Ano 17, No. 129, Dezembro de 2022
André C. Medici
Introdução
Em meados de 2022, Jeffrey Lazarus, professor do Instituto de Salud Global da Universidade de Barcelona e seus colaboradores, empreenderam, através de um estudo Delphi, um esforço para sintetizar o estado da arte e as percepções de um painel com 386 especialistas internacionais (entre eles 5 brasileiros, no qual me incluo) sobre as tendências da pandemia do Covid-19. Em novembro de 2022 foi publicado na revista Nature um artigo[1] que reflete o consenso em relação as perspectivas da pandemia do Covid-19 para os próximos anos com base na opinião destes especialistas. Algumas das conclusões deste artigo estão refletidas nesta postagem.
Desde meados de novembro de 2022, o número de
casos mundiais da Covid-19 voltou a crescer, passando de uma média móvel global
de 332,7 mil, em 2 de novembro, para 532,1 mil, em 16 de dezembro, o que
representa um aumento de quase 60% num período inferior a dois meses. Com os
progressos na vacinação, especialmente nos países desenvolvidos que já disponibilizaram
5 doses de vacina, sendo a mais recente relacionada às variantes ômicron BA4 e
BA5, o número de mortes, além de reduzido, têm se situado relativamente estável,
como demonstra o gráfico abaixo.
O número de novos casos diários de Covid-19 está bem distante do pico de casos mundiais ocorrido no início da contaminação pela variante ômicron, quando atingiu uma média semanal diária de 3,4 milhões em 27 de janeiro de 2022, ou seja, quase sete vezes maior do que as médias semanais diárias registradas neste dezembro de 2022.
É difícil saber quando a pandemia terminará e a
vida voltará ao normal. Mas muitos estudos sugerem uma saída lenta da pandemia
ao longo do próximo ano. Um estudo realizado por Chen (2022)[2]
com base em análises de regressão não linear sobre variáveis como a mortalidade
global e a taxa de letalidade do Covid-19 mostrou que a pandemia poderá
terminar em breve, mas o COVID-19 pode ser uma ou duas vezes mais mortal que a
gripe sazonal até 2023 e alguns países e regiões poderão continuar a apresentar
crescimento nos números de casos e de morte, levando à possibilidade do
surgimento de novas variantes. Analistas de empresas produtoras de vacinas,
como a Pfizer, acreditam que a Covid-19 se tornará endêmica a partir de 2024,
exigindo, como ocorre com a influenza, uma ou duas vacinas novas a cada ano
atualizadas em função de novas variantes.
Como a imunidade de rebanho contra o Covid-19 se
estabelece como uma mistura de infecções naturais e vacinação em massa, a qual
é distinta entre os países, a pandemia pode ser mais ou menos letal em alguns
países do que em outros nos próximos anos. A realidade é que o vírus SARS-CoV-2
ainda está presente ao nível mundial e poderá continuar a avançar em 2023, e muitos
governos ainda envidam esforços e recursos para salvar vidas que poderiam ser
perdidas pela pandemia. Existem regiões – e não somente nos países mais pobres -
com condições de exposição ao vírus ainda precárias e alarmantes, onde podem
surgir variantes preocupantes, com possível endemicidade, levando ao
crescimento de casos graves, internações e mortes.
O que ocorre na China?
Para exemplificar, é provável que, depois da flexibilização da impopular política de “Covid Zero”[3] implantada nos últimos meses na China, como resultado de intensas pressões populares, venha a ocorrer uma nova explosão de casos de COVID-19 naquele país. Embora as estatísticas oficiais não reflitam necessariamente esta realidade[4], o gráfico abaixo mostra, depois de praticamente dois anos de calmaria, a ocorrência de dois picos de casos diários de Covid-19 na China em 2022, o primeiro nos meses de março e maio e o segundo em ao longo de novembro e dezembro.
A vulnerabilidade da China se deve ao fato de que, num país com grande parcela de idosos em sua população, a maioria se encontra subvacinada[5] e não há infraestrutura e disponibilidade de tratamentos hospitalares suficientes para todos, podendo levar, segundo especialistas, a centenas de milhões de novas infecções e a um número entre 1,5 e 2,0 milhões de novas mortes. Segundo estudos de Cai et al[6], o nível de imunidade induzido pela campanha de vacinação de março de 2022 teria sido insuficiente para prevenir uma onda crescente de contaminação pela variante ômicron que exigirá 15,6 vezes mais capacidade de atendimento do que a existente nas unidades de cuidados intensivos do país, podendo causar, aproximadamente, 1,55 milhões mortes, com picos que podem chegar próximos a 400 mil mortes em abril de 2022. Baixos níveis de imunidade e uma avalanche de novos casos é uma receita explosiva para que a China venha a ser um celeiro de novas variantes do SARS-CoV2, a partir de 2023, e o mundo deverá estar preparado para enfrentar a afluência eventual de novas variantes.
A Relevância das Vacinas
Desde finais de 2020, o mundo avançou
significativamente na geração de novas vacinas, com novas tecnologias, que produziram
grandes reduções no risco e evitaram a ocorrência de casos graves e mortes em
milhões de pessoas. As vacinas têm sido uma ferramenta crucial, mas sozinhas
não acabarão com o COVID-19 como ameaça à saúde pública global. Vacinação, como
estratégia única de resposta pandêmica, tem fortes limitações, devido a
situações de escape imunológico, diminuição da imunidade, acesso desigual a
vacinas e a itens de proteção pessoal, como máscaras e produtos de limpeza e desinfecção.
Se soma a tudo isso, a resistência ideológica e cultural aos processos de
vacinação baseada na falta de conhecimento ou em notícias falsas, muitas vezes
introduzidas pelos próprios governos, como aconteceu em inúmeros países, incluindo
os Estados Unidos, com Donald Trump, e o Brasil com Jair Bolsonaro.
Na maior parte dos países, incluindo os ricos,
tem se verificado a ausência de estratégias de imunização que combinem medidas
de saúde pública com os processos de vacinação, incluindo vigilância
epidemiológica, testes em massa para quem precisa, disponibilidade de
tratamento, envolvimento da comunidade e implementação de medidas de prevenção
social, como o uso mandatório de máscaras (especialmente em ambientes públicos
fechados), isolamento de casos confirmados e intervenções estruturais como
ventilação e filtragem do ar em domicílios e ambientes fechados.
As vacinas existentes ainda têm muitas
limitações, como a perda de imunidade ao longo do tempo e a fraca capacidade de
reagir às novas cepas virais. Serão necessárias mais pesquisas e avanços tecnológicos
para que se possa desenvolver vacinas imunogênicas de longa duração, bem como novas
formas de comunicação social, medidas de preparação da comunidade e de prevenção
que sejam mais eficientes e focalizadas para evitar os efeitos negativos na
economia e na sociedade de longos lockdowns generalizados, como ocorreu em
muitos países, inclusive na China com sua política de Covid Zero.
Os Efeitos de Longo Prazo
O impacto a longo prazo da infecção pelo SARS-CoV-2 é ainda pouco conhecido e deve ser avaliado de uma forma mais sistemática, dado que é estimado que uma proporção de até 30% das pessoas contaminadas pelo vírus poderão ter algum tipo de sequela. Em artigo recente publicado pela Johns Hopkins Medicine[7], vários efeitos de longo prazo foram observados como associados ao pós-Covid, tais como danos aos pulmões, coração, sistema nervoso, rins, fígado e outros órgãos. Problemas de saúde mental, dores ou fadiga não resolvidas, ou transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) após tratamento em unidades de terapia intensiva (UTI) têm sido relatados como muito frequentes entre pessoas que tiveram Covid-19. É possível que as taxas de mortalidade associadas a outras causas aparentes tenham crescido e continuarão a crescer como decorrência do Covid de longo prazo, e o isolamento e quantificação destes casos, vinculando-os indiretamente à pandemia, deveria ser pesquisado e revelado.e
Alguns problemas relatados por pacientes que
apresentam sintomas de Covid longo podem ser menores, mas muitos com esses
sintomas tem necessitado cuidados continuados e até readmissão no hospital. A
condição de Covid longa não afeta apenas pessoas que ficaram muito graves com a
doença, mas mesmo aqueles que só tiveram Covid suave e moderado vem apresentando
esses sintomas. Embora pessoas com certos fatores de risco (incluindo pressão
alta, tabagismo, diabetes, obesidade e outras condições) tenham maior
probabilidade de ter um surto grave de Covid-19 e uma maior predisposição ao
Covid longo, não há uma ligação clara entre esses fatores de risco e os
problemas associados ao Covid de longo prazo. Mais estudos são necessários para
avaliar por que as condições pós-Covid persistem em algumas pessoas,
independentemente da gravidade dos efeitos de sua exposição ao vírus.
Nessa perspectiva é quase certo de que a Covid
longa tenha emergido como uma doença crônica que estará presente e afetará as
condições de vida da população contaminada entre 2020 e 2022, bem como os novos
infectados pelo vírus ao longo dos próximos anos.
Perspectivas e Preparação
para 2023
Diante das perspectivas de crescimento do Covid-19 nos próximos meses, vários governos nos países de renda alta, inclusive os Estados Unidos, pretendem estender a emergência de saúde pública COVID-19, pelo menos, até a primavera de 2023, como anunciou a poucos dias o Presidente Joe Biden. Muitos países voltaram a aconselhar a população ao uso de máscaras em locais fechados e a evitar aglomerações.
Experiências bem-sucedidas mostram que reduzir
os efeitos da ameaça da COVID-19 à saúde pública requer abordagens integradas de
toda a sociedade com os governos, envolvendo líderes comunitários e
organizações confiáveis, especialistas de saúde, pesquisadores, empresas e
outros atores relevantes.
Ao mesmo tempo, sistemas de saúde rapidamente responsivos
são cruciais para evitar o crescimento da contaminação pandêmica, mas requerem
apoio governamental coordenado. O Brasil, ao longo de sua trajetória no combate
ao Covid-19, foi um dos países que apresentou uma mortalidade desproporcionalmente
alta frente ao número de casos do país, o que ocorreu pela lentidão em agilizar
testagem da população e pela demora na compra e suprimento de vacinas no ritmo adequado
ao crescimento da pandemia.
A persistência da demanda pandêmica exigirá que
os sistemas de saúde estejam preparados para atender os casos leves, moderados
e graves que surjam entre a população. Os primeiros, através da disponibilidade
de medidas de vigilância, controle social e disponibilidade de insumos e
medicamentos. Os demais, através da manutenção da funcionalidade dos sistemas
de atenção à saúde. Para tal, é necessário não apenas a proteção do bem-estar
físico e mental dos profissionais de saúde, mas também a certeza de que os
hospitais e unidades de saúde estarão devidamente dotados de equipamentos,
insumos e medicamentos para o tratamento, e que possam superar eventuais bloqueios
que surjam no âmbito da cadeia de suprimentos. É necessário fortalecer os
mecanismos de registro de casos, o atendimento na atenção primária e sua integração
com todos os níveis de atenção para a coordenação da resposta pandêmica, de
acordo com sua especialidade.
É necessário neutralizar forças adversas que
desafiam os esforços para acabar com a ameaça pandêmica, incluindo a
neutralização dos atores públicos que se demonstrarem abertamente antagônicos à
ciência e à saúde pública, que tenham interesses escusos em levar vantagens
pecuniárias com a compra de equipamentos, insumos e vacinas para a pandemia e
que disseminem informações falsas por razões políticas, religiosas ou
ideológicas. As autoridades públicas de saúde devem criar confiança entre a
população a partir de comunicações e fatos baseados em evidências e fazer
parceria com aqueles que monitoram e responsabilizam os disseminadores de
informações falsas.
Por fim, é necessário saber que ninguém está
seguro de isentar-se da pandemia enquanto todos não estiverem seguros. As
desigualdades pandêmicas devem ser minimizadas ou acabar. Isso inclui trabalhar
para que as inequidades sociais previamente existentes não sejam um fator
determinante de exclusão da proteção pandêmica. É necessário disponibilizar o
acesso de todos a vacinas, testes e suprimentos para a prevenção e medicamentos
para o tratamento, para que estejam acessíveis (inclusive monetariamente), para
os grupos mais vulneráveis, os mais pobres, idosos, imunocomprometidos, crianças
e profissionais e trabalhadores de saúde.
[1] Lazarus, J. et al, “A
multinational Delphi consensus to end the COVID-19 public health threat, Nature,
https://www.nature.com/articles/s41586-022-05398-2.
[2] Chen, J.I. (2022), Novel
statistics predict the COVID‐19 pandemic could terminate in 2022, J Med
Virol. 2022 Jun; 94(6): 2845–2848., Published online 2022 Feb 21. DOI: 10.1002/jmv.27661, Link: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC9088340/
[3] Diante do aumento do número
de mortes em fevereiro e em março de 2022 a China voltou a aplicar no país uma
política de intensos lockdowns, com fechamento de atividades econômicas, toque
de recolher e cercamento das pessoas em suas casas, conhecida como política de “Covid-Zero”,
dado que seu objetivo era zerar o número de casos e mortes relacionadas ao vírus
em pouco tempo, tal como ocorreu com os primeiros episódios da doença em fins
de 2019 e o primeiro semestre de 2020. Mas esta política nos últimos meses de
2022 tem levada a uma forte resistência e protestos da até então pacata
população chinesa, o que levou o governo a retirar em meados de dezembro de
2022 as restrições de mobilidade social e lockdown impostas no mês anterior.
[4] Dados do Institute of Health
Metrics and Evaluation (IHME) avaliam que, embora o número oficial de mortes reportadas
por Covid-19 tenha sido de 5699 até dezembro de 2021, o excesso de mortalidade
(não registrado) é estimado em 51932 mortes, o que leva a uma taxa de excesso
de mortalidade equivalente a 9,1 vezes.
[5] Embora 90% da população chinesa
tenha recebido alguma forma de vacinação contra a Covid-19, se estima que cerca
de 50% da população de mais de 60 anos somente recebeu as duas doses iniciais de
vacinas com menor efetividade, podendo resultar em falta de imunidade para
novas cepas, incluindo a Ômicron e suas variantes.
[6] Ver Cai et al. (2022), Modeling
transmission of SARS-CoV-2 Omicron in China, in Nature Medicine | VOL 28 |
July 2022 | 1468–1475 | Link: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/35537471/
[7] Chung, T et al (2022), Long
COVID: Long-Term Effects of COVID-19, in Johns Hopkins Medicine (on line
publication), updated on June 14, 2022, Link: https://www.hopkinsmedicine.org/health/conditions-and-diseases/coronavirus/covid-long-haulers-long-term-effects-of-covid19