quinta-feira, outubro 17, 2019

Financiamento do sistema de saúde brasileiro: a necessidade de um novo paradigma






Ano 13, Número 97, Outubro de 2019


O Financiamento do sistema de saúde brasileiro: a necessidade de um novo paradigma

Edson C. Araújo, PhD, Economista Senior do Banco Mundial
Claudia M. Tufani, MSc, Economista, Consultora do Banco Mundial

1.      O Estado brasileiro enfrenta dois desafios urgentes e as respostas a esses desafios irão redesenhar o papel e o tamanho do setor público no futuro. O primeiro desafio é superar a crise fiscal sem precedentes que o país enfrenta.  O déficit fiscal acumulado nas três esferas de governo alcançou 8,9% do PIB em 2018. A reforma da previdência e a chamada emenda do teto de gastos (EC 95) são algumas das medidas que buscam conter a trajetória de crescimento da dívida pública.  Porém, com uma carga tributária de 35% do PIB (a maior da série histórica, que começa em 1947), o Estado brasileiro continuará grande no curto e médio prazos. O segundo desafio é melhorar a qualidade dos serviços públicos essenciais sem, contudo, piorar a saúde das contas públicas. Pesquisa feita pelo IBOPE em 2016, mostra que nove em cada dez brasileiros concordam que considerando o valor dos impostos, a qualidade dos serviços públicos deveria ser melhor no país.[1]

2.      O sistema público de saúde, a despeito dos avanços nas últimas três décadas, ilustra bem o cenário desafiador que o Estado brasileiro se encontra.  Em 2018, o sistema único de saúde (SUS) consumiu, em média, 14% da arrecadação dos estados, 22% dos municípios, e quase 15% da União. São cerca de R$250 bilhões gastos no SUS  pelas três esferas de governo.[2] 
Estudo do Banco Mundial que compara gastos com saúde e resultados, conclui que o Brasil poderia aumentar os resultados de saúde em 10% com o mesmo nível de gastos; ou poderia economizar 34% de seus gastos para produzir os mesmos resultados de saúde. Além disso, o uso mais eficiente dos recursos da saúde poderia aumentar o número de consultas médicas por habitantes em mais de quatro vezes, aumentar em quase 80% o número de internações hospitalares ao ano, e aumentar a cobertura de vacinas em 42%. Tudo isso sem a necessidade de mais recursos financeiros.[3] Assim, não é surpreendente que a insatisfação da população com os serviços públicos de saúde seja alta: dados da pesquisa CNI/IBOPE 2018 apontam que o percentual de brasileiros que avalia a saúde pública ruim ou péssima passou de 61% em 2011, para 75% em 2018.[4] Ainda de acordo com dados do IBOPE, 70% dos brasileiros concordam que a baixa qualidade dos serviços públicos é mais consequência da má-utilização dos recursos do que da falta deles.1

3.      Enfrentar os desafios do SUS significa rever os atuais modelos de financiamento, gestão e organização da atenção a saúde.  É preciso alterar a atual estrutura de incentivos, o que requer mudanças fundamentais nos mecanismos de financiamento e pagamento aos prestadores de serviços. No formato atual, esses mecanismos são pouco utilizados como instru­mentos de política para influenciar ações prioritárias ou para incentivar desempenho.  A maior parte dos recursos da APS é transferida de forma per capita (PAB fixo – cerca de R$ 5 bi) e para o financiamento de programas por adesão (PAB variável – cerca de R$ 6 bi). Além disso, o Ministério da Saúde é responsável também por financiar o custeio dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), que em 2018 custaram mais de R$3.2 bi.  Ainda que os ACS sejam importantes, esses gastos tem pouca ou nenhuma contrapartida em termos de quantidade ou qualidade dos servicos prestados. 

4.      Recentemente o Ministério da Saúde apresentou uma proposta de Novo Financiamento da atenção primária a saúde (APS) que aponta para mudanças desejadas. De acordo com a proposta, o novo financiamrnto da APS seria organizado em 4 eixos: (1) Capitação; (2) Pagamento por desempenho; (3) Incentivos a Programas Estratégicos; e (4) Provimento de Pessoal. O novo financiamento da APS, em linhas com as boas práticas internacionais, adota um modelo misto de financiamento que prioriza as populações com maior vulnerabilidade econômica (bem como aquelas com maiores dificuldades de acesso aos serviços) e premia o esforço para melhorar a qualidade dos serviços e os indicadores de saúde da população. Paises como Inglaterra  adotam sistemas mistos, baseados em capitação, desde os anos 70.[5]  A maioria dos países da OCDE utilizam alguma forma de pagamento por desempenho como forma de aumentar a eficiência e qualidade dos serviços de saúde.[6] Além disso, se aprovada, a reforma seria o primeiro passo para a implantação de redes integradas de assistência à saúde no SUS, o que colocaria o Brasil em linha com as boas práticas internacionais no setor saúde.

5.      A proposta do Novo Financiamento da APS é um avanco no financiamento do SUS, porém outras reformas são necessárias.  Pelo menos duas áreas merecem atenção:  Primeiro, um dos aspectos cruciais para que o novo financiamento resulte em mudanças de longo prazo é transformar a APS em porta de entrada ao SUS.  As equipes de saúde da família (ESF) devem ser responsáveis por coordenar a atenção prestada por diferentes prestadores de forma a garantir o acesso aos serviços clinicamente necessários e ao mesmo tempo conter os custos do tratamento. Essa função da APS tem sido adotada por países com sistema de saúde de acesso universal, como Canadá e Inglaterra. Segundo, embora o financiamento da saúde deva ser público, sua provisão não precisa ser estatal. A  provisão de serviços públicos de saúde por agentes privados pode resultar em ganhos de eficiência ao SUS.  Sao muitas as evidências de que prestdores que funcionam com gestão autô­noma, tais como as Organizações Sociais em Saúde (OSS), têm melhor desempenho do que os que estão sob administração pública direta, desde que bem es­tabelecidos mecanismos de regulação.  No estado de Sao Paulo, a contratação de servicos de APS através de OSS resultou em aumento do acesso aos servicos e e reducao do numero de internaçoes por condicoes evitaveis.[7]

6.      Juntas, as mudanças propostas irão promover melhor uso do recurso público da saúde. A crise fiscal e a necessidade de melhorar a qualidade dos servicos públicos pode ser uma oportunidade para buscar solucoes inovadoras, que deixem no passado o paradoxo que o ex-ministro Delfim Neto denominou de "Ingana", um país com carga tributaria da Inglaterra e serviços públicos de Gana.[8]  A reforma  do SUS pode ser o primeiro passo para tal transformacao estrutural do Estado brasileiro.


[1] Pesquisa CNI/IBOPE. Retratos da Sociedade Brasileira - Serviços públicos, tributação e gasto do governo. 2016.
[2] Dados de 2018, fonte SIOPS/MS.
[3] Banco Mundial (2017). Um Ajuste Justo. Análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil. Volume I: Síntese.
[4] Retratos da sociedade brasileira: saúde pública / Confederação Nacional da Indústria. Ano 7, n. 44. Brasília: CNI, 2018.
[6] Cheryl Cashin et al. (2014). Paying for Performance in Health Care: Implications for health system performance and accountability. European Observatory on Health Systems and Policies.
[7] Greve e Coelho (2017). Evaluating the impact of contracting out basic health care services in the state of Sao Paulo, Brazil. Health Policy and Planning, 32, 2017, 923–933.

Nenhum comentário: