Família. No modelo anterior, o
requisito eram três equipes, pelo menos. Com a pandemia, o programa lançou
outra modalidade de incentivo em caráter emergencial para que os municípios
mantenham as unidades de saúde funcionando em horário ampliado, de 12 a 15 horas
ininterruptas diárias, ou seja, durante todos os turnos. Os valores variam de
R$15.000,00 a R$30.000,00 mensais. A medida foi intitulada “Saúde na Hora
Emergencial contra o Coronavírus” e prevê o repasse financeiro para as unidades
com uma eSF ou eAP que realizarem consultas em horário estendido. Com essas
medidas, 6 mil unidades já podem funcionar com horário ampliado.
4- Ampliação da assistência: para reforçar as
equipes de saúde da família, foram lançados três editais para ocupar vagas do
programa Mais Médicos com 5.800 profissionais com CRM ou diploma revalidado no
Brasil e 1.700 profissionais médicos cubanos que permaneceram no Brasil após o
rompimento da cooperação internacional pelo Governo de Cuba (novembro de 2018).
5- Teleconsultorias 0800 644 6543: Como medida de suporte clínico para atuação das equipes, o Ministério da
Saúde ampliou a oferta de teleconsultorias que já existia. Por meio de serviço
de 0800, discussões de caso entre especialistas auxiliam os profissionais de APS
de todo o Brasil ao esclarecer dúvidas sobre diagnóstico e tratamento, além de apoiar
o manejo de casos suspeitos do novo coronavírus. Mais de 3.000 casos clínicos
estão sendo discutidos a cada semana.
6- TelePsico COVID-19: serviço de teleconsulta com psicólogos e psiquiatras
para atendimento de profissionais de saúde da linha de frente do combate ao
COVID-19, com potencial de atendimento de 8-10 mil profissionais, podendo ser
escalonado a maior. É parceria com Hospital de Clínicas de Porto Alegre e especialistas
internacionais. Inicia em maio de 2020.
7- Inquéritos nacionais: são 2 inquéritos. Um
de base domiciliar com sorologia para COVID-19 nas 133 regiões do IBGE, em três
fases, incluindo mais de 99 mil pessoas a fim de medir a distribuição e a
velocidade da epidemia de COVID-19 realizado pela Universidade Federal de
Pelotas – UFPel. O segundo é um estudo de coorte da parceira SAPS-IBGE aninhado
à PNAD-Contínua, fruto de um Acordo de Cooperação, com estimativa da incidência
de Síndrome Gripal e fatores associados em 200 mil pessoas, com possibilidade
de testagem sorológica.
8- Consultório Virtual da Saúde da Família (Teleconsulta
na APS): parceria SAPS-Hospital Israelita Albert Einstein, por meio do
PROADI-SUS, disponibilizará plataforma de teleconsulta para os profissionais da
ESF manterem o cuidado de seus pacientes mesmo à distância, com foco nas
condições crônicas, pré-natal e COVID-19. Os profissionais receberão
gratuitamente a certificação ICP-Brasil e poderão emitir prescrições, atestados
e solicitações de exames a distância.
9- Cuidado especial a idosos institucionalizados: em parceria com Casa
Civil, Ministério da Cidadania e Ministério da Mulher, da Família e Direitos
Humanos, a SAPS elaborou um plano assistencial de idosos moradores de
Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs) e idosos que recebem
benefícios sociais governamentais e estão cadastros do CADUNICO. Este plano
inclui medidas de prevenção, isolamento e atendimento clínico prioritário para
os idosos a fim de garantir sua saúde e impedir transmissão do coronavírus no
ambiente de moradia. Também foi definido fluxograma clínico-assistencial e
sugerido incentive para internações de idosos institucionalizados com COVID-19
para evitar transmissão interna nas ILPIs.
10- Cuidado a Populações Vulneráveis: a fim de destinar
esforços especiais à população que vive em favelas, a SAPS propôs Centros
Temporários de Atendimento Comunitário de COVID-19 nas áreas de favela com
custeio adicional. Portaria Ministerial aguarda publicação.
11- Testes sorológicos: SAPS em parceria com
SVS definiu o escopo de aplicação dos testes sorológicos para COVID-19 com foco
em indivíduos sintomáticos que fazem parte dos seguintes grupos: profissionais
de saúde, profissionais de segurança, idosos, portadores de doenças crônicas e
população economicamente ativa. São 10 milhões de testes sorológicos doados
pela Vale do Rio Doce mais um pool de bancos privados, somados a 12 milhões de
testes sorológicos de pregão eletrônico encerrado dia 22/04. Todos os testes
devem ser notificados junto eSUS-VE. Aliado à testagem estratégica com exame
PCR que iniciará no TeleSUS, com priorização de localidades com mais casos e em
grupos populacionais prioritários, pretende-se promover isolamento domiciliar mais
efetivo.
12- Empréstimos internacionais: está finalizada para
avaliação do Gabinete do Ministro uma carta consulta com três bancos de
desenvolvimento internacionais no valor de US$ 2,5 bilhões com parâmetros
financeiros muito favoráveis. O foco é o reforço na contratação de recursos
humanos, aquisição de equipamentos e insumos, aquisição de testes e
fortalecimento dos sistemas de telemedicina e telessaúde, incluindo o TeleSUS.
13- Instituição da ADAPS: no último dia 24/4/20,
o Conselho Deliberativo da ADAPS reuniu-se pela sua primeira vez. Os
conselheiros tomaram posse, aprovaram o estatuo e elegeram a diretoria
executiva. Desta forma, iniciou-se formalmente a Agencia com a tarefa de
executar o Programa Médicos pelo Brasil, que alia provimento e formação de
especialistas em Medicina de Família e Comunidade em larga escala.
MS - Como resposta a
Covid-19, o Ministério da Saúde lançou o TeleSUS. Quais são as principais
características desse sistema e como ele tem apoiado a população em geral e os
sistemas locais de saúde a identificar casos suspeitos, fazer triagem e
identificar pessoas para o distanciamento social, para os serviços de saúde ou
para urgências de internação?
EH - É um ecossistema de
Telemedicina e Telessaúde, baseado no uso intensivo de tecnologia de informação
que envolve mecanismos automatizados e uma central de atendimento personalizado
à distância criada para auxiliar o enfrentamento da COVID-19 pelo Ministério da
Saúde por meio da SAPS e do DATASUS. Oferece quatro opções de acesso (136,
chatbot na página do MS, APP e WhatsApp) para triagem de presença de sintomas
clínicos com fluxo robotizado, teleconsultas com médicos e enfermeiros com
diagnóstico, prescrição e atestado, e monitoramento de todos os casos de doença
a cada 24 ou 48 horas. Além disso, faz rastreamento pró-ativo de COVID-19 para
grupos selecionados de pessoas em maior risco (idosos e portadores doenças
crônicas). Frente a cada situação de risco identificada, as melhores
intervenções são oferecidas: orientações de prevenção; isolamento domiciliar
para os casos e contatos domiciliares, com atestado; prescrição de
medicamentos; encaminhamento ao melhor serviço de saúde e monitoramento de
todos os casos sintomáticos.
Até 27/04/2020, com
apenas 25 dias de funcionamento, o TeleSUS já havia atendido 13 milhões de
pessoas. Em breve, caso o planejamento siga em execução, as pessoas
identificadas com síndrome gripal e de grupo de risco receberão solicitação de
exame de PCR para COVID-19 por telefone para confirmar diagnóstico nos
laboratórios contratados e ampliar estratégia nacional de testagem aliada à
tecnologia da informação. A incorporação da testagem ao TeleSUS pode
possibilitar a oferta de testes em cidades ou localidades específicas, onde há
concentração de casos, assim como em grupos populacionais prioritários, como
idosos ou portadores de doenças crônicas. Possibilita ainda a geolocalização e
o tracking da trajetória de
mobilidade das pessoas que estão com síndrome gripal. Seu sistema de
rastreamento ativo permite que se identifique cidades ou localidades com maior
incidência de síndrome gripal, apoiando a definição de políticas populacionais.
As principais ações do
TeleSUS são:
- Rastreamento com busca ativa para identificar antecipadamente pessoas vulneráveis com sinais e sintomas: 60 milhões de ligações com atendimento automatizado para encontrar possíveis casos. Há possibilidade de escalar serviço e ampliar o público-alvo.
- Cuidado com a saúde dos que estão em isolamento: monitoramento diário ou de 48/48 horas para pessoas mais vulneráveis em isolamento domiciliar.
- Atendimento automatizado por telefone ou site para pessoas com sinais e sintomas do Coronavírus: acesso pelo 136 e direcionamento para atendimento automatizado que indica o que ela deve fazer. Capacidade de atendimento de cerca de 250 mil chamadas por dia.
- Atendimento por call center composto por técnicos de enfermagem, enfermeiros e médicos, com prescrição e atestado: direcionado através do 136 para as pessoas que têm casos que requerem cuidado maior. Capacidade de atendimento de 50 mil casos/dia, e emissão de receitas e atestados para isolamento domiciliar por via digital.
MS - Um dos problemas
que vários países têm enfrentado, incluindo o Brasil, é a baixa capacidade de
fazer testes para identificar pacientes positivos com Covid-19 e, com isso, ter
elementos para o planejamento da rede de assistência em casos moderados ou
graves da doença. Como a APS poderia contribuir nesse processo de logística e
distribuição de testes para aqueles que realmente precisam, a começar pelos
profissionais de saúde?
EH - A SAPS, junto a SVS
e SE, organizou um chamamento de testes sorológicos que encerrou no último dia
24/4. Houve mais de 60 propostas comerciais, muitas delas oferecendo o
quantitativo almejado de 12 milhões de testes. Resultado final deve sair nos
próximos dias.
Além disso, a SAPS
organizou a distribuição dos 10 milhões de testes sorológicos doados pela Vale
do Rio Doce e bancos privados. Desse total de 10 milhões de testes, cada município brasileiro recebe
uma quantidade baseada no critério de taxa de incidência de síndrome gripal
entre os grupos prioritários: profissionais de saúde, de segurança, idosos,
portadores de doenças crônicas e população economicamente ativa.
O objetivo dos testes
sorológicos é identificar a presença de COVID-19 entre pessoas sintomáticas
para síndrome gripal a fim de aumentar o grau de alerta em relação ao manejo
clinico, assim como possibilitar o retorno mais seguro dessas pessoas a suas
atividades habituais após os 14 dias de isolamento. Com esse quantitativo de
testes sorológicos será possível testar praticamente toda a população
sintomática para síndrome gripal. O teste PCR ficaria reservado para testar os
pacientes com Síndrome Respiratória Aguda Grave, para os centros de vigilância
da gripe e para a estratégia já citada do TeleSUS, associada a rastreamento
ativo e tracking.
MS - O TeleSUS permite fazer alguma lista de
identificação das pessoas com maior risco a possibilidade de ter acesso a
testes para saber se são positivos?
EH - Sim. Em 2019, a
SAPS intensificou a cooperação do MS com o IBGE. Em 2020, esta cooperação
bilateral trouxe um avanço inestimável à qualidade dos dados do SUS. O IBGE,
devido a pandemia do COVID-19, realizou na primeira quinzena de abril a
qualificação dos dados de cadastros individuais do SUS. Tanto na base do cadastro
de usuários do SUS, o CADSUS, como dessa para o SISAB, a base de dados da APS.
Com esta qualificação, pela primeira vez na história, temos dados completos de
todos os cidadãos brasileiros, de forma unívoca, sob o manto de diversos
sistemas de segurança e confiabilidade de acordo com a LGPD. Esta base
cadastral qualificada permite que disponibilizemos ao TeleSUS uma lista
não-identificada de telefones de pessoas de maior risco para que as mesmas
sejam rastreadas com os algoritmos clínicos e, num segundo momento, sejam
ofertados exames de PCR.
MS - O TeleSUS vai
permitir criar uma base de dados e informações que, desidentificadas, poderão
ajudar no mapeamento, análise e mitigação da pandemia do Covid-19 no Brasil?
Como seria essa base de dados e como se poderá acessá-la?
EH - Sim, o TeleSUS já
alimenta um dashboard com dados não-identificados, georreferenciados que apoiam
a tomada de decisão especifica para cada local. Em breve, esses dados serão
disponibilizados pelo DATASUS. Além disso, para cada município brasileiro,
contra um sistema de segurança do gestor municipal da saúde, a lista
identificada de sujeitos é encaminhada a fim de que as equipes de APS possam
apoiar o telemonitoramento executado pelo TeleSUS.
MS - Nestes poucos
dias de funcionamento, já existe alguma avaliação do impacto do TeleSUS na
organização da rede, identificação de casos e encaminhamento e atenção aos
portadores do Covid-19?
EH - O TeleSUS, em menos
de um mês de funcionamento, já apresenta números de grande magnitude. Na data
de 28/4, já finalizaram atendimento mais de 14 milhões de pessoas, sendo 7%
dessas identificadas com sintomas de síndrome gripal. Na mesma data, mais de
960 mil pessoas estavam em monitoramento. Entre as pessoas monitoradas
clinicamente, 68% apresentaram melhora, 25% estavam estáveis e 7% haviam
apresentado piora, sendo referenciadas para serviços de saúde para consulta
presencial.
MS - O governo
autorizou recursos adicionais para que o MS possa dar resposta a pandemia do
Covid-19. Estes recursos tem sido suficientes para que o SUS, incluindo nos
Estados e Municípios, possam atender às suas necessidades de preparação,
tratamento na área de APS? Que recursos adicionais poderiam ser necessários?
EH - O volume de
recursos tem sido suficiente, mas a execução dos mesmos ainda é lenta para a
velocidade que o momento exige. O modus
operandi do Estado brasileiro, pouco baseado em tecnologia e métodos
tecnicamente embasados, atrasa a execução dos recursos. As diversas camadas de
controles normativos e estatais tampouco
permitem maior velocidade. Se essa lentidão ainda garantisse uso adequado e
correto de recursos públicos, seria um benefício. Mas, fatos recentes da nossa
história política nos mostram que as sucessivas e sobrepostas camadas de
controle estatal não nos põem em salvaguarda de maus feitos no uso de recursos
públicos. Se a sociedade brasileira quer realmente um Estado ético, mais
efetivo e eficiente deveria se dedicar, no pós-COVID-19, a reformas política e
administrativa profundas.
Outro ponto
fundamental seria uma maior cooperação internacional. Já em 2001 eu escrevia
sobre riscos transnacionais e o enfrentamento precário a esses riscos
realizados por sistemas de saúde nacionais, hierárquicos e piramidais: a
Armadilha das Pirâmides. Se os riscos são globalizados, as respostas devem ser
globalizadas. Me sinto ainda mais pessimista quando vejo vários países
enfrentando riscos globais com políticas e estratégias puramente internas e
que, ainda por cima, reforçam o isolamento e a não-cooperação entre países. Quando
os riscos são globais, é necessário um aparato de gestão e cooperação global.
Múltiplas respostas nacionais e isoladas não enfrentarão a pandemia do
COVID-19, nem os próximos agravos e riscos globais que já existem e que
surgirão.
MS - Os sistemas de
APS nos Estados e Municípios estão preparados para atender às recomendações do
MS na implantação e seguimento do TeleSUS e outras medidas implementadas pelo
MS? Qual a sua recomendação para que os Estados de Municípios se alinhem com as
atuais diretrizes de preparação e atenção ao Covid-19 formuladas pelo
Ministério?
EH - Sim, os municípios
brasileiros possuem as condições para se alinharem a implementação do TeleSUS.
O ecossistema do TeleSUS foi elaborado utilizando a estrutura e a dinâmica
pré-existente do SUS, portanto, a mudança não será contraditória à atual
operação dos Estados e Municípios. Além disso, um dos grandes objetivos do
TeleSUS é diminuir o tamanho das filas de espera por consultas presenciais a UBS,
UPAs e serviços de Emergência. Além disso, como dito acima, a lista de pessoas
diagnosticadas e monitoradas com síndrome gripal é enviada confidencialmente às
Secretarias Municipais de Saúde a fim de alimentar as ações locais de
monitoramento e vigilância.
MS - Qual o papel da
colaboração entre os setores público e privado de saúde na organização das
redes de APS para a preparação e enfrentamento da pandemia?
EH - Essa é uma boa oportunidade
que a tristeza da pandemia nos traz. Fica evidente, agora, que a segmentação
entre público e privado no SUS é uma falácia. As pessoas e suas necessidades em
saúde não reconhecem muros e cercas. A interdependência entre o segmento
público e privado é evidente. Não se constroem sistemas de saúde com muros. É
mais do que chegada a hora de terminar com as ‘cercas’ do SUS. A reforma da APS
instituída em 2019 já caminha nessa direção. Temos que trazer tecnologia de
informação para que as informações, os serviços/insumos/equipamentos e o
financiamento sigam a trajetória clinica das pessoas. Inclusive quando elas
atravessam as ‘fronteiras’ do segmento público e privado. Se não aproveitarmos
a oportunidade para buscar um sistema de saúde realmente Único, em que os
segmentos público e privado tenham
homogeneidade de princípios e cooperem na busca por resultados em saúde
perderemos a oportunidade de evoluir como sociedade. Não estou otimista.