sábado, dezembro 17, 2022

Em 2023 a pandemia do Covid-19 continuará a ser motivo de preocupação

Ano 17, No. 129, Dezembro de 2022

                                                                                                                                     André C. Medici

Introdução

Em meados de 2022, Jeffrey Lazarus, professor do Instituto de Salud Global da Universidade de Barcelona e seus colaboradores, empreenderam, através de um estudo Delphi, um esforço para sintetizar o estado da arte e as percepções de um painel com 386 especialistas internacionais (entre eles 5 brasileiros, no qual me incluo) sobre as tendências da pandemia do Covid-19. Em novembro de 2022 foi publicado na revista Nature um artigo[1] que reflete o consenso em relação as perspectivas da pandemia do Covid-19 para os próximos anos com base na opinião destes especialistas. Algumas das conclusões deste artigo estão refletidas nesta postagem.

Desde meados de novembro de 2022, o número de casos mundiais da Covid-19 voltou a crescer, passando de uma média móvel global de 332,7 mil, em 2 de novembro, para 532,1 mil, em 16 de dezembro, o que representa um aumento de quase 60% num período inferior a dois meses. Com os progressos na vacinação, especialmente nos países desenvolvidos que já disponibilizaram 5 doses de vacina, sendo a mais recente relacionada às variantes ômicron BA4 e BA5, o número de mortes, além de reduzido, têm se situado relativamente estável, como demonstra o gráfico abaixo.

 


O número de novos casos diários de Covid-19 está bem distante do pico de casos mundiais ocorrido no início da contaminação pela variante ômicron, quando atingiu uma média semanal diária de 3,4 milhões em 27 de janeiro de 2022, ou seja, quase sete vezes maior do que as médias semanais diárias registradas neste dezembro de 2022.  

É difícil saber quando a pandemia terminará e a vida voltará ao normal. Mas muitos estudos sugerem uma saída lenta da pandemia ao longo do próximo ano. Um estudo realizado por Chen (2022)[2] com base em análises de regressão não linear sobre variáveis como a mortalidade global e a taxa de letalidade do Covid-19 mostrou que a pandemia poderá terminar em breve, mas o COVID-19 pode ser uma ou duas vezes mais mortal que a gripe sazonal até 2023 e alguns países e regiões poderão continuar a apresentar crescimento nos números de casos e de morte, levando à possibilidade do surgimento de novas variantes. Analistas de empresas produtoras de vacinas, como a Pfizer, acreditam que a Covid-19 se tornará endêmica a partir de 2024, exigindo, como ocorre com a influenza, uma ou duas vacinas novas a cada ano atualizadas em função de novas variantes.

Como a imunidade de rebanho contra o Covid-19 se estabelece como uma mistura de infecções naturais e vacinação em massa, a qual é distinta entre os países, a pandemia pode ser mais ou menos letal em alguns países do que em outros nos próximos anos. A realidade é que o vírus SARS-CoV-2 ainda está presente ao nível mundial e poderá continuar a avançar em 2023, e muitos governos ainda envidam esforços e recursos para salvar vidas que poderiam ser perdidas pela pandemia. Existem regiões – e não somente nos países mais pobres - com condições de exposição ao vírus ainda precárias e alarmantes, onde podem surgir variantes preocupantes, com possível endemicidade, levando ao crescimento de casos graves, internações e mortes.

O que ocorre na China?

Para exemplificar, é provável que, depois da flexibilização da impopular política de “Covid Zero”[3] implantada nos últimos meses na China, como resultado de intensas pressões populares, venha a ocorrer uma nova explosão de casos de COVID-19 naquele país. Embora as estatísticas oficiais não reflitam necessariamente esta realidade[4], o gráfico abaixo mostra, depois de praticamente dois anos de calmaria, a ocorrência de dois picos de casos diários de Covid-19 na China em 2022, o primeiro nos meses de março e maio e o segundo em ao longo de novembro e dezembro.

 

A vulnerabilidade da China se deve ao fato de que, num país com grande parcela de idosos em sua população, a maioria se encontra subvacinada[5] e não há infraestrutura e disponibilidade de tratamentos hospitalares suficientes para todos, podendo levar, segundo especialistas, a centenas de milhões de novas infecções e a um número entre 1,5 e 2,0 milhões de novas mortes. Segundo estudos de Cai et al[6],  o nível de imunidade induzido pela campanha de vacinação de março de 2022 teria sido insuficiente para prevenir uma onda crescente de contaminação pela variante ômicron que exigirá 15,6 vezes mais capacidade de atendimento do que a existente nas unidades de cuidados intensivos do país, podendo causar, aproximadamente, 1,55 milhões mortes, com picos que podem chegar próximos a 400 mil mortes em abril de 2022. Baixos níveis de imunidade e uma avalanche de novos casos é uma receita explosiva para que a China venha a ser um celeiro de novas variantes do SARS-CoV2, a partir de 2023, e o mundo deverá estar preparado para enfrentar a afluência eventual de novas variantes.

A Relevância das Vacinas

 

Desde finais de 2020, o mundo avançou significativamente na geração de novas vacinas, com novas tecnologias, que produziram grandes reduções no risco e evitaram a ocorrência de casos graves e mortes em milhões de pessoas. As vacinas têm sido uma ferramenta crucial, mas sozinhas não acabarão com o COVID-19 como ameaça à saúde pública global. Vacinação, como estratégia única de resposta pandêmica, tem fortes limitações, devido a situações de escape imunológico, diminuição da imunidade, acesso desigual a vacinas e a itens de proteção pessoal, como máscaras e produtos de limpeza e desinfecção. Se soma a tudo isso, a resistência ideológica e cultural aos processos de vacinação baseada na falta de conhecimento ou em notícias falsas, muitas vezes introduzidas pelos próprios governos, como aconteceu em inúmeros países, incluindo os Estados Unidos, com Donald Trump, e o Brasil com Jair Bolsonaro.   

Na maior parte dos países, incluindo os ricos, tem se verificado a ausência de estratégias de imunização que combinem medidas de saúde pública com os processos de vacinação, incluindo vigilância epidemiológica, testes em massa para quem precisa, disponibilidade de tratamento, envolvimento da comunidade e implementação de medidas de prevenção social, como o uso mandatório de máscaras (especialmente em ambientes públicos fechados), isolamento de casos confirmados e intervenções estruturais como ventilação e filtragem do ar em domicílios e ambientes fechados.

As vacinas existentes ainda têm muitas limitações, como a perda de imunidade ao longo do tempo e a fraca capacidade de reagir às novas cepas virais. Serão necessárias mais pesquisas e avanços tecnológicos para que se possa desenvolver vacinas imunogênicas de longa duração, bem como novas formas de comunicação social, medidas de preparação da comunidade e de prevenção que sejam mais eficientes e focalizadas para evitar os efeitos negativos na economia e na sociedade de longos lockdowns generalizados, como ocorreu em muitos países, inclusive na China com sua política de Covid Zero.

Os Efeitos de Longo Prazo

 O impacto a longo prazo da infecção pelo SARS-CoV-2 é ainda pouco conhecido e deve ser avaliado de uma forma mais sistemática, dado que é estimado que uma proporção de até 30% das pessoas contaminadas pelo vírus poderão ter algum tipo de sequela. Em artigo recente publicado pela Johns Hopkins Medicine[7], vários efeitos de longo prazo foram observados como associados ao pós-Covid, tais como danos aos pulmões, coração, sistema nervoso, rins, fígado e outros órgãos. Problemas de saúde mental, dores ou fadiga não resolvidas, ou transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) após tratamento em unidades de terapia intensiva (UTI) têm sido relatados como muito frequentes entre pessoas que tiveram Covid-19. É possível que as taxas de mortalidade associadas a outras causas aparentes tenham crescido e continuarão a crescer como decorrência do Covid de longo prazo, e o isolamento e quantificação destes casos, vinculando-os indiretamente à pandemia, deveria ser pesquisado e revelado.e

Alguns problemas relatados por pacientes que apresentam sintomas de Covid longo podem ser menores, mas muitos com esses sintomas tem necessitado cuidados continuados e até readmissão no hospital. A condição de Covid longa não afeta apenas pessoas que ficaram muito graves com a doença, mas mesmo aqueles que só tiveram Covid suave e moderado vem apresentando esses sintomas. Embora pessoas com certos fatores de risco (incluindo pressão alta, tabagismo, diabetes, obesidade e outras condições) tenham maior probabilidade de ter um surto grave de Covid-19 e uma maior predisposição ao Covid longo, não há uma ligação clara entre esses fatores de risco e os problemas associados ao Covid de longo prazo. Mais estudos são necessários para avaliar por que as condições pós-Covid persistem em algumas pessoas, independentemente da gravidade dos efeitos de sua exposição ao vírus.

Nessa perspectiva é quase certo de que a Covid longa tenha emergido como uma doença crônica que estará presente e afetará as condições de vida da população contaminada entre 2020 e 2022, bem como os novos infectados pelo vírus ao longo dos próximos anos.

Perspectivas e Preparação para 2023

 Diante das perspectivas de crescimento do Covid-19 nos próximos meses, vários governos nos países de renda alta, inclusive os Estados Unidos, pretendem estender a emergência de saúde pública COVID-19, pelo menos, até a primavera de 2023, como anunciou a poucos dias o Presidente Joe Biden. Muitos países voltaram a aconselhar a população ao uso de máscaras em locais fechados e a evitar aglomerações.

Experiências bem-sucedidas mostram que reduzir os efeitos da ameaça da COVID-19 à saúde pública requer abordagens integradas de toda a sociedade com os governos, envolvendo líderes comunitários e organizações confiáveis, especialistas de saúde, pesquisadores, empresas e outros atores relevantes.  

Ao mesmo tempo, sistemas de saúde rapidamente responsivos são cruciais para evitar o crescimento da contaminação pandêmica, mas requerem apoio governamental coordenado. O Brasil, ao longo de sua trajetória no combate ao Covid-19, foi um dos países que apresentou uma mortalidade desproporcionalmente alta frente ao número de casos do país, o que ocorreu pela lentidão em agilizar testagem da população e pela demora na compra e suprimento de vacinas no ritmo adequado ao crescimento da pandemia.

A persistência da demanda pandêmica exigirá que os sistemas de saúde estejam preparados para atender os casos leves, moderados e graves que surjam entre a população. Os primeiros, através da disponibilidade de medidas de vigilância, controle social e disponibilidade de insumos e medicamentos. Os demais, através da manutenção da funcionalidade dos sistemas de atenção à saúde. Para tal, é necessário não apenas a proteção do bem-estar físico e mental dos profissionais de saúde, mas também a certeza de que os hospitais e unidades de saúde estarão devidamente dotados de equipamentos, insumos e medicamentos para o tratamento, e que possam superar eventuais bloqueios que surjam no âmbito da cadeia de suprimentos. É necessário fortalecer os mecanismos de registro de casos, o atendimento na atenção primária e sua integração com todos os níveis de atenção para a coordenação da resposta pandêmica, de acordo com sua especialidade.

É necessário neutralizar forças adversas que desafiam os esforços para acabar com a ameaça pandêmica, incluindo a neutralização dos atores públicos que se demonstrarem abertamente antagônicos à ciência e à saúde pública, que tenham interesses escusos em levar vantagens pecuniárias com a compra de equipamentos, insumos e vacinas para a pandemia e que disseminem informações falsas por razões políticas, religiosas ou ideológicas. As autoridades públicas de saúde devem criar confiança entre a população a partir de comunicações e fatos baseados em evidências e fazer parceria com aqueles que monitoram e responsabilizam os disseminadores de informações falsas.

Por fim, é necessário saber que ninguém está seguro de isentar-se da pandemia enquanto todos não estiverem seguros. As desigualdades pandêmicas devem ser minimizadas ou acabar. Isso inclui trabalhar para que as inequidades sociais previamente existentes não sejam um fator determinante de exclusão da proteção pandêmica. É necessário disponibilizar o acesso de todos a vacinas, testes e suprimentos para a prevenção e medicamentos para o tratamento, para que estejam acessíveis (inclusive monetariamente), para os grupos mais vulneráveis, os mais pobres, idosos, imunocomprometidos, crianças e profissionais e trabalhadores de saúde.



[1] Lazarus, J. et al, “A multinational Delphi consensus to end the COVID-19 public health threat, Nature, https://www.nature.com/articles/s41586-022-05398-2.

 

[2] Chen, J.I. (2022), Novel statistics predict the COVID‐19 pandemic could terminate in 2022, J Med Virol. 2022 Jun; 94(6): 2845–2848., Published online 2022 Feb 21. DOI: 10.1002/jmv.27661, Link: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC9088340/

 

[3] Diante do aumento do número de mortes em fevereiro e em março de 2022 a China voltou a aplicar no país uma política de intensos lockdowns, com fechamento de atividades econômicas, toque de recolher e cercamento das pessoas em suas casas, conhecida como política de “Covid-Zero”, dado que seu objetivo era zerar o número de casos e mortes relacionadas ao vírus em pouco tempo, tal como ocorreu com os primeiros episódios da doença em fins de 2019 e o primeiro semestre de 2020. Mas esta política nos últimos meses de 2022 tem levada a uma forte resistência e protestos da até então pacata população chinesa, o que levou o governo a retirar em meados de dezembro de 2022 as restrições de mobilidade social e lockdown impostas no mês anterior.

 

[4] Dados do Institute of Health Metrics and Evaluation (IHME) avaliam que, embora o número oficial de mortes reportadas por Covid-19 tenha sido de 5699 até dezembro de 2021, o excesso de mortalidade (não registrado) é estimado em 51932 mortes, o que leva a uma taxa de excesso de mortalidade equivalente a 9,1 vezes.

 

[5] Embora 90% da população chinesa tenha recebido alguma forma de vacinação contra a Covid-19, se estima que cerca de 50% da população de mais de 60 anos somente recebeu as duas doses iniciais de vacinas com menor efetividade, podendo resultar em falta de imunidade para novas cepas, incluindo a Ômicron e suas variantes.

 

[6] Ver Cai et al. (2022), Modeling transmission of SARS-CoV-2 Omicron in China, in Nature Medicine | VOL 28 | July 2022 | 1468–1475 | Link: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/35537471/

 

[7] Chung, T et al (2022), Long COVID: Long-Term Effects of COVID-19, in Johns Hopkins Medicine (on line publication), updated on June 14, 2022, Link: https://www.hopkinsmedicine.org/health/conditions-and-diseases/coronavirus/covid-long-haulers-long-term-effects-of-covid19

 

sábado, agosto 27, 2022

Além da Defasagem no Valor das Tabelas de Pagamento do SUS

Ano 17, Número 128, Agosto de 2022


Prezados amigos,

Este ano de 2022 vários fatores temporais me fizeram não ativar postagens nesse blog até o presente momento. Portanto, para meus seguidores, peço desculpas pelo silêncio e espero fazer algumas postagens ainda neste ano para retomar no próximo ano a todo o vapor.

Esta postagem é a íntegra de uma entrevista que dei para o jornalista Rafael Machado do site Futuro da Saúde, sobre o tema das tabelas de pagamento pelos serviços prestados ao SUS. Caso tenham interesse em ver a matéria publicada pelo Rafael Machado (no dia 26 de agosto de 2022), é só acessarem o link: https://futurodasaude.com.br/tabela-sus-hospitais-privados/

Segue a íntegra da entrevista. Boa Leitura.

 

Rafael Machado (RM) - Como se dá a relação da prestação de serviços dos hospitais privados e filantrópicos pelo SUS?

 

André Medici (AM) - A Constituição de 1988 e a legislação posterior definiram que a participação do setor privado no SUS teria um caráter complementar, devendo ser formalizada através de contrato ou convênio. A legislação definiu que as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos teriam prioridade na contratação pelo SUS. No entanto, este processo de formalização dos contratos do SUS com os hospitais privados tem avançado lentamente e necessita de muitas discussões e precisões para que de fato funcione.

A complementaridade do SUS por serviços prestados por hospitais privados lucrativos ou filantrópicos, demandaria melhor regulação e novos arranjos e definições jurídicas. O que tem ocorrido praticamente, na maioria dos casos, é que as especialidades médico-assistenciais não disponíveis na rede pública de alguma localidade ou região, mas existentes na rede privada, acabam sendo contratadas pelos governos estaduais e municipais e remuneradas com recursos públicos, sem um contrato de longo prazo, o que leva a tratamentos incompletos e falta de continuidade para o paciente. Os contratos em geral são precários e baseados em pagamentos pontuais por unidades de serviço (tipo fee-for-service) com tabelas que tem uma defasagem histórica em relação aos custos reais.  

Considerando-se a existência de cerca de 24 mil estabelecimentos privados de saúde no Brasil, cerca de 47% deles prestava, em 2021, algum serviço para o SUS, mas muito deles o faziam de forma esporádica e intermitente. Mas pode-se dizer que a quase totalidade dos hospitais privados tem ou já teve algum tipo de contrato, ainda que precário, com o SUS.

Há muitos tempo que as autoridades públicas tem tentado definir alguns tipos de relações mais estáveis com os hospitais privados. Por exemplo, desde finais dos anos noventa, o SUS iniciou algumas experiências de contratualização, estendidas a hospitais privados filantrópicos, mas também privados (incluindo hospitais universitários), através de convênios, contratos de prestação de serviços, consórcios públicos, contratos organizativos da ação pública, organizações sociais de saúde (OSS), fundações de direito privado, e muitas outras formas.

Uma vantagem destas novas formas de relação contratual é que elas se baseiam em metas quantitativas e qualitativas de atenção à saúde ou gestão hospitalar a serem alcançadas no atendimento aos pacientes do SUS, estabelecendo alguns mecanismos correspondentes de monitoramento e avaliação. Mas apesar dessa diversidade recente, a realidade não é tão doce.

Segundo os dados existentes, somente 1.034 hospitais recebiam recentemente o chamado Incentivo de Adesão à Contratualização, como um valor financeiro adicional que gera uma série de vantagens para o hospital e também para o gestor, como acesso a linhas de crédito para investimento hospitalar do BNDES, por exemplo. Mas este processo ainda atende marginalmente à rede de hospitais privados contratados pelo SUS e a maioria dos atendidos se encontra nas capitais, grandes cidades e estados mais ricos do país.

Segundo dados do Ministério da Saúde (CNES), em dezembro de 2021, dos 6411 hospitais existentes no Brasil, 58,3% eram privados ou filantrópicos. Se considerarmos o número de leitos de internação, a proporção de privados ou filantrópicos era ainda maior (60% em junho de 2021, segundo o CNES). Em circunstâncias como essas, um sistema de saúde que pretende ser de cobertura universal, como o SUS, não pode deixar de atender a maior parte da população brasileira sem contar com a rede hospitalar privada. Portanto, seria de grande importância criar um modelo de contratação de hospitais privados que atendesse de forma mais direta a essa população, remunerando adequadamente o prestador privado e zelando pela sua eficiência, pelo seu esmero em atender a população SUS e pela sustentabilidade e solvência desses hospitais à longo prazo.

RM - Existe uma grande crítica sobre a tabela SUS estar defasada. Quais as dificuldades para ela ser atualizada?

 

AM - Criticar a defasagem da tabela do SUS é um processo de longa data, mas tem se mostrado inconsequente. Muito além da tabela defasada, o grande problema é o sistema de pagamento pelos serviços que os hospitais privados prestam ao SUS.  Existem três grandes entidades pagadoras aos prestadores privados pelo SUS: o governo federal, os governos estaduais e os governos municipais. O governo federal paga aos hospitais pela remuneração por serviços produzidos (por unidade de serviço computada pelas autorizações de internação hospitalar). Os demais governos, além de pagar com seus próprios recursos, recebem transferências do Fundo Nacional de Saúde aos Fundos Estaduais e aos Fundos Municipais de Saúde e, com esses recursos, pagam os hospitais por distintos processos, desde os mais racionais, como os contratos com as OSS, onde os recursos se transferem aos hospitais via o cumprimento de metas ou resultados, até os pagamentos tradicionais por unidades de serviço que utilizam as tabelas do SUS.

Como os pagamentos via tabela constituem a maioria das formas de pagamento, os hospitais privados e filantrópicos acabam sendo vítimas do desfinanciamento do SUS e da defasagem dos valores. Um estudo do Conselho Federal de Medicina (CFM) mostrava que em 2015 – ano em que o governo Dilma Rousseff trouxe uma das maiores crises no financiamento do SUS - o valor médio dos procedimentos pagos pela tabela federal do SUS, que compreende 4600 procedimentos, representava 23% dos valores pagos em 2009. Dos 1500 procedimentos hospitalares do SUS, 74% não tiveram seus valores reajustados de acordo com os índices de preço naquele ano. Mas os Estados e Municípios tem liberdade de adotar tabelas diferentes da federal, e alguns estados muitas vezes fazem acréscimos nestes valores ou adotam processos diferentes de contratação e pagamento.

Na verdade, a defasagem das tabelas do SUS é somente a ponta do iceberg. Os processos de remuneração via pagamento por unidade de serviço através da tabela do SUS enredam uma situação de grande ineficiência que acaba levando a subprestação de serviços ou à entrega de serviços de baixa qualidade.

A principal dificuldade para atualizar a tabela de pagamento dos serviços hospitalares são os escassos recursos que dispõe o SUS. Diante de um processo de envelhecimento da população e crescimento das demandas associadas a doenças crônicas que dominam largamente o panorama epidemiológico brasileiro, os gastos hospitalares tendem a crescer em proporção maior do que a inflação e do que os escassos recursos disponíveis ano a ano para o financiamento do SUS.

Mas simplesmente ter mais recursos para atualizar a defasagem das tabelas não seria uma solução para o problema, dado que existe uma falência do modelo de organização dos serviços e, associado a isto, uma falência dos modelos atuais de remuneração dos hospitais públicos e privados.

RM - Como os hospitais seguem conseguindo prestar esses serviços, mesmo recebendo menos do que gastam?

AM - O impacto da defasagem das tabelas do SUS é diferenciado de acordo com o tipo, tamanho, localização, densidade tecnológica e diversificação de suas fontes de financiamento. Hospitais de grande porte que prestam serviços ao SUS costumam selecionar os atendimentos que fazem. Quando estes hospitais prestam serviços de alta densidade tecnológica e procedimentos de alto custo, eles têm, junto ao Ministério da Saúde, poder de barganha e negociação para garantir pagamentos mais próximos dos valores de mercado.

Os hospitais de grande porte também dispõem de estratégias para atender diferentes mercados e, em geral, o SUS representa uma parcela muito pequena de suas receitas e dos serviços que prestam. Ao mesmo tempo, muitos deles também assinam convênios com os governos estaduais e dos grandes municípios que lhes garantem formas diferenciadas de contratação e remuneração, quando prestam serviços ao SUS, como ocorre com os hospitais privados que se beneficiam dos programas PROADI-SUS.

Já os hospitais de pequeno e médio porte, especialmente aqueles nos estados e municípios com menos recursos, passam a viver na corda bamba com os recursos que recebem, dada sua alta dependência das tabelas SUS e muitas vezes podem ser até mesmo obrigados a fechar suas portas. Os filantrópicos buscam aumentar a ajuda de seus patrocinadores, através de doações e os lucrativos buscam diversificar suas fontes de receita e obter receitas extraordinárias, como por exemplo venda de medicamentos, ou acabam se integrando a outros hospitais de maior porte e com receitas da saúde suplementar complementares, através de movimentos de fusões e aquisições.

Mas muitas vezes isto não é suficiente para evitar a falência desses hospitais. Para exemplificar, entre Dezembro de 2011 e Dezembro de 2021, o número de hospitais privados filantrópicos se reduziu de 1930 para 1789 e o de hospitais privados lucrativos se reduziu de 2216 para 1946 no mesmo período. Ou seja, como boa parte dos pequenos e médios hospitais dependem do financiamento das tabelas do SUS, se pode dizer que em 10 anos a defasagem das tabelas de pagamento levou, ainda que parcialmente, a uma redução de 7,3% do número de hospitais filantrópicos e de 12,2% do número de hospitais privados lucrativos no país. Mas pode-se pensar, por outro lado, que uma racionalização nos sistemas de pagamento e na organização dos fluxos de pacientes não necessitaria de tantos hospitais de pequeno porte os quais, em geral, costumam ter baixas taxas de ocupação de leitos e serem mais ineficientes na gestão de sua infraestrutura e resultados assistenciais.

RM - Existem alternativas para essa prestação de serviços não ser interrompida, como a adoção de programas que façam parcerias públicos-privadas (através de renúncia fiscal como pelo PROADI-SUS, por exemplo)?

AM - Mais do que pensar em alternativas, o que é necessário é redefinir os processos de organização dos serviços e o modelo de financiamento. Os Estados e Municípios que utilizam os recursos do SUS pela contratação de hospitais privados através de programas como PROADI-SUS, organizações sociais ou contratos de longo prazo tem tido melhores resultados em suas estratégias, mas não há ainda nenhum desenho ou master-plan voltado para mudar a realidade brasileira de como o SUS contrata os hospitais num sentido definitivo.

A gestão dos recursos do SUS deve buscar estratégias mais eficientes, independentemente dos recursos que dispõe, ou seja, os recursos são poucos, mas a gestão é cada vez mais sofrível e insipiente, e isso não pode continuar assim. Novos modelos de gestão do SUS deveriam estar baseados em parcerias público-privadas e no estabelecimento de formas de pagamento por patologia, associados a linhas de cuidados, ao desempenho ou a performance em termos do alcance de resultados e da geração de valor para o paciente. Com isso aumentaria o uso de soluções associadas a promoção, prevenção e atenção ambulatorial, bem como o uso da telemedicina e das soluções digitais para consultas aos pacientes. Além do mais, se eliminariam os desperdícios, como as internações desnecessárias ou sensíveis à atenção primária. Todas essas estratégias são necessárias para uma gestão mais eficiente, mas são incompatíveis com o modelo de financiamento por unidade de serviço utilizado majoritariamente pelo SUS.

RM - A forma que o SUS distribui o orçamento tem impacto nessa questão? É preciso rediscutir o modelo? E o financiamento?

AM - Certamente a redefinição do modelo é crucial e vale a pena discutir o porquê. Uma das maiores aspirações da população brasileira é ter um plano de saúde suplementar que possa dar garantia a sua família ter uma cobertura de saúde adequada, especialmente em épocas de crise pandêmica como a que ainda estamos passando. Porque? Porque sabem que o SUS muitas vezes não lhes oferece a atenção médica associada a como, aonde e quando precisam. Mas cerca de ¾ dos brasileiros não tem recursos para ter um plano privado da saúde suplementar, tendo que ser atendida através do SUS. Nessas circunstâncias, o SUS enfrenta dois tipos de problemas: o do financiamento e o da gestão.

No que se refere ao financiamento público, o Brasil gasta aquém do que deveria para financiar um sistema de saúde que se pretende universal. Segundo dados do Anuário da ANAHP de 2022, dos 9.5% do PIB que o Brasil gastou em saúde em 2021, apenas 47% corresponderam aos gastos públicos, enquanto que em países da OCDE, com gasto similar como proporção do PIB, esse percentual é da ordem de 60% a 70%. E estamos falando de anos atípicos, onde o gasto público em saúde aumentou por conta da pandemia.

Mas além disso, existe o problema de gestão. O gasto público de saúde é administrado com grande ineficiência, por ser em sua maioria, baseado em gestão centralizada da administração pública direta do governo, com processos antiquados, estrutura rígida e pouco flexível, funcionários públicos estáveis no emprego e sem motivação para o trabalho, onde as regras de boa governança e bom governo não funcionam. Frequentemente as licitações envolvem corrupção e desvios de finalidade orçamentária e há escassez de insumos básicos, remédios, equipamentos e suprimentos mínimos para que um hospital público possa funcionar com eficiência e até mesmo com decência.

Por esta razão, ainda que disponham de uma grande quantidade de leitos, os hospitais públicos costumam ter uma enorme capacidade ociosa, com muitos leitos fechados por conta de falta de insumos, de equipamento e de pessoal.  Para exemplificar, no início da pandemia (abril de 2020) estimava-se somente o Município do Rio de Janeiro tinha cerca de 1800 leitos desativados nos hospitais públicos municipais.

É lógico que existem exceções a esta regra, tanto ao nível dos Estados como de alguns Municípios, mas elas não justificam os desvios e a má utilização de recursos públicos. Em geral, os Estados e Municípios que melhor administram os recursos do SUS são aqueles que realizam contratos de gestão com hospitais e redes privadas ou filantrópicos, os quais, ainda que recebam valores muito aquém dos recursos que gastam com os pacientes do SUS por contarem com orçamentos limitados em seus contratos, procuram administrar os escassos recursos de forma mais eficiente que os hospitais públicos da administração direta. Muitas vezes estes hospitais privados ou filantrópicos subsidiam os pacientes dos contratos do SUS com recursos que recebem de doações e caridade ou de seus próprios excedentes operacionais, como ocorre com os hospitais filantrópicos e mesmo com muitos hospitais privados lucrativos. O SUS, portanto, depende muito destes estabelecimentos privados contratados e filantrópicos.

Rediscutir o modelo de remuneração do SUS com os estabelecimentos privados é condição sine-qua-non para equacionar o dilema da oferta de serviços públicos de saúde para a população brasileira e garantir um modelo efetivo de universalização de cobertura com qualidade. Mas não existe uma receita mágica. O uso de DRGs, de processos de capitação ou de pagamentos por pacotes (bundle payments) isoladamente podem não levar aos melhores resultados. É necessário avaliar riscos, definir processos e desenhar os modelos de remuneração que mais se adequem a cada situação específica, mas dentro de um menu de soluções racionais e testadas.

Soluções como a transferências em bloco de recursos associados a contratos negociados com redes de saúde privadas com metas de qualidade, compromissos de recuperação dos custos e premiação por resultados, como ocorre no caso das Accountable Care Organizations (ACOs) adotadas nos Estados Unidos após o plano Obama, têm sido replicados em outros contextos internacionais com resultados positivos (ver a entrevista de Maureen Lewis na edição 94, de maio de 2019, deste blog). Elas envolvem riscos que são compartilhados entre os prestadores e os financiadores, o que é diferente do modelo de pagamento por unidade de serviço, onde todo o risco recai sobre o financiador e não sobre o prestador. E quando existem riscos, é importante que o compromisso com a eficiência, melhorando os resultados e reduzindo desperdícios, esteja presente na negociação dos contratos para que esses ganhos possam ser maximizados para a população e eventuais perdas injustificadas possam ser minimizadas para os hospitais contratados.

 

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