domingo, abril 25, 2010

O que é mais importante em saúde: a igualdade ou a eqüidade?

Ano 5, No. 12, Abril de 2010


André Medici



Introdução



Amartya Kumar Sen, Prêmio Nóbel de economia em 1998, tem uma notável contribuição aos temas associados a luta pela eqüidade, geração de capital humano, capital social, escolhas públicas e liberdade econômica. Uma das contribuições de Sen que mais me marcou foi a diferenciação que ele faz entre os conceitos de igualdade e de eqüidade. Para ele, igualdade é um valor moral, enquanto que eqüidade é uma questão de justiça. Em suas palavras, a igualdade enquanto idéia abstrata não tem força, mas a eqüidade é uma expressão de justiça social, a qual se destina a corrigir desigualdades que podem ser evitadas na distribuição das capacidades básicas dos indivíduos, que são de responsabilidade social (ou seja de todos).

Quando tomei contacto pela primeira vez com as contribuições econômicas e filosóficas de Amartya Sen, no início dos anos noventa, olhei para traz um pouco envergonhado com a nossa bem intencionada Constituição de 1988, que em seu artigo 196, institui o nosso Sistema Único de Saúde (SUS) com acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde. A Constituição arremata, em seu artigo 198, que o SUS seria financiado totalmente através de recursos públicos. O termo eqüidade só aparece em toda a Constituição de 1988 uma vez, no artigo 195, quando se refere a origem dos recursos da Seguridade Social, mas nenhuma menção se faz à eqüidade na entrega de serviços do SUS.

Comecei, desde então, a expreitar a evolução do SUS para ver se ele continuaria patinando em idéias abstratas e adiando a busca pela justiça social. Felizmente, nos anos noventa, vários processos contribuiram para tornar efetiva a implantação do SUS. Os programas de agentes comunitários de saúde (PACS) e de saúde da família (PSF), a Norma Operacional Básica (NOB) de 1996 que cria o Piso de Atenção Básica e define um conjunto de ações básicas de saúde, entre outras importantes medidas, trouxeram a esperança de que a eqüidade estava a caminho e poderia ser um dia alcançada. Todas essas ações, ainda que buscassem a igualdade, ao serem de acesso público gratuito e universal, atendiam mais diretamente às necessidades dos mais pobres, ou seja,daqueles que não tinham emprego formal, recursos econômicos e viviam em áreas remotas e inacessíveis. Ao assim fazer, elas também promoviam a eqüidade.

Entre 1994 e 2002, as coberturas de programas como o PACS e o PSF se expandiram a taxas anuais de 25% e 73% respectivamente. Estes programas aumentaram sua cobertura de 10% para 53% e de quase nada para 34% da população brasileira, respectivamente. Neste periodo, a taxa de mortalidade infantil caiu de 34 para 19 por mil nascidos vivos. Definitivamente havia a certeza de que o país estava a passos firmes no caminho da equidade e que antes de 2010, com esse rítmo, todos os pobres estariam cobertos pelos programas de atenção básica. Tudo isso ocorria em meio a um crescimento econômico não muito intenso, em função da situação desfavorável da América Latina na economia mundial.

Entre 2003 e 2008, a economia internacional melhorou muito e a do Brasil também. Nossas taxas de crescimento aumentaram e a estabilização econômica iniciada na segunda metade da década de noventa consolidou as bases para a retomada do desenvolvimento econômico e social. No entanto, as esperanças de que todos os pobres estivessem cobertos pelo PACS e pelo PSF até 2010 acabou não se consubstanciando. Segundo dados do DATASUS, entre 2002 e 2008 a cobertura nacional do PACS passou de 53% para 61% e a do PSF de 33% para 49%. As taxas de mortalidade infantil que se reduziram ao rítmo acelerado de 8% ao ano entre 1994 e 2002 continuaram a cair no período 2002 e 2006, só que a um rítmo mais lento (5% ao ano), alcançando os 16 por mil nascidos vivos em 2006.

Brasil: Um longo caminho a percorrer para alcançar a eqüidade em saúde

De acordo com os dados da PNAD 2008, cerca de 48% da população brasileira estava cadastrada no PSF. Considerando que 26% da população estava coberta por planos privados de saúde, se pode dizer que 74% da população tinha acesso à atenção básica estruturada e 26% necessitava de cobertura. Portanto, o limite pelo qual deveria alcançar a cobertura nacional do PSF era de 74%, dado que os demais 26% estariam cobertos pela atenção básica dos planos de saúde . No entanto estes 26% sem cobertura estavam inseridos, em sua maioria, nos segmentos mais pobres da população

A proporção de cobertura do PSF variava de acordo com características regionais e de renda. Era maior em regiões onde havia um maior número de pobres e nos domicílios de maior renda. No Nordeste, 65% dos domicilios estavam cadastrados pelo Programa, enquanto que no Sudeste a proporção era de 36%.

O PSF é a melhor forma de cobertura de atenção básica à saúde que a população brasileira desprovida de recursos dispõe. Sua cobertura tem sido sempre progressiva, buscando dar um maior acesso às regiões onde vivem as famílias mais pobres e contribuindo, portanto, para aumentar a eqüidade do SUS. No entanto, nem todos os pobres tem cobertura do PSF. Os dados da PNAD 2008 revelam que nos domicílios sem rendimento ou com renda inferior a um quarto de salário mímimo mensal per-capita a cobertura do PSF era de 64%, ou seja, mas de um terço do segmento mais pobre do povo brasileiro ainda não tinha acesso ao PSF em 2008.

As ações de saúde básica, para aqueles que podem pagar, são oferecidas pelo sistema de saúde suplementar, de forma voluntária, através de planos privados de saúde. Da mesma forma como ocorre com o PSF, a cobertura de Planos de Saúde se diferencia regionalmente e por nível de renda. A maior cobertura se verifica no Sudeste, onde 36% da população estava coberta por Planos de saúde, e a mais baixa no Norderte onde o percentual de cobertura era de 13%. O mesmo acontece por nível de renda, onde a proporção varia entre 2% nos grupos com renda domiciliar percapita inferior a um quarto de salário mínimo e 83% nos grupos com renda domiciliar per-capita superior a 5 salários mínimos. No entanto, nos estratos de renda mais alta, a cobertura do PSF se complementa com a cobertura de Planos Privados de Saúde (ver gráfico 1).

Para exemplificar, 83% dos domicílios com renda per-capita mensal superior a 5 salários mínimos estavam cobertos por planos de saúde e 31% estavam cobertos pelo PSF. Mesmo supondo que aqueles que tinham planos de saúde suplementar não usavam o PSF, nos grupos de renda domiciliar per-capita superior a 5 salários mínimos, os domicilios registrados nos dois programas chegava a 114%, indicando que todos neste grupo tinham algum tipo de atenção básica e que pelo menos 14% estavam registrados simultaneamente em Planos de Saúde e no PSF. No entanto, nos domicílios sem rendimento e com renda inferior a um quarto de salário mímino per-capita mensal, a cobertura de planos de saúde somada a do PSF foi de apenas 66,5%, indicando que pelo menos um terço dos residentes nos domicilios mais pobres não tinham nenhuma forma de cadastramento para a cobertura de saúde básica.

O gráfico 1 mostra que, em que pese a progressividade do PSF em relação à renda, ele não conseguiu até 2008 reverter a regressividade total do acesso aos serviços de saúde básica ou, em outras palavras, compensar a distribuição regressiva dos planos privados de saúde os quais se associam, em maior grau, ao acesso ao mercado formal de trabalho ou a capacidade de pagar por planos individuais, para aqueles que não tem cobertura de planos de saúde pela empresa.





Dado que o estado de saúde é, entre outros fatores, resultado do acesso aos serviços de saúde básica que são capazes de promover, previnir, monitorar e curar problemas básicos e doenças crônicas, se pode dizer que a percepção do estado de saúde da população é diretamente associada ao fato de ela ter ou não acesso aos serviços básicos de saúde. Os dados da PNAD 2008 mostram que 24% das pessoas que viviam em domicilios com renda per-capita mensal inferior a um quarto de salário mínimo não se consideravam em bom estado de saúde, percentual que era de apenas 12% nos domicílios com renda mensal superior a cinco salários mínimos. Mas mesmo sofrendo por ter um estado de saúde pior, os mais pobres utilizam menos os serviços básicos de saúde que os mais ricos. A proporção de pessoas com renda domiciliar per-capita inferior a um quarto de salário mínimo que não realizou consultas médicas em 2008 foi de 42%, comparado a um percentual de 18% entre as pessoas com renda domiciliar per-capita mensal superior a 5 salários mínimos.

A verdade é que vários fatores contribuem para que os mais pobres não tenham acesso ao PSF e aos serviços médicos por ele propiciados. Entre estes fatores estão as dificuldades de acesso aos serviços de saúde nas regiões mais remotas. O sanitarista Carlos Gentile de Melo mencionava nos anos setenta, como resultado de seus estudos, que a distribuição dos médicos é fortemente correlacionada com a distribuição de agências bancárias e fracamente correlacionada com a distribuição dos pobres e das necessidades de saúde. O fato positivo é que dos anos setenta até hoje, aumentou o número de localidades com agências bancárias, mas estas continuam ainda não chegando às áreas aonde vivem os mais pobres. Muitos municípios brasileiros ainda não tem médico e os postos de saúde estão fechados por falta de pessoal clínico. Existem municípios que chegam a oferecer salários mensais de R$10 mil a R$20 mil para atrair médicos, mas o esforço é em vão. Muitos deles não tem receita fiscal para sustentar estes salários por muito tempo nem condições que permitam ao médico resistir ao isolamento social de áreas sem internet e mutas vezes sem eletricidade.

Mas existe ainda uma outra verdade. Ao invés de financiar os programas de saúde da família para aqueles que tem cobertura de planos de saúde, seria melhor direcioná-los para a cobertura dos mais pobres e que dependem exclusivamente do SUS. Aos planos de saúde se deveria cobrar a oferta adequada de atenção básica aos seus segurados e instituições como a Agência Nacional de Saúde Suplmentar (ANS) estão aí para cumprir este papel. Caso contrário, o SUS será sempre um colchão amortecedor das ineficiências da saúde suplementar e esta continuará faturando alto sem prestar uma boa qualidade de serviços aos seus assegurados.

Este processo permitiria utilizar os recursos que hoje sobram nas áreas onde vivem os mais ricos para serem aplicados na atenção básica aos mais pobres que dependem exclusivamente do SUS, permitindo que estes melhorem sua saúde e realizem mais consultas médicas. Quem sabe, ao assim fazer, a próxima PNAD não mostrará mais inequidades tão marcantes na oferta dos serviços básicos de saúde e nas condições de saúde entre ricos e pobres.

Igualdade e Eqüidade em Saúde

Ao propor um acesso igualitário de saúde a todos os brasileiros, o sistema de saúde tende a não estar em sintonia com os preceitos de eqüidade ou da justiça social proposta por Amartya Sen. Existem vários fatores com que fazem com que a igualdade seja um conceito abstrato.

Para começar, existem diferenças genéticas entre os indivíduos que fazem com que eles tenham estados de saúde diferentes e necessidades diferenciadas de acesso aos serviços. Por outro lado, a história de vida individual, o comportamento de cada um e os fatores sociais, culturais e ambientais, expõe os indivíduos a distintos naipes de risco que influenciam no seu estado de saúde e, portanto, em suas necessidades de saúde. Por mais esforço que se faça, a chance de que se tenha igual saúde e portanto que seja necessário acesso igualitário de saúde é quase nula.

A saúde, para os indivíduos é um estoque - a soma seu patrimônio genético e de sua história de vida - gerando diferentes necessidades de saúde. Mas sob a ótica dos serviços, a saúde é um fluxo. Indivíduos com o mesmo perfil sócio econômico deveriam ser atendidos igualmente, como define o conceito de eqüidade horizontal, mas indivíduos com diferentes perfis sócio-econômicos devem ter acesso diferencial dado que os mais pobres, como define o conceito de eqüidade vertical, necessitariam mais. Assim o financiamento público à saúde seria distribuido, a cada um, segundo suas necessidades e de cada um segundo suas possibilidades. Esta frase, embora proferida por Karl Marx, é aceita por todas as formulações teóricas relacionadas ao atendimento de necessidades essenciais.

É este também o conceito sob o qual economistas liberais como Milton Friedman formularam a hipótese do imposto de renda negativo que é a base dos programas de transferência de renda como o Bolsa Família. Assim, como o mérito de receber uma transferência monetária do governo deve estar associado à carência familiar em ter acesso a um mínimo existencial, também em saúde o mérito de receber benefícios de um programa de saúde da família deve estar associado ao fato de que esta família não está coberta por outros programas como aqueles ofertados pelos Planos de Saúde. O Estado só promove a eqüidade quando trata igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.

Para Amartya Sen, a justiça distributiva é o princípio que se utiliza para separar as desigualdades das iniqüidades. As iniqüidades em saúde são as diferenças que não somente são desnecessárias e evitáveis, tais como aquelas entre os pobres que tem e os que não tem acesso ao PSF, mas também as que se consideram injustas, tais como aquelas que permitem que uma pessoa que dispõe de um plano de saúde possa ter também o acesso gratuito ao PSF, enquanto outras que precisam e mereceriam estar cobertas pelo PSF não estão.

A eqüidade em saúde supõe, idealmente, que todos tenham uma oportunidade justa para alcançar seu potencial de saúde e que ninguém esteja impossibilitado de alcançar este potencial. Nos últimos anos a expansão dos programas de atenção básica, baseada nos princípios de igualdade, não foi suficiente para alcançar todos os pobres. Nos próximos anos, é necessário que os recursos disponíveis pelo SUS, que ainda são poucos, não sejam utilizados para duplicar coberturas ou prover níveis de atenção que não correspondam às necessidades. Só assim é possível alcançar maior eqüidade na cobertura destes programas.

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Nota

(i) Na verdade, a cobertura de atenção básica do PSF é teoricamente melhor estruturada que a dos planos de saúde, oferendo uma maior gama de serviços de promoção e prevenção. Mas na prática, o fato de ser registrado no PSF não significa que a população esteja de fato coberta e muitas coberturas são apenas nominais. Portanto, muitos avanços para estruturar melhor a atenção básica deveriam ser feitos no país. No PSF, buscando garantir a qualidade e a verificação de um conjunto mínimo de serviços e nos planos de saúde, buscando aumentar a oferta de serviços de promoção e prevenção, além do agendamento sistemático de exames para populações em risco.

quinta-feira, abril 15, 2010

A Complexidade da Entrega de Serviços

Ano 5, No. 11, Abril 2010


Estimados amigos,

O Blog Monitor de Saúde é aberto a participação de convidados que comunguem com idéias que possam melhorar a cobertura, qualidade, eficiência e equidade dos sistemas de saúde. Desta vez convidamos o Dr. Olimpio Bitar para fazer uma exposição de sua experiência como um dos principais assessores da mais complexa Secretaria de Saúde do Brasil - A Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo.

O Professor e Doutor Olimpio Bittar tem dado aulas nas área de gestão e políticas de saúde ha muito tempo. Sendo médico especialista em administração de serviços e políticas de saúde, tem trabalhado intensamente nos últimos anos como assessor para assuntos relacionados a hospitais de ensino da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Convido nossos amigos leitores a conhecer as idéias sintéticas e objetivas que emergem destes muitos anos de experiência. Com vocês, as palavras de Olimpio Bittar.




Produzir saúde: tarefa difícil



Olímpio J. Nogueira V. Bittar



A discussão atual no setor público de saúde contrapondo a insuficiência do financiamento versus a ineficiência da gestão como pólos irreconciliáveis é provável resquício da confusão ideológica, feita no passado, em que a utilização de técnicas de gestão em busca da eficiência era entendida como a exploração do trabalho pelo capital.

Entretanto, não é possível discutir saúde pública sem transcender dialeticamente esta polarização, pois a produção de saúde precisa tanto de financiamento suficiente como de eficiência de gestão, se quiser superar as dificuldades presentes no Brasil.
Conceitos como “complicado”, “complexo”, “alto custo” e “alto risco” traduzem as dificuldades em produzir saúde. Baseado na Tabela Unificada do Sistema Único de Saúde (SUS) é possível produzir 4.233 procedimentos, em ambulatório ou internação, sem considerar processos de infra-estrutura. Idealmente estes procedimentos exigem métodos adequados de medição da qualidade, produtividade e custos de produção.
Sérios problemas derivam da rapidez do avanço tecnológico: a anamnese inúmeras vezes não devidamente utilizada, priorizando-se os exames complementares de custo elevado; o livre mercado, especialmente dos insumos e bens técnicos de saúde, pressionando fortemente para o uso desnecessário de alta e custosa tecnologia; a atenção básica negligenciada, impedindo avanços de prevenção, promoção e recuperação da saúde.
A preferência dos pacientes pela utilização de hospitais de ensino ou grandes hospitais, certos da resolubilidade destas unidades, em detrimento das Unidades Básicas de Saúde, deve ser revertida favorecendo a redução de gastos para o sistema e principalmente a qualidade de saúde e de vida dos pacientes.

Sem atentar para as transições demográficas, epidemiológicas e tecnológicas, o mercado de saúde anda na contramão. Não é prerrogativa do estatal (equivocadamente usado como sinônimo de público) ou do privado a existência de unidades ociosas, onde inexiste a economia de escala. A falta de formação de redes com protocolos de referência e contra-referência acarretam problemas não só de dispersão de recursos como de má qualidade do atendimento. Somente a boa regulação no estatal e no privado prevenirá o absenteísmo às consultas e a formação de filas, entre outros problemas.

A quantidade exagerada de escolas médicas (181), algumas de qualidade duvidosa, a baixa remuneração dos profissionais, a escassez de algumas categorias profissionais, o número de vagas de residência reduzido em relação ao número de formandos, a tendência de boa parte dos médicos em se profissionalizarem como plantonistas - múltiplos empregos geram freqüentemente baixo comprometimento, custos e desperdícios ao sistema – são problemas adicionais.

A valorização dos tratamentos ambulatoriais e a assistência domiciliar em detrimento à internação devem ser incentivadas ainda durante a graduação e especialização, como ocorrem em outros sistemas. Indicações de procedimentos desnecessários, atos sem o devido cuidado, são causas de iatrogenia, com custos para o sistema, como acontece nas internações de pacientes terminais, com medidas milagrosas e custosas.

A pesquisa e o desenvolvimento tecnológico intensos, agressivos e, habitualmente, caros, desconsiderando informações demográficas, geográficas e epidemiológicas influem na oferta, na demanda, na resolubilidade, nas perspectivas de longo prazo, na utilização e concentração de equipamentos. É fundamental a avaliação criteriosa com base científica, observando efetividade, eficácia e eficiência, e sua aplicação humanitária, entre outros atributos, e nem sempre o sistema está preparado para isto, incorrendo em custos não previstos. Negociações entre profissionais, gestores e industriais nem sempre são fáceis.

A coexistência dos setores estatal e privado, a existência harmoniosa do interesse público (social, coletivo) e do interesse particular (individualizado) é uma experiência importante num país onde a racionalização de recursos para aplicação em saúde é uma das maneiras de prestar assistência a uma população próxima dos duzentos milhões de habitantes. A configuração e a institucionalização de dois subsistemas, um estatal e outro particular, não deveriam ser isolados mutuamente. Mas a sua completitude e sua sinergia deveriam uma razão de procura por atender mais, sem filas, com qualidade, utilizando-se das experiências peculiares de cada um.
É necessária uma revolução nas formas de gestão e isto só será conseguido com profissionalização, que por sua vez necessita de formação. O sistema formador de administradores de saúde deveria esmerar-se na busca de integração entre gestores, prestadores de serviços e formadores de profissionais, conhecendo a real condição do sistema, ensinando administração para uns e o sistema de saúde para outros.

A regulação no estatal e no privado previne o absenteísmo nas consultas e a formação de filas, entre outros problemas. Consegui-la, só utilizando-se de informações e informatização, centros de atendimento adequados, levando a racionalização do sistema. O absenteísmo também ocorre por problemas financeiros dos indivíduos, mas deve-se ter uma maneira de minimizá-lo, como a consulta única, ou seja, diagnóstico definido no dia da consulta inicial e a unidade de referência agendada para atendê-lo.

O pagamento de procedimentos deve ser alicerçado no conhecimento de custos, bem como os orçamentos baseados nestes, e remuneração condizente com os custos e necessidades de investimento. Municípios sem médicos e sem leitos ensejam medidas que dêem atenção aos cidadãos, sem serem heróicas, isto é, capacitação de profissionais para triagem, transporte de emergência e de rotina para locais onde a assistência é de bom nível, enfim, políticas públicas que realmente atinjam o cidadão, na fragilidade existente no seu local de moradia.

Políticas educacionais, econômicas, ambientais, nutricionais e de segurança devem ser direcionadas para melhoria da qualidade de vida das comunidades, lembrando também da responsabilidade individual em relação ao tabagismo, alcoolismo, dietas inadequadas, sedentarismo, sexo sem proteção, direção perigosa, automedicação e o tratamento descontinuado de doenças crônicas.

Decisões baseadas em pesquisas operacionais, em cenários preditivos, em planos diretores para o médio e para o longo prazo, têm maior chance de bom sucesso, onde os quatro conceitos iniciais estão presentes.

Correspondencias e comentarios podem ser enviados diretamente a este blog ou enviadas para o Dr. Olimpio Bittar (bittar@saude.sp.gov.br)

domingo, abril 04, 2010

Judicialização, Integralidade e Financiamento da Saúde

Ano 5, No. 10, Abril 2010


André Cezar Medici



1. Introdução

As relações entre direito e saúde apresentam grandes desafios para o futuro dos sistemas de saúde, não só no Brasil, mas em grande parte do mundo. Dado que o setor saúde necessita de permantente regulação para resolver imperfeições de mercado, o poder judiciário passa a ser, por excelência, o campo de aplicação para a solução de conflitos entre as necessidades e direitos instituidos e as instituições públicas e privadas de saúde. Lenir Santos, advogada especializada em direito sanitário e coordenadora de projetos do IDISA(1), recentemente organizou uma coletânea de artigos intitulada Direito da Saúde no Brasil(2), publicada pela Saberes Editora, que trata de distintos temas como a relação entre direito à saúde e qualidade de vida, integralidade da assistência, normas sanitárias, financiamento à saúde e política de sangue e hemoderivados.

Neste artigo, procurarei tratar de alguns temas discutidos no livro e aprofundar alguns aspectos associados aos dilemas entre judicialização, integralidade e financiamento da saúde, no Brasil e no contexto internacional.

A implementação dos princípios do SUS deve ser feita com cautela de modo a não ferir sua sustentabilidade. Numa sociedade desigual e com recursos escassos, o princípio da cobertura universal pode nem sempre estar em harmonia com o princípio da integralidade do acesso, a depender de como este princípio se encontra definido. O Ministério da Saúde(3), por exemplo, num texto escrito em 2006, demonstrou que se fossem atendidas as necessidades de uso de interferon meguilado para todos os portadores de hepatite C, estimados em 1% da população brasileira, teriam sido gastos R$25 bilhões, ou seja 64% do Orçamento do Ministério da Saúde naquele ano.

Em qualquer país do mundo, o aumento da cobertura em saúde é desafiado pelos limites do que se deve cobrir, especialmente nos dias de hoje, quando a saúde é o setor que produz mais inovações tecnológicas, as quais representam muitos bilhões de dólares que se adicionam anualmente ao gasto do setor. A avaliação e o controle, baseados em evidência, sobre o uso de novas tecnologias são aspectos fundamentais para se decidir sobre a incorporação de novos procedimentos, terapias, exames, tecnologias e medicamentos.

No Brasil, o Ministério da Saúde vem definindo implicitamente, através de seus protocolos e tabelas de pagamento do SUS (AIH, procedimentos ambulatoriais e outras), listas positivas de medicamentos, exames, procedimentos hospitalares, ambulatoriais e terapias que são custeadas pelo SUS. Mas mesmo assim ele tem sido alvo de crescentes cobranças judiciais para o pagamento de procedimentos, medicamentos e terapias de alto custo. Em muitos casos, os pedidos são justificados, dado que se trata de medicamentos, procedimentos, exames e terapias contemplados pelas listas do SUS e sua negação está infringindo direitos protocolarmente instituidos. Em outros casos, são pedidos medicamentos, terapias e procedimentos que não constam das listas do SUS, seja porque não foram testados e não tem eficácia comprovada, seja porque são demasiado caros para estarem inseridos nestas listas, e para os quais existem alternativas mais custo-efetivas usualmente empregadas.

Este problema tem ocorrido em vários países do mundo, e a reação tem sido diferenciada. Nos países europeus, onde o direito coletivo à saúde prevalece sobre o direito individual, procedimentos, medicamentos, exames e terapias que não fazem parte dos protocolos oficiais de saúde não são cobertos pelos sistemas públicos ou seguros privados de saúde, dado que ao serem contemplados, consumiriam recursos adicionais dos orçamentos públicos de saúde que faltariam para cobrir o direito à saúde de outros. Assim, na Europa, os advogados de familias ou empresas nada podem fazer para responsabilizar o Estado ou os seguros de saúde pelo pagamento de coberturas que não são reconhecidas oficialmente como efetivas e eficazes. Em contrapartida, os protocolos reconhecidos oficialmente estão sendo constantemente redefinidos e aperfeiçoados através de instituições que praticam a medicina baseada em evidência ou fazem testes para identificar a eficácia e a relação custo-efetividade dos procedimentos, terapias, exames e medicamentos.

Na Inglaterra, por exemplo, instituições como a Cochrane Collaboration estão constantemente fazendo revisões sistemáticas e meta-análises sobre a eficácia relativa de novos procedimentos, medicamentos, exames e terapias, dando o sêlo de garantia ou reprovando as mesmas para que possam ser publicamente autorizadas. Instituições como o National Institute for Health and Clinical Excelence (NIHCE) complementam estes processos com análises de custo-efetividade para validar estas alternativas quando são comprovadamente melhores que as correntemente existentes.

Nos Estados Unidos, onde a lógica que prevalece é a dos planos de saúde e as demandas judiciais relacionadas à saúde representam largas proporções dos gastos setoriais, o que vale é a cobertura definida nos contratos individuais. No entanto, com a perspectiva de aprovação da Reforma de Saúde proposta pelo Presidente Obama no Congresso, a qual já passou pelo Senado, deverão ser definidas algumas regras de cobertura mínima para todos os planos como parte das novas regulações do setor saúde.

A análise do que se deve considerar como cobertura integral em saúde deveria passar, portanto, pelo teste de algumas perguntas do tipo: A cobertura solicitada faz parte das listas positivas de medicamentos, procedimentos ou terapias existentes? Existem alternativas nas listas existentes ao tipo de cobertura solicitada? Caso não existam, existe alguma evidência dos organismos públicos, como o INCQS ou a ANVISA(4), que recomendem esta cobertura como efetiva ou eficaz? Haveriam cuidados paleativos, prévios a realização do procedimento solicitado, que garantissem sua efetividade? Qual é o custo dos procedimentos solicitados e como afetariam o orçamento para o financiamento de outras ações prioritárias de saúde de natureza coletiva?

2. A Judicialização da Saúde e a Integralidade

Nos últimos anos, as côrtes judiciais no Brasil tem interpretado o tema da integralidade de forma distinta do conceito utilizado pelo Ministério da Saúde. Para o Ministério, a integralidade deveria ser garantida por um conjunto de bens e serviços de saúde de eficácia comprovada no tratamento dos principais problemas epidemiológicos da população brasileira. Mas em grande parte das demandas judiciais, o que acaba ocorrendo é a exigência de se tratar certa doença com o uso de determinado produto farmacêutico, procedimento ou terapia não incorporado pela evidência médica disponível, mesmo que o tratamento desta doença já esteja contemplado no SUS através de alternativas terapêuticas comprovadamente mais eficazes pelos parâmetros disponíveis.

O crescimento das demandas judiciais em saúde, com base no artigo 196 da Constituição de 1988, que garante a integralidade das ações de saúde, é fenômeno conhecido como judicialização da saúde no jargão do Direito Sanitário. Ele sido um dos principais fatores recentes que potencializa a iniquidade financeira entre ricos e pobres no acesso ao SUS. Os fatos geradores dessa iniquidade estão: (a) no caráter difuso do conceito de integralidade e; (b) na ruptura do financiamento público às prioridades epimemiológicas de saude. A assimetria na informação e acesso aos meios jurídicos para impetrar ações contra o Estado para a cobertura ou ressarcimento de ações de saúde negadas pelos gestores públicos do SUS acaba favorecendo aqueles que podem pagar por advogados ou que conhecem os meandros jurídicos para levar adiante ações contra o Estado.

2.1 – A necessidade de explicitar o conceito de integralidade

Dada a complexidade dos temas envolvidos na regulamentação da prestação de serviços de saúde, a falta de explicitação de um conceito de integralidade que dê suporte técnico às decisões judiciais sobre reclamações quanto a cobertura do SUS passa a ser funcional para as intensões de segmentos da sociedade que buscam tirar vantagem do conceito difuso de integralidade no bojo da gratuidade do SUS ou no bojo das deficiências na legislação dos planos de saúde, no caso de demandas privadas. Com isto, recursos públicos ou de gestão coletiva privada passam a ser drenados para o financiamento de ações de saúde questionáveis sob a base de preceitos técnicos e de ética coletiva em sua utilização.

Este processo, batizado pelo sanitarista brasileiro Gilson Carvalho por integralidade turbinada beneficia produtores e mercadores de equipamentos médicos, medicamentos e materias de saúde e suas redes de lobistas que utilizam muitas vezes as associações de pacientes, o corpo clínico de corporações médicas e universidades e a mídia como forma de garantir o financiamento público para inovações tecnológicas ainda não testadas ou aprovadas pelas instâncias nacionais de avaliação de tecnologia em saúde. O tempo decorrido para validar estas inovações, muitas vezes demasiado longo, faz com que a indústria procure buscar atalhos permitidos pelo processo de judicialização para a colocação em massa de seus produtos no mercado. A população, uma vez que não tem informação suficiente para aceitar ou não os produtos e terapias sugeridos, não tem outra saída senão confiar nos profissionais de saúde que sugerem o novo tratamento, passando a ser atores para acionar o sistema judicial reclamando a cobertura pública destes bens ou serviços.

O carater difuso do conceito de integralidade leva a necessidade de explicitar e buscar um consenso sobre este conceito. Este deveria, no mínimo, estar delimitado por temas como a regulação da incorporação de tecnologia com base nos princípios de medicina baseada em evidência, da atenção protocolizada, da desmedicalização possível e da indicação correta dos medicamentos, da discussão de quando e em que circunstâncias se deve fazer exames, da sequência correta de cuidados baseados em hierarquização dos serviços, com ênfase na atenção primária, e da especial atenção aos casos que estão fora de possibilidade terapêutica.

2.2 - A necessidade de garantir o financiamento às prioridade epidemiológicas

A regra de ouro para garantir a efetividade no financiamento público a saúde reside no suposto de que o orçamento público financia um conjunto integral de prestações ordenado por prioridades epidemiológicas. Portanto, ainda que o financiamento seja integral, a regra de ouro é financiar primeiro o que é mais prioritário, ou seja, o conjunto de ações de saúde que beneficiaria o maior número possível de beneficiários.

No entanto prioridades epidemiológicas (e na ausência de informação, preferências subjetivas sobre o que financiar em saúde) são distintas segundo os diferentes grupos sociais. Na medida em que os grupos de maior renda (ou aqueles protegidos por associações de pacientes) tem mais acesso à informação e ao financiamento e custeio de ações judiciais, o processo de judicialização da saúde acaba beneficiando aqueles que tem maior informação, educação, renda e estão inseridos em redes sociais. Os recursos para financiar as ações judiciais destes grupos acabam saindo de recortes nos orçamentos públicos de ações de saúde prioritárias na epidemiologia dos mais pobres, como as de promoção e prevenção de saúde, com impactos negativos no aumento da iniquidade e na qualidade de vida dos que detém menos recursos. Tal fato decorre, também nas palavras de Gilson Carvalho, da existência de uma integralidade partida pela iniquidade na distribuição de recursos para saúde no Brasil.

Mas este é um tema que não tem encontrado soluções em prol da equidade no âmbito da judicialização da saúde no Brasil até o presente momento. Como diz Eduardo Appio, juiz federal e pós-doutor em direito constitucional, “o direito à saúde, como qualquer outro direito social, deve ser suportado pelo orçamento público. Os custos são suportados pelos tributos cobrados de todos. Todos pagam, mas apenas alguns poucos pacientes têm acesso efetivo a medicamentos de última geração na rede pública de saúde, muitos dos quais amparados em liminares judiciais. Não são pessoas de baixa renda. O impacto dos tributos nas camadas mais pobres da população é mais intenso do que nos estratos superiores. Ainda assim, os juízes vêem o orçamento público como uma fonte inesgotável de recursos. A eficiência alocativa é uma ambição de qualquer administrador público responsável por gerir recursos escassos em um ambiente de grande demanda”(5).

Embora não existam estudos sobre a origem sócio econômica dos indivíduos que demandam ações judiciais contra o Estado para a aquisição de medicamentos, serviços ou terapias, parece haver uma certa dicotomia na natureza destes pedidos. Minha hipótese, não testada, é a de que os grupos de menor renda ainda que sejam vítimas da integralidade partida, são os que menos impetram ações contra o SUS. Quando o fazem, normalmente suas queixas estão associadas à cobertura de ações que estariam dentro dos procedimentos constantes nas listas implícitas ou explícitas do SUS. Já os grupos de maior renda procurariam demandar o SUS em ações que não estão cobertas dentro das listas implícitas do SUS. Normalmente estas demandas, são secundadas por advogados ou associações de pacientes que tem uma boa assessoria jurídica.

3. Impactos Financeiros da Judicialização da Saúde no Orçamento Público

O crescimento do processo de judicialização da saúde se baseia no artigo 196 da Constituição Federal, que considera a integralidade da saúde (independentemente de ser ser turbinada ou partida, para usar as palavras de Gilson Carvalho) um direito da população e um dever do Estado. A Justiça Brasileira tem acatado de forma maciça esse argumento. Em grande parte do país, o Ministério da Saúde e as secretarias estaduais e municipais de saúde têm lutado contra essa realidade, dadas as limitações impostas em seus orçamentos que levam à distorção das prioridades epidemiológicas financiadas pelo orçamento público. As inúmeras ações que tramitam no Judiciário restringem a liberdade do Governo Federal, dos Estados e dos Municípios em alocar recursos públicos em saúde segundo prioridades pactuadas, devido aos bloqueios judiciais realizados no orçamento. Vamos a alguns exemplos

Segundo a Agência Brasil, as compras de remédios por ordem da Justiça consumiram R$ 526 milhões nas esferas federal, estadual e municipal em 2007. Somente no Ministério da Saúde os gastos com ações judiciais para a compra de medicamentos aumentaram vinte vezes entre 2005 e 2008, passando de R$2,5 milhões para R$ 52 mihões, valor sufiente para realizar 5,2 milhões de consultas pré-natais e 130 mil partos normais num país que ainda sofre com elevadas taxas de mortalidade materna. Nos Estados, a situação não é diferente.

• Em Minas Gerais foram processadas 1.744 açoes judiciais em 2005, comprometendo R$ 40 milhões somente com o pagamento de medicamentos reivindicados por meio destas ações.

• O Rio de Janeiro tem fechado acordos com a Defensoria Pública - que são parte em cerca de 90% dessas ações judiciais - para que, em casos que pleiteiam medicamentos que estão na lista do SUS, o órgão oficie a Secretaria antes de tentar a via judicial. Ainda assim, os gastos com ações judiciais continuam a aumentar. Em 2005, o órgão usou R$ 5 milhões para esse fim, enquanto que em 2008 a previsão foi de R$ 30 milhões. Com estes recursos poderiam ser abertas 25 unidades de pronto-atendimento 24 horas, destinadas a casos mais graves.

• A Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul adota uma estratégia similar a do Rio de Janeiro para reduzir a ´´judicialização´´ na saúde. O Estado gasta uma média de R$ 6,5 milhões por mês com o cumprimento de decisões judiciais. Em 2007, o Estado enfrentou 7,9 mil ações judiciais e em meados de 2008 (junho) estas já chegavam a 4,5 mil.

• Ao que se sabe São Paulo é o Estado que mais gasta com o fornecimento de remédios pela via judicial. Desde 2002 foram ajuizadas mais de 25 mil ações para pedidos os mais diversos. Entre 2002 e 2008, por exemplo, foram gastos cerca de R$ 500 milhões com ações judiciais, ainda que entre 2007 e 2008 o número de ações tenha se reduzido 22% - de 3996 para 3098 (6). Há centenas de processos pedindo o fornecimento de fraldas, que além de além de não serem iténs de gasto em saúde, e sim de higiene pessoal, não estão nas listas do SUS. Se estas ações prosseguissem, o SUS deveria começar a pagar sabonetes, detergentes e outros produtos de limpeza.

Em 2007, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu liminar que determinava ao Estado de Alagoas a aquisição de medicamentos para pacientes transplantados renais e renais crônicos não fornecidos pelos SUS em seus programas. Algumas associações de pacientes alegaram que esta decisão feria o princípio da integralidade, mas o STF foi instruido que o SUS oferecia alternativas ao medicamento demandado e que não haviam testes nacionais que comprovassem a eficácia do medicamento solicitado. Em casos similares, as pressões foram tantas que juizes so supremo tribunal voltaram atrás em decisões tomadas nos Estados do Amazonas e do Rio Grande do Norte (7).

Assim, enquanto os Estados alegam que há uma ´´judicialização´´ excessiva, algumas associações de pacientes reclamam que não há medicamentos disponíveis e que por meio de ações junto às secretarias estaduais tem sido possível regularizar o fornecimento de medicamentos e forçar a criação de leis estaduais com essa finalidade.

4. Formas de solucionar alguns temas associados à judicialização

Os temas associados à judicialização da saúde no Brasil vieram para ficar. Em geral suas soluções estariam associadas a três temas: (a) a explicitação do conceito de integralidade; (b) a harmonização dos interesses econômicos com as reais necessidades da população e; (c) a prevalência do direito coletivo sobre o direito individual, quando os recursos são limitados.

4.1 A explicitação do Conceito de Integralidade

A integralidade deve ser funcional a resolução dos problemas de saúde da população brasileira. Neste particular ela deve propiciar todos os usos possíveis dos recursos, mas evitar os abusos que normalmente surgem pelo fato de não haver regras explícitas do que deve estar contido no contexto da integralidade. Qualquer país tem como princípio definir explcitamente o que vai e o que não vai financiar em saúde dentro de seu conceito de saúde integral. Caso não o faça, o exercício da subjetividade poderá fazer com que as demandas de saúde sejam infinitas e representem, não só o que é necessário, mas também a soma de todos os desejos e prazeres da humanidade.

Mas qual a metodologia que deveremos utilizar para definir o conceito de integralidade. A maioria dos países tem utilizado o método das listas positivas, a partir de estudos de carga de enfermidade. Os estudos de carga de enfermidade, se baseiam em dados de mortalidade e morbidade, onde se poderá listar a totalidade dos anos de vida perdidos por mortes e por doença segundo as causas que levaram a estas perdas. No entanto, nem sempre os países tem boas estatísticas de mortalidade e morbidade. Um passo importante, portanto, seria melhorar a qualidade das estatísticas para realizar estes estudos e fazê-los com uma dada periodicidade (8). Assim se definiria a lista hierarquizada de prioridades de saúde.

Para esta lista, se construiría um conjunto de protocolos baseados em regras de custo-efetividade, onde estariam elecandos os melhores procedimentos, medicamentos, exames e terapias, de acordo com o conhecimento disponível no país, para prevenir, tratar ou curar as causas listadas. A construção desta lista exigiria que instituições e grupos de trabalho se dedicassem, com o reconhecimento e suporte do Estado, sobre a construção de protocolos baseados em evidência. O apoio de instituições como a Centro Cochrane do Brasil na multiplicação destas estratégias seria essencial(9). Também seria fundamental o uso de critérios de custo-efetividade na montagem das listas positivas e sua revisão. No Brasil não existem instituições como o NIHCE, na Inglaterra, que esteja realizando este trabalho de forma sistemática. Portanto, seria altamente recomendável que se buscasse a assessoria técnica desta instituição neste processo (10).

Dado que protocolos em saúde envelhecem por obsolescência técnica e o setor incorpora constantemente novos processos de tratamento mais eficazes (em muitos casos mais baratos) é necessário que se crie um processo de revisão sistemática das listas positivas e de seus protocolos, a fim de evitar que a população brasileira não deixe de incorporar os processos administrativos e tecnológicos (especialmente aqueles de baixo custo e de alto impacto, como vacinação, combate a doenças transmissíveis, estratégias de promoção e prevenção) que melhoram as condições de saúde. Mas isto deve ser feito sempre com um olho no orçamento disponível e outro nos resultados alcançados na melhoria do estado em saúde.

Explicitar o conceito de integralidade é também acordar os critérios técnicos para que esta definição seja sustentável e promova a melhoria da saúde ao longo do tempo.

4.2 A Harmonização dos Interesses Econômicos com as Reais Necessidades da População

Não se pode negar nem evitar que existam interesses econômicos daqueles que produzem inovações na produção de diagnósticos, equipamentos, medicamentos e terapias em saúde. Além de válidos e legítimos, a existência destes interesses tem levado o setor saúde a um incomparável progresso na melhoria das condições de vida da população nos últimos 150 anos. No entanto, como a inovação gera vultosos recursos econômicos, há que disciplinar, através de processos de validação e normatização pública, sua difusão e comercialização para que esta se baseie em princípios éticos que garantam a eficiência, a eficácia e a efetividade de seu uso em benefício da população.

Neste sentido, é necessário estabelecer meios para que os protocolos aceitos como custo-efetivos nas listas positivas sejam normatizados e licenciados por instituições acreditadas, sejam elas públicas ou privadas. A incorporação de novos procedimentos e tecnologias nos sistemas de saúde deve se basear em critérios de necessidade, oportunidade, razoabilidade, conveniência e essencialidade para a garantia da saúde, em seus aspectos coletivos e individuais.

Um novo medicamento, por exemplo, só deveria ser licenciado quando a sua eficácia e segurança são comprovadas por meio da apresentação, pelo fabricante, dos resultados dos ensaios clínicos realizados. Essa medida visa garantir que os medicamentos disponíveis (e licenciados pelo poder público) sejam capazes de fazer o que se propõem e que sua ação não causará danos aos pacientes. Mas o simples licenciamento não dever ser considerado para como único critério para o seu financiamento público. É necessário, além dos atributos de segurança, efetividade e eficácia, que os novos medicamentos sejam a melhor alternativa de custo, porque assim se possibilitaria que mais pessoas possam ter acesso e que os recursos economizados pelo Estado se destinem a outros usos de interesse público.

É com base nestes critérios, no caso do Brasil, que foi construida a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) associada aos remédios regularement disponíbilizados pelo SUS. Se adiciona também a lista de medicamentos excepcionais, utilizados para o tratamento de doenças raras. Portanto, o Brasil tem elementos suficientes para que a Justiça considere que medicamentos deverão ou não ser financiados pelo sistema público e a Justiça deveria tomar isto em conta nas decisões consideradas pelas cortes de justiça.

No entanto, os processos que envolvem desde o licenciamento de um medicamento, procedimento ou tecnologia, até sua incorporação pelo setor público podem demorar muito tempo e, neste caso, a empresa ou instituição inovadora poderá perder recursos até que o Estado siga todos os passos necessários. Muitas empresas (especialmente aqueles menos éticas) procuram atalhos pouco transparentes para o uso de suas inovações e a judicialização pode ser um desses atalhos. Nestes casos, se devem realizar investigações (em alguns casos criminais) para avaliar se uma Associação de Pacientes (em geral desprovida de informação para checar os argumentos de eficácia clínica) foi influenciada, por uma determinada empresa, ao demandar do Estado a compra e financiamento público de seus produtos ou tecnologia.

Por outro lado, cabe ao Estado agilizar os processos e protocolos de geração de tecnologia, a fim de evitar que as inovações que valem a pena demorem a ser incorporadas e que o país perca os benefícios e incentivos da inovação, assim como os registros de patentes. Ao que parece, o Brasil necessitaria rever os tempos para registrar, licenciar e comercializar novos produtos. Muitos autores indicam que o país apresenta baixo desempenho no processo de geração de patentes no setor saúde, dada a desarticulação entre o Estado e o sistema de inovação no setor (11).

4.3 – A Prevalência do Direito Coletivo sobre o Individual(12)

Os sistemas de saúde que atualmente se configuram a nivel mundial podem ser classificados em dois tipos: aqueles onde predominam os seguros de saúde privados, baseados em contratos entre pessoas e empresas, onde prevalecem as regras de direito individual (como é o caso dos Estados Unidos) e aqueles que se pautam por coberturas universais, seja através da oferta pública, seja através de seguros coletivos financiados com recursos públicos ou para-públicos, como os da seguridade social, onde prevalecem as regras de direito coletivo. Este é o caso dos países europeus e em certa medida do Brasil.

No primeiro caso, boa parte do financiamento da saúde é feito através de familias ou empresas, enquanto no segundo o financiamento se realiza através de impostos gerais e contribuições sociais, onde as regras públicas substituem os contratos individuais. Nos contratos individuais as reclamações se resolvem com base nas coberturas explicitadas nos contratos, ou em jurisprudência sobre o tema, e muitas vezes não necessitam chegar aos tribunais, dado que ouvidorias ou serviços de atenção ao consumidor das próprias empresas dão conta do recado. Nos contratos de direito coletivo, as coberturas são aquelas constantes nas listas positivas e os recursos estão assegurados no orçamento. Casos previstos nestes contratos são cobertos, enquanto que casos não previstos são negados.

Na maioria dos países, inclusive nos desenvolvidos, o Estado dispõe de limitada capacidade para financiar as prestações reconhecidas de direitos fundamentais sociais e do mínimo existencial. Mas o Estado, por outro lado, também deve ter a capacidade jurídica de dispor, sem o qual de nada lhe adiantam os recursos existentes que são alocados no orçamento público. Em virtude destes aspectos, a sustentação dos direitos sociais, como o acesso universal à saúde, depende de uma reserva do possível que defina a existência ou ausência de recursos indispensáveis ao cumprimento destes direitos pelo Estado.

A construção teórica do argumento da reserva do possível (Der Vorbehalt des Möglichen) tem origem na Alemanha dos anos 1970. Assim, a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos. A reserva do possível passou a traduzir a idéia de que os direitos sociais a prestações materiais dependem da real disponibilidade de recursos financeiros por parte do Estado, disponibilidade esta que estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e parlamentares, sintetizadas no orçamento público. Assim, se poderia sustentar, sob o argumento da reserva do possível, que não haveria como impor ao Estado a prestação de assistência social a alguém que efetivamente não faça jus ao benefício, por não estar este definido nas regras de direito coletivo de acordo com as normativas vigentes. Este tem sido o principal instrumento jurídico utilizado pelos países europeus para vetar ações judiciais associadas solicitando o financiamento e cobertura pelo Estado de procedimentos, exames ou medicamentos não previstos nas regulações públicas.

O uso do argumento da reserva do possível nos tribunais pode ser uma solução para muitos problemas associados a judicialização da saúde no Brasil, tais como: (a) vetar uma prestação que não está incluída na tabela procedimentos, medicamentos, órteses, próteses e materiais do SUS; (b) negar o acesso aos recursos públicos de uma pessoa protegida por um plano ou seguro saúde onde a prestação requerida está contratualmente garantida por este plano, segundo o contrato e as normas vigentes na ANS e; (c) bloquear o acesso de um pedido de financiamento a serviços não essenciais ou supérfluos pelo erário público, sob o argumento de que não são necessários para a saúde de um indivíduo. Estes seriam casos clássicos onde se estaria protegendo o direito coletivo à saúde expresso no orçamento público.

No entanto, ha que se ter cautela. O uso da reserva do possível pode ser considerado um problema quando é utilizado para: (a) vetar uma prestação garantida pela tabela de procedimetos, medicamentos, órteses, próteses e materiais do SUS; (b) negar o acesso de uma pessoa sem recursos ou sem outras formas de proteção a saúde (como a saúde suplementar) à esta prestação, ou; (c) vetar a transferência de recursos de um determinado nível de governo para outro para o financiamento de serviços essenciais que não tem possibilidades de ser custeados pelo orçamento vigente no nível de governo correspondente.

Em sociedades em desenvolvimento como a brasileira, a garantia dos direitos coletivos em saúde deve prevalecer sobre os direitos individuais, mas a distância entre direitos coletivos e individuais tende a se reduzir na medida em que aumentam os recursos disponíveis para o financiamento da saúde, permitindo atender a um maior gradiente de necessidades de saúde coletivas, mesmo que estas se expressem de forma pouco frequente em termos individuais. Portanto, a garantia de recursos estáveis para o financiamento da saúde e a redução das brechas de equidade, seja através da ampliação das fontes de financiamento, seja através da melhoria da eficiência no uso dos recursos, serão sempre determinantes de parte das conquistas futuras que permitirão a aproximação entre as perspectivas individuais e coletivas em matéria de direito sanitário.

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NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) O Institituto de Direito Sanitario Aplicado (IDISA) é uma Instituição vinculada a Universidade Estadual de Campinas, em São Paulo.

(2) Santos, L. (org), O Direito a Saúde no Brasil, Editora Saberes, Campinas (SP), 2010. O livro tem artigos de Lenir Santos, André Evangelista de Souza, André Medici, Cármino Antonio de Souza, Dimas Tadeu Covas, Fernando Aith, Gilson Carvalho, João Agnaldo Donizeti Gandini, Marcelo Addas-Carvalho, Marlon Alberto Weichert e Samantha Ferreira Barione. Click a página web http://www.idisa.org.br/site/img/direito_saude_brasil1.jpg

(3) Vieira, F.S. (2008), Ações Judiciais e Direito à Saúde, Ed. Ministério da Saúde, Brasilia (mimeo.), 2008.

(4) INCQS significa Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde. É um órgão da FIOCRUZ que atua como referência nacional para as questões científicas e tecnológicas relativas ao controle da qualidade de produtos, ambientes e serviços vinculados à Vigilância Sanitária. ANVISA é a Agencia Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, cuja finalidade é promover a proteção da saúde da população por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados.

(5) Ver Appio, E (2009). Os Pobres devem Pagar as Contas dos Ricos? In JusBrasil Noticias, extraído de Espaço Vital, 15 de maio de 2009. http://www.jusbrasil.com.br/noticias/1062714/os-pobres-devem-pagar-as-contas-dos-ricos.

(6) Dados constantes em materia publicada na Folha de São Paulo de 17 de fevereiro de 2009 intitulada Políticas Públicas de Medicamentos no Estado de São Paulo. De acordo com esta reportagem, para o governo paulista, a queda nas ações está diretamente relacionada a uma operação policial que, no ano passado, prendeu nove pessoas sob a acusação de forjarem receitas médicas para obrigar à Secretaria do Estado, por meio de demandas judiciais, a comprar remédios para 15 pessoas com psoríase (doença inflamatória da pele). A estimativa da secretaria é que em torno de 50% dos casos de ações obrigando o fornecimento de drogas que não constam na lista do SUS tenham algum desvio de finalidade.

(7) Este tema é relatado no artigo de Vieira, F.S (2008).

(8) Estudos de carga de doença costumam ser caros e, uma vez realizados, não apresentam grandes variaçães no curto prazo, a não ser quando se observa melhorias nos sistemas de informação. Portanto, se realizados de 5 em 5 anos poderão dar conta das necessidades de definição dos rankings de doenças que devem ser atacadas prioritariamente, de acordo com variáveis como Região, idade e gênero, durante algum período fixo de tempo.

(9) Informações sobre o trabalho do Centro Cochrane do Brasil em temas associados a medicina baseada em evidência, avaliações sistemáticas de procedimentos clínicos, terapeuticos e medicamentos e meta-análises associadas pode ser encontrados em http://www.centrocochranedobrasil.org.br/

(10)Sobre o trabalho desenvolvido pelo NIHCE, consultar a página http://www.nice.org.uk/

(11) Ver Gadelha, C.A.G & Quental, C. (2003), Saúde e Inovação: Uma Abordagem Sistêmica da Indústria de Saúde, In Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(1):47-59, jan-fev, 2003.

(12) Para uma visão mais completa deste tema e sua relação com a integralidade em saúde ver apresentação que realizei na seguinte pagina: http://www.ibedess.org.br/imagens/biblioteca/406_Andre%20Medici.pdf