O Financiamento do sistema de saúde
brasileiro: a necessidade de um novo paradigma
Edson C. Araújo, PhD,
Economista Senior do Banco Mundial
Claudia M. Tufani, MSc, Economista,
Consultora do Banco Mundial
1.
O Estado brasileiro enfrenta dois desafios urgentes e
as respostas a esses desafios irão redesenhar o papel e o tamanho do setor público
no futuro. O primeiro desafio
é superar a crise fiscal sem precedentes que o país enfrenta. O déficit fiscal acumulado nas três esferas
de governo alcançou 8,9% do PIB em 2018. A reforma da previdência e a chamada emenda
do teto de gastos (EC 95) são algumas das medidas que buscam conter a trajetória
de crescimento da dívida pública. Porém,
com uma carga tributária de 35% do PIB (a maior da série histórica, que começa
em 1947), o Estado brasileiro continuará grande no curto e médio prazos. O
segundo desafio é melhorar a qualidade dos serviços públicos essenciais sem,
contudo, piorar a saúde das contas públicas. Pesquisa feita pelo IBOPE em 2016,
mostra que nove em cada dez brasileiros concordam que considerando o valor dos
impostos, a qualidade dos serviços públicos deveria ser melhor no país.[1]
2.
O sistema público de saúde, a despeito dos avanços nas
últimas três décadas, ilustra bem o cenário desafiador que o Estado brasileiro
se encontra. Em 2018, o sistema único de saúde (SUS) consumiu,
em média, 14% da arrecadação dos estados, 22% dos municípios, e quase 15% da
União. São cerca de R$250 bilhões gastos no SUS pelas três esferas de governo.[2]
Estudo do
Banco Mundial que compara gastos com saúde e resultados, conclui que o Brasil
poderia aumentar os resultados de saúde em 10% com o mesmo nível de gastos; ou
poderia economizar 34% de seus gastos para produzir os mesmos resultados de
saúde. Além disso, o uso mais eficiente dos recursos da saúde poderia aumentar
o número de consultas médicas por habitantes em mais de quatro vezes, aumentar
em quase 80% o número de internações hospitalares ao ano, e aumentar a cobertura
de vacinas em 42%. Tudo isso sem a necessidade de mais recursos financeiros.[3]
Assim, não é surpreendente que a insatisfação da população com os serviços públicos
de saúde seja alta: dados da pesquisa CNI/IBOPE 2018 apontam que o percentual
de brasileiros que avalia a saúde pública ruim ou péssima passou de 61% em
2011, para 75% em 2018.[4] Ainda de
acordo com dados do IBOPE, 70% dos brasileiros concordam que a baixa qualidade
dos serviços públicos é mais consequência da má-utilização dos recursos do que
da falta deles.1
3. Enfrentar
os desafios do SUS significa rever os atuais modelos de financiamento, gestão e
organização da atenção a saúde. É preciso alterar a atual
estrutura de incentivos, o que requer mudanças fundamentais nos mecanismos de
financiamento e pagamento aos prestadores de serviços. No formato atual, esses mecanismos
são pouco utilizados como instrumentos de política para influenciar ações
prioritárias ou para incentivar desempenho. A maior parte dos recursos da APS é transferida
de forma per capita (PAB fixo – cerca de R$ 5 bi) e para o financiamento de
programas por adesão (PAB variável – cerca de R$ 6 bi). Além disso, o
Ministério da Saúde é responsável também por financiar o custeio dos Agentes Comunitários
de Saúde (ACS), que em 2018 custaram mais de R$3.2 bi. Ainda que os ACS sejam importantes, esses
gastos tem pouca ou nenhuma contrapartida em termos de quantidade ou qualidade
dos servicos prestados.
4.
Recentemente
o Ministério da Saúde apresentou uma proposta de Novo Financiamento da atenção
primária a saúde (APS) que aponta para mudanças desejadas. De
acordo com a proposta, o novo financiamrnto da APS seria organizado em 4 eixos:
(1) Capitação; (2) Pagamento por desempenho; (3) Incentivos a Programas
Estratégicos; e (4) Provimento de Pessoal. O novo financiamento da APS, em
linhas com as boas práticas internacionais, adota um modelo misto de
financiamento que prioriza as populações com maior vulnerabilidade econômica (bem
como aquelas com maiores dificuldades de acesso aos serviços) e premia o esforço
para melhorar a qualidade dos serviços e os indicadores de saúde da população.
Paises como Inglaterra adotam sistemas
mistos, baseados em capitação, desde os anos 70.[5] A maioria dos países da OCDE utilizam alguma
forma de pagamento por desempenho como forma de aumentar a eficiência e
qualidade dos serviços de saúde.[6]
Além disso, se aprovada, a reforma seria o primeiro passo para a implantação de
redes integradas de assistência à saúde no SUS, o que colocaria o Brasil em
linha com as boas práticas internacionais no setor saúde.
5.
A proposta
do Novo Financiamento da APS é um avanco no financiamento do SUS, porém outras
reformas são necessárias. Pelo
menos duas áreas merecem atenção: Primeiro, um dos aspectos cruciais para que o
novo financiamento resulte em mudanças de longo prazo é transformar a APS em
porta de entrada ao SUS. As equipes de
saúde da família (ESF) devem ser responsáveis por coordenar a atenção prestada
por diferentes prestadores de forma a garantir o acesso aos serviços
clinicamente necessários e ao mesmo tempo conter os custos do tratamento. Essa
função da APS tem sido adotada por países com sistema de saúde de acesso
universal, como Canadá e Inglaterra. Segundo, embora o financiamento da saúde
deva ser público, sua provisão não precisa ser estatal. A provisão de serviços públicos de saúde por
agentes privados pode resultar em ganhos de eficiência ao SUS. Sao muitas as evidências de que prestdores
que funcionam com gestão autônoma, tais como as Organizações Sociais em Saúde
(OSS), têm melhor desempenho do que os que estão sob administração pública
direta, desde que bem estabelecidos mecanismos de regulação. No estado de Sao Paulo, a contratação de
servicos de APS através de OSS resultou em aumento do acesso aos servicos e e
reducao do numero de internaçoes por condicoes evitaveis.[7]
6.
Juntas, as mudanças propostas irão promover melhor uso
do recurso público da saúde.
A crise fiscal e a necessidade de melhorar a qualidade dos servicos públicos
pode ser uma oportunidade para buscar solucoes inovadoras, que deixem no
passado o paradoxo que o ex-ministro Delfim Neto denominou de "Ingana",
um país com carga tributaria da Inglaterra e serviços públicos de Gana.[8] A reforma
do SUS pode ser o primeiro passo para tal transformacao estrutural do
Estado brasileiro.
[1] Pesquisa CNI/IBOPE. Retratos da Sociedade Brasileira - Serviços
públicos, tributação e gasto do governo. 2016.
[2] Dados
de 2018, fonte SIOPS/MS.
[3] Banco Mundial
(2017). Um Ajuste Justo. Análise da eficiência e equidade do gasto público no
Brasil. Volume I: Síntese.
[4] Retratos da sociedade brasileira: saúde pública /
Confederação Nacional da Indústria. Ano
7, n. 44. Brasília: CNI, 2018.
[6] Cheryl Cashin et al. (2014). Paying for Performance in Health Care:
Implications for health system performance and accountability. European
Observatory on Health Systems and Policies.
[7]
Greve e Coelho (2017). Evaluating the
impact of contracting out basic health care services in the state of Sao Paulo,
Brazil. Health Policy and Planning, 32, 2017, 923–933.
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