Ano 14,
Número 105, Abril de 2020
André Cezar Medici
Um dos grandes problemas que a maioria dos países,
com maior ou menor intensidade tem enfrentado na pandemia do Covid-19, é como
calcular a estimativa do número real de casos da enfermidade. O conhecimento
desta informação passa a ser importante, dado que, quando a transmissão passa a
ser comunitária, o não conhecimento do número real de casos impede que se
tenham estratégias adequadas para sair do distanciamento social com segurança. Boa
parte deste problema se associa a incerteza existente quanto a várias
informações.
Qual a Capacidade de transmissão e contágio do
Covid-19?
Existe uma grande incerteza sobre a real capacidade
de transmissão e contágio do Covid-19. Estudos existentes indicam que a doença
teria um período de incubação médio de 5 dias, (variando entre 2 e 14 dias[i])
até o aparecimento dos primeiros sintomas e que cada caso positivo poderia transmitir
a enfermidade para quatro pessoas adicionais, sendo este relacionado em geral
aos casos sintomáticos.
Mas estudos realizados em diversos locais revelaram que
os períodos de transmissão para os sintomáticos podem ser mais dilatados, ainda
que com taxas de transmissão menores do que nos primeiros dias de incubação. Em fevereiro de 2020, um caso com 27 dias de
incumbação foi verificado na Provincia de Hubei, cinco casos com até 19 dias e
outro com 24 dias, também na China. No entanto, a Organização Mundial da Saúde
(OMS) levanta a hipótese de que estes períodos de incubação mais longos estão
associados a reinfecção pelo virus[ii].
Para os
sintomáticos, a transmissão é considerada maior entre o primeiro e o quinto dia a partir do
momento em que os sintomas da doença se manisfestam. No entanto, estudos
recentes[iii]
mostram que a transmissão pode ser intensa em até dois dias antes da manifestação
dos primeros sintomas, o que aumentaria o risco de transmissibilidade no caso
de pre-sintomáticos. O Center for Diseases Control (CDC) dos Estados Unidos
considera que o início e a duração da transmissão do Covid-19 ainda não são
conhecidos[iv].
Em geral os sintomáticos tem acesso a testes ao
buscar os serviços de saúde e, com isso, passam a ter acesso ao tratamento. Em
locais onde há políticas de distanciamento social, estes tenderiam, dessa
forma, a manter-se isolados em instituições de saúde ou em casa, minimizando os
riscos de contágio.
Aqueles que são assintomáticos mas são testados
positivamente também tenderiam a aderir ao distanciamento social, mas os
assintomáticos não testados poderiam não cumprir as regras de distanciamento
social. Estudos mostram que a transmissão da doença entre assintomáticos (ou
pré-sintomáticos – aqueles que ainda não desenvolveram os sintomas da doença)
existe, mas não se sabe ainda quanto ela representaria em termos do potencial
de transmissão do Covid-19. Estudos preliminares realizados na China indicam
que os assintomáticos ou pré-sintomáticos representaram 10% da transmissão de casos[v],
mas não é claro se esta informação é suficiente robusta para indicar o papel
que os assintomáticos ou pré-sintomáticos representam na transmissão do Covid-19.
Estudos recentes realizados em asilos na California (Estados Unidos) mostram
que casos assintomáticos, pelo fato de desenvolverem rapidamente uma grande
carga viral nas vias respiratórias superiores (nariz e garganta) ao se tornarem
pré-sintomáticos, tem um peso maior na transmissão de casos do Covid-19 do que
o observado inicialmente na China[vi].
Quantos são os assintomáticos ou
pré-sintomáticos?
A Organização Mundial da Saúde (OMS), em sua
seção de perguntas e respostas sugere que 80% dos casos de Covid-19 sejam leves
ou assintomáticos. Ela usa como referência estudos realizados na China – primeiro
país onde o Covid-19 se manifestou como epidemia. No entanto, uma pessoa
testada como positiva mas assintomática, poderá tornar-se sintomática se o
teste for realizado dentro do período de incubação da Covid-19. Portanto, a
categoria assintomática pode ser uma categoria em transição. Se somente uma em
cada cinco pessoas fossem assintomáticas e os assintomáticos não transmitissem
a Covid-19, não haveria razão para tanta preocupação com a necessidade de
distanciamento social. Mas a realidade parece não ser essa. Os assintomáticos
positivos podem se transformar em sintomáticos e mesmo não se tornando sintomáticos,
nada garante que não estejam transmitindo a doença, como vimos na seção
anterior. Vários situações mostram que a relação em 4 assintomáticos para cada
sintomático pode ser questionada, como vamos verificar a seguir.
Estudo realizado entre os passageiros testados
positivos no navio de cruzeiro Diamond Princess, Yokohama no Japão revelaram
que 52% eram assintomáticos[vii].
Outro estudo publicado em 23 de março de
2020 por Michael Day[viii]
analisa o caso da cidade de Vo´Euganio (50 milhas de Veneza), onde toda a
população foi testada para o Covid-19 através de testes de RNA, encontrando
entre 50% a 75% dos que testaram positivo considerados assintomáticos segundo
distintos grupos etários. Análises dos testes realizados em população de
voluntários de Covid-19 na Islândia[ix]
- um dos países que mais testaram em massa a população - revelaram que a
proporção de positivos assintomáticos estaria em torno de 50% do total de casos. Entre os japoneses evacuados de Wuham durante
o inicio da pandemia, análises revelaram que menos da metade dos casos foram
considerados assintomáticos[x].
Entre os casos positivos encontrados entre residentes do asilo de Idosos em
King County Washington State, EUA, a proporção de assintomáticos foi de 57%[xi].
Muitos outros estudos estão mostrando que as proporções de casos assintomáticos
podem ser menores que os considerados pela OMS.
Se de fato existe um número menor de positivos assintomáticos,
isso poderia trazer maior segurança quanto aos números reais da contaminação e
mostrar caminhos mais sólidos para sair das situações de distanciamento social.
Mas para isso seriam necessários mais testes em uma amostra aleatória representativa
da população para garantir qual a porcentagem que realmente seria positiva e
permitir, ao lado do tratamento e isolamento dos positivos sintomáticos, manter
os cuidados necessários para que os positivos assintomáticos deixassem de
contaminar a população sem contacto com o virus, através de alguma forma de
distanciamento social.
Qual a real magnitude do número de casos de
Covid-19?
O virus do Covid-19 se espalhou pelo mundo em
questão de meses e os sistemas de saúde tem tido grande dificuldade para
monitorar e reportar os casos existentes. Dada a falta de testes em massa para
identificar positivos ao longo do tempo, mapear suas redes de contacto e calcular
quanto eles representam da população, a estimativa do número de infectados tem
sido difícil de se realizar. Considerando que o número de assintomáticos pode
ser muito grande e que os casos graves que levam a mortalidade podem
representar apenas a ponta do iceberg, o
número real de positivos que representa o denominador das taxas de letalidade
associadas ao virus está provavelmente subenumerado na maioria dos países cujo
os sistemas de saúde são capazes de atender aos casos graves sem sobreocupação
do número de leitos e respiradores.
Mas nos países onde os sistemas de saúde não
estão atendendo adequadamente aos casos graves, existe uma grande probabilidade
de mortes não identificadas como Covid-19, e nestes casos, o numerador das
taxas de letalidade também pode estar subestimado. Como não se tem uma idéia
clara tanto do comportamento do numerador como do denominador das taxas de letalidade,
várias das estatísticas associadas ao Covid-19 (número de positivos, número de
mortes, etc.) são imprecisas e, portanto, ter uma boa estimativa de qual a
porcentagem da população que contraiu o virus é bastante improvável.
Além do mais, não se sabe qual tem sido a
eficácia das medidas de distanciamento social para produzir o achatamento da
curva, embora se tenha uma visão geral de que em muitas partes do mundo elas
tem sido eficazes. O grande dilema da maioria
dos países do mundo, interessados em reduzir os processos de distanciamento
social que podem retardar a retomada do crescimento econômico e evitar níveis
elevados de pobreza a curto prazo, é saber com precisão o número esperado de
casos que necessitarão de tratamento, como isolar os casos positivos ainda
remanescentes e como incluir os negativos em atividades econômicas sem riscos
para um eventual contágio e a aceleração de uma segunda onda da pandemia.
Alguns estudos tem buscado metodologias para
corrigir o número de casos reportados e óbitos relacionados ao Covid-19 e com
isso ter estimativas mais próximas da realidade sobre o número de infectados.
Um estudo recente[xii]
buscou utilizar como parâmetro os dados da Coréia do Sul, considerado um país com
cobertura quase ótima de testes. Estes parâmetros foram utilizados para
corrigir as mortes e hospitalizações esperadas em alguns países, na data de 28
de março de 2020.
Os países cujo o número de casos seriam reestimados
ajustariam o número de casos positivos de acordo com parâmetros da Coréia do
Sul, a partir do cálculo de um fator de vulnerabilidade que leva em
consideração a estrutura etária da população, dado que a mortalidade é
proporcionalmente maior em países com estrutura etária mais elevada, e de um
fator de correção da estimativa, considerando a representatividade e extenção dos testes e ametodologia
de correção utilizada na Coréia do Sul. Os resultados para 7 países, tendo como
base os casos reportados em 28 de março de 2020, aparecem na tabela abaixo.
Covid-19: Número de Casos Reportados e
Ajustados em 28 de março de 2020 em 7 países, com base em modelagem tendo como
parâmetro os resultados da Coréia do Sul
Países
|
Casos Reportados em 28-03-2020
|
Casos Ajustados para 28-03-2020
|
Multiplicador de casos reportados
|
China
|
82198
|
325452
|
3,96
|
França
|
45170
|
676839
|
14,89
|
Itália
|
101739
|
965113
|
9,49
|
Espanha
|
87956
|
1421505
|
16,16
|
Estados Unidos
|
162807
|
1417635
|
8,71
|
Alemanha
|
66885
|
222068
|
3,32
|
Reino Unido
|
22453
|
316556
|
14,10
|
Fonte: Kathleen M. Jagodnik, Forest Ray, Federico M. Giorgi and
Alexander Lachmann. Correcting under-reported COVID-19 case numbers -
estimating the true scale of the pandemic.
Os dados mostram que o número de casos ajustados
pode ser de 3 a 16 vezes maior do que o número de casos reportados, dependendo
de como as variáveis que determinam a estrutura etária e os fatores de correção
da estimativa se comportaram. Atualmente, quase um mês depois dos dados
apresentados nesse estudo, o número de casos reportados é muito maior, mas não
seria apropiado utilizar o mesmo multiplicador para encontrar o número de casos
ajustados atual, dado que os valores relacionados às variáveis que compõe os
fatores de correção da estimativa podem também ter se modificado ao longo do
tempo. Neste caso, os autores deveriam revisitar suas estimativas e refazer os
cálculos, se possível, considerando também um número maior de países. Afinal,
todos os brasileiros gostariam de saber, diante da precariedade das
estimativas, quais seriam os fatores de correção e o multiplicador de casos reportados do país.
Estudos com propósitos similares, baseados em
amostragem populacional via testes, foram realizados no Brasil na Universidade Federal
de Pelotas (UFPel), no Estado do Rio Grande do Sul[xiii].
A testagem ocorreu entre 11 e 13 de abril de 2020. De acordo com o orgão de
imprensa desta Universidade, o teste revela as pessoas que possuem os
anticorpos para o Covid-19 e os dados se referem a duas semanas atrás, tendo em
vista que as pessoas contaminadas podem levar até 14 dias para desenvolver os
anticorpos. Neste sentido, o número de casos confirmados no dia 1º de abril na
área pesquisada era de 384, mas o resultado da pesquisa mostra que o contágio foi
de 5650 pessoas (um número 14.7 vezes maior) indicando que cerca de 0.05% da
população do Estado poderia estar contaminada por Covid-19 ao início do mês de
abril de 2020.
Outros estudos[xiv]
levantaram a hipótese de que em vários
países, o número de casos confirmados subestimou as taxas reais de infecção no
início da pandemia, por um fator que pode varia de 50 a 100 vezes, como resultado
do rápido crescimento do número de casos vis-a-vis atrasos relacionados ao
início dos sintomas, falta de testes e atrasos na notificação de casos. Isso
sem considerar outros fatores, como as elevadas taxas de falsos negativos relacionadas
a testes previamente realizados.
Conclusão
Os países que iniciaram intervenções para
conter a pandemia do Covid-19 utilizaram o número reportado de casos como principal
determinante no nível de ameaça percebida. O número de casos confirmados foi o
valor de face utilizado para a tomada de decisão dos governos. Este número, além
de sub-enumerado, ainda teve que subir a um nível muito alto para sensibilizar
as autoridades a tomar decisões para conter a pandemia e para que a população se
tornasse disposta a aderir as restrições trazidas pelo distanciamento social. Se
o número de casos estava largamente sub-enumerado, especialmente ao início da
pandemia, as taxas de expansão do número de infectados parecem ter sido muito
maiores do que realmente foram.
O aumento da capacidade de testagem de casos
pode ser uma das formas de corrigir os rumos da epidemia e ter intervenções
mais precisas fazendo com que o distanciamento social ampliado possa ser substituido
por um distanciamento social seletivo, mas de alta precisão. A testagem tem que
ser ampla, ou seja, incluir de forma aleatória o maior número de pessoas
possível sem se limitar a casos de pessoas que, por sua natureza, já tem uma
maior probabilidade de estar infectadas e evitar atrasos no resultado dos testes.
Análises realizadas no caso da California, relacionada a atrasos de 10 dias para
obter os resultados de testes, além de protocolos rígidos restringindo os
testes àqueles com sintomas graves, podem ter resultado em uma subnotificação
de casos de até 15 vezes segundo alguns dos estudos previamente mencionados
nesta postagem.
De todos os modos, é importante ressaltar que
nenhuma das estimativas até agora realizadas indicam que o total de pessoas
contaminadas chega a percentuais de população infectada muito altos. Casos extremos,
como os da Itália e Espanha, onde as curvas de contaminação já estão
descendentes, indicam percentuais corrigidos no número de casos que
eventualmente não ultrapassariam os cinco por cento de suas populações. Com
percentuais tão baixos, a eminência de uma segunda onda da doença bate em
nossas portas e todo cuidado é pouco ao passar de medidas de distanciamento
social amplo para distanciamento social seletivo. Sem a existência de uma
vacina e de tratamentos eficazes, cuidados preventivos, protocolos de
distanciamento e de isolamento tem que ser seguidos à risca durante um processo
de flexibilização para que os ambientes de trabalho, logradores públicos e
estabelecimentos comerciais e de serviços não sejam os locais de confirmação do
temido presságio de uma segunda onda da pandemia.
Notas
[i] De acordo com o Center for
Diseases Control (CDC). Ver https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/hcp/faq.html#Transmission.
Outros estudos desenvolvidos pela University of Massachussets Amherst (https://www.sciencedaily.com/releases/2020/03/200317175438.htm)
demonstraram que 97.5% dos casos de pessoas que desenvolvem sintomas de Covid-19
o fazem entre o 11º e 12º dia de contágio.
[iii] Xi
He et al, Temporal dynamics in viral shedding and transmissibility of
COVID-19, in Nature Medicine (brief communication), publicado em 15 de
abril de 2020 (link https://www.nature.com/articles/s41591-020-0869-5).
[vi]Monica
Gandhi, M.D., M.P.H., Deborah S. Yokoe, M.D., M.P.H., and Diane V. Havlir, M.D.,
Asymptomatic Transmission, the Achilles’ Heel of Current Strategies to
Control Covid-19, New England Journal of Medicine, April 24, 2020, DOI:
10.1056/NEJMe2009758.
[viii] BMJ 2020; 368 doi: https://doi.org/10.1136/bmj.m1165
[xii]
Kathleen M. Jagodnik, Forest Ray, Federico M. Giorgi and Alexander Lachmann. Correcting
under-reported COVID-19 case numbers - estimating the true scale of the pandemic.
Este artigo é um
pre-print, publicado em 18 de março de 2020. Link - https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.03.14.20036178v2
[xiii] Ver link http://www.epidemio-ufpel.org.br/site/content/sala_imprensa/noticia_detalhe.php?noticia=3099
[xiv] Peter
Richterich, Severe underestimation of COVID-19 case numbers: effect of
epidemic growth rate and test restrictions. Este artigo também é um
prerpint postado em 17-04-2020. Link: https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.04.13.20064220v1.full.pdf
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