terça-feira, abril 18, 2023

Os Primeiros 100 dias do Terceiro Governo Lula na Área de Saúde

 Ano 18, No. 133, Abril de 2023


André Medici e Joaquim Cardoso

Porque os Primeiros 100 dias São Importantes na Área da Saúde?

A Grande Depressão da década de 1930 foi o cenário em que um presidente inaugurou o uso da expressão “primeiros 100 dias” para abordar o progresso inicial de seu governo. Tratava-se de Franklin Delano Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, que em um discurso radiofônico em 1933, destacou como seu governo estava conduzindo o plano de combate à crise americana do século, prometido durante sua campanha política à presidência. Ele demonstrou apoio político ao cumprimento de suas promessas, aprovando nas sessões do Congresso projetos de lei essenciais ao longo dos primeiros 100 dias de seu governo. Entre eles, políticas monetárias keynesianas destinadas romper com o “padrão-ouro” de convertibilidade utilizado pelo país e a adoção de programas de alívio ao desemprego, através de obras públicas. Franklin Roosevelt aprovou 76 leis e emitiu 99 ordens executivas em seus primeiros 100 dias - recorde que ainda permanece na história americana[1].

A democracia exige dos governos demonstrações sólidas sobre como estão conduzindo seus deveres para cumprir as promessas de campanha política. Desde a iniciativa de Roosevelt, outros presidentes eleitos, não apenas nos Estados Unidos, mas em muitas democracias ocidentais, tentaram imitar esse sucesso usando seus primeiros 100 dias para vocalizar sobre o cumprimento de promessas de campanha num momento em que seus índices de aprovação normalmente são os mais altos.

Porém, como comprovar avanços nos primeiros 100 dias em setores específicos, como o da saúde? Este exercício deve começar antes do governo ser lançado, ou ainda durante a campanha. Para melhorar o desempenho do sistema de saúde, os formuladores de políticas devem ter, como ponto de partida, um diagnóstico situacional claro para entender quais são as lacunas e quais áreas requerem priorização e alocação de recursos. Isso pode ser alcançado por meio de monitoramento e avaliação regular dos sistemas de saúde, o que é essencial para contar, de forma sistemática, com dados e informações relevantes para a elaboração de diagnósticos.

Também requer ouvir e dialogar com as principais partes interessadas do setor de saúde, buscando entender suas perspectivas, estratégias e formas de colaboração. Ambos – avaliação dos sistemas de saúde e diálogo com as partes interessadas – são essenciais para determinar quais são os pontos fortes, pontos fracos, oportunidades e ameaças atuais para a implementação das ações de saúde a serem priorizadas em um novo governo.

A definição de metas do sistema de saúde ao longo da campanha política é um passo crítico para promover uma análise mais aprofundada do desempenho dos governos anteriores, pois fornece uma estrutura para avaliar os resultados e definir as principais metas de saúde, tais como melhorar os resultados assistenciais, priorizar as necessidades dos pacientes, promover a equidade, garantir o financiamento justo e aumentar a eficiência.

Ao avaliar o desempenho de cada componente do sistema de saúde e identificar áreas de melhoria, os formuladores de políticas poderão desenvolver estratégias para fortalecer o sistema e atingir as metas propostas. Isso ressalta a relevância em realizar avaliação e monitoramento, de forma contínua, para garantir que os esforços de fortalecimento do sistema de saúde alcançarão melhorias efetivas nos resultados de saúde.

O Papel da Avaliação de Desempenho do Sistema de Saúde nos Primeiros 100 días de Governo

 

Para ajudar os governos a fortalecer seus sistemas de saúde, é crucial realizar avaliações sólidas de desempenho dos sistemas de saúde que possam subsidiar as discussões sobre políticas, a tomada de decisões e o desenvolvimento e implementação de estratégias de saúde. Essas avaliações também desempenharão um papel cada vez mais importante na orientação das respostas governamentais e na solução sistemática de problemas para melhorar o desempenho das políticas de saúde.

Atualmente, existem ferramentas disponíveis para avaliar a capacidade e resposta das políticas sanitárias tendo em vista alcançar a cobertura universal de saúde, como é proposto há mais de 30 anos, mas até agora não alcançado, pelo Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro.

Em 2017, foi criado sob a liderança da Organização Mundial de Saúde (OMS), um Grupo de Trabalho Técnico para alcançar a Cobertura Universal de Saúde até 2030 (UHC2030-TWG), reunindo especialistas e discutindo soluções entre as diversas partes interessadas. O TWG procurou desenvolver e implementar uma metodologia para gerar avaliações eficazes do sistema de saúde que possam informar e orientar os formuladores de políticas em seus esforços para melhorar os resultados de saúde para suas populações.

Essa iniciativa resultou na criação do modelo Health System Performance Assessment (HSPA), que fornece uma representação conceitual de como as avaliações dos sistemas de saúde podem contribuir para a melhoria do desempenho dos sistemas de saúde visando a cobertura universal de saúde. O modelo HSPA preenche a lacuna existente entre a avaliação de sistemas de saúde e o desempenho do sistema de saúde, adotando uma abordagem em três frentes para lidar com os gargalos de fragmentação, financiamento e desempenho. Esta abordagem oferece novas oportunidades para analisar o desempenho dos sistemas de saúde de forma mais eficaz e coordenada, fornecendo uma base para uma ação mais coesa e eficiente.

Em geral, o modelo HSPA oferece uma maneira abrangente de avaliar o desempenho dos sistemas de saúde e encontrar nichos para sua melhoria, ajudando a organizar informações precisas para uma tomada de decisão mais eficaz e para o alcance de melhores resultados de saúde e maiores progressos em direção à cobertura universal de saúde.

A Figura 1 mostra o fluxo de relações entre as funções e subfunções, os objetivos intermediários e os objetivos finalísticos dos sistemas de saúde. O modelo é construído em torno de quatro funções críticas do sistema de saúde, necessárias para atingir as metas de universalização de cobertura: (1) governança, (2) financiamento, (3) geração de recursos e (4) entrega de serviços. A figura ilustra, também, quais são os principais vínculos estruturais e funcionais (linhas cheias) e de desempenho (linhas tracejadas) entre as funções e subfunções, assim como entre os objetivos intermediários e finais.



Figura 1 – O Modelo de Avaliação do Desempenho dos Sistemas de Saúde (HSPA) para a Cobertura Universal de Saúde


Fonte: UHC2030, link:  https://www.uhc2030.org/fileadmin/uploads/uhc2030/Documents/About_UHC2030/UHC2030_Working_Groups/2017_Health_Systems_Assess_Working_Group/HSPA_Framework_for_UHC.pdf

 

Os objetivos intermediários consistem na efetividade, segurança, acesso e bons resultados na experiência do paciente, com base na eficiência e na equidade. Tudo isso, num marco geral de garantia de qualidade na entrega de serviços. Já os objetivos finalísticos são a construção de um sistema centrado nas pessoas, buscando a melhoria do estado de saúde e a proteção financeira de todos, dentro de parâmetros globais de eficiência e equidade, não apenas na entrega de serviços, mas no funcionamento de todos os sistemas de saúde.

A Estrutura do modelo HSPA baseia-se na premissa de que qualquer exercício de avaliação deveria coletar informações sistemáticas para avaliar tanto as funções do sistema de saúde quanto o grau de alcance de suas metas de desempenho. Ela descreve a finalidade de cada função do sistema de saúde, as subfunções necessárias para cumprir essa finalidade e as áreas para avaliar o desempenho da função. Essa estrutura inovadora vincula conceitualmente as funções do sistema de saúde aos objetivos intermediários e finais do sistema de saúde. Ao usar essa abordagem, os formuladores de políticas podem encontrar e analisar melhor as causas potenciais ou o impacto de um bom ou mau desempenho nos resultados específicos dos sistemas de saúde.

Quais são as necessidades de reformas do sistema de saúde brasileiro?

 

Os principais problemas do sistema de saúde brasileiro são estruturais, mas poderiam ser enfrentados por meio de soluções técnicas reconhecidas e aprovadas internacionalmente. Organismos internacionais têm antevisto esses problemas e proposto soluções para a reforma do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro nas últimas décadas. O Banco Mundial, por exemplo, lançou em 2019 um documento propondo uma agenda de reforma do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro[2], baseada em quatro tipos de reforma:

(i) Reformas do lado da oferta: racionalização da prestação de serviços ambulatoriais e hospitalares, expansão da cobertura da atenção primária para toda a população, autonomia do prestador de serviços de saúde e melhoria da qualidade administrativa e eficiência por um modelo de gestão baseado em organizações sociais de saúde (OSS).

(ii) Reformas do lado da demanda:  uso de gatekeepers na atenção primária à saúde como forma de organizar o fluxo de pacientes, uso de guias clínicas e protocolos de saúde baseados em evidências; implementação de um pacote definido de benefícios para o SUS que possa ser expandido progressivamente com os avanços técnicos e capacidade de financiamento.

(iii) Reformas de Gestão: estabelecimento de redes integradas de atenção à saúde definidas segundo áreas geográficas e melhor coordenação e integração entre os setores público e privado dentro de cada uma das redes integradas. Integração entre o SUS e a saúde suplementar, como forma de racionalizar a cobertura e focalizar os recursos do SUS em suas maiores carências.

(iv) Reformas no Financiamento da Saúde: recursos suficientes para o alcance de metas pactadas de saúde, definição de fluxos de financiamento centrados nas necessidades dos doentes, eliminação de desperdícios e gastos não associados às metas definidas do sistema e utilização de sistemas de pagamento dos prestadores públicos e privados orientados por resultados e desempenho.

No entanto, dada a divisão política e ideológica e um forte conflito de interesses dentro do ambiente institucional do setor de saúde brasileiro, tem sido difícil conseguir que a maioria dessas reformas sejam decididas, planejadas e executadas sem haver um lento e demorado processo de negociação, muitas vezes com idas e vindas ao longo das mudanças de orientação de governo. Os maiores problemas estruturais do Sistema Único de Saúde (SUS) no contexto das eleições presidenciais de 2022 são:

(a) acesso universal incompleto aos cuidados de saúde de qualidade. Altas desigualdades regionais agravadas por uma frágil cultura de promoção, prevenção e atenção primária, que deveria ser fortalecida e implementada como espinha dorsal do sistema, a fim de evitar o ainda prevalente modelo hospitalocêntrico. Essa situação foi agravada pela pandemia, onde houve reduções significativas no acesso aos atendimentos ambulatoriais e hospitalares do SUS ao longo de 2020-2022;


(b)  capacidade insuficiente de preparação para emergências sanitárias, conforme demonstrado ao longo da pandemia de Covid-19, e a necessidade de revisar as diretrizes atuais de preparação para pandemias (incluindo aquelas relacionadas à disponibilidade de insumos médicos, equipamentos de proteção individual, vacinas e medicamentos) e adotar, em futuras pandemias, soluções rápidas e seguras que minimizem os efeitos negativos que podem prejudicar o fluxo regular de funcionamento da economia e da sociedade;

 

(c)   escassez de redes de saúde estruturadas para organizar o fluxo de cuidado e integrar os níveis de atenção (primário, secundário, terciário), estabelecendo portas definidas de entrada no sistema, referências e contrarreferências de serviços e processos de cuidado contínuo entre todos os níveis e especialidades, centrados nas necessidades dos pacientes e não apenas de acordo com a conveniência dos serviços;

 

(d)    falta de financiamento público em níveis adequados para o SUS, agravada a partir a crise de econômica de 2015, e associada à ineficiência do gasto público com políticas de saúde. Segundo pesquisa do Banco Mundial, a ineficiência do financiamento do SUS tem resultado no desperdício anual de 0,3% do PIB em recursos públicos;

 

(e)    falta de ferramentas para transformar informações abundantes hoje disponíveis nos sistemas públicos e privados de saúde em métricas, indicadores e análises para oferecer decisões tecnicamente precisas sobre políticas, metas de resultado, alocação de recursos e avaliação do alcance do sistema;

 

(f)      falta de vontade política para melhorar os mecanismos de formação profissional, contratação, treinamento e remuneração dos profissionais de saúde, com vistas a criar um compromisso na avaliação dos resultados e na definição de objetivos e metas com qualidade, diligência e eficiência;

 

(g)    falta de uma articulação sólida, flexível e fluida da oferta de serviços públicos e privados e entre o SUS e a saúde suplementar, para maximizar a eficiência e evitar o desperdício de recursos públicos e privados no setor, usando toda a estrutura de saúde disponível em cada área geográfica e evitando a construção de infraestrutura desnecessária;

 

(h)    estabelecimento de uma definição operacional do conceito constitucional de integralidade da saúde para evitar o desperdício de recursos públicos com judicialização desnecessária contra o SUS e contra a saúde suplementar.

O que Lula Prometeu para a Saúde em sua Campanha?

 

Ao longo da campanha política de Luiz Ignacio Lula da Silva para 2022, seu programa denominado Coalizão Brasil Esperança – um documento de 19 páginas – dedicou apenas dois parágrafos para tratar de suas promessas ao SUS e ao setor saúde, como pode ser visto abaixo:

A saúde, o direito à vida e o Sistema Único de Saúde (SUS) têm sido tratados com descaso pelo atual governo. Faltam investimentos, ações preventivas, profissionais de saúde, consultas, exames e medicamentos. É urgente dar condições ao SUS para retomar o atendimento às demandas que foram represadas durante a pandemia, atender as pessoas com sequelas da covid-19 e retomar o reconhecido programa nacional de vacinação. Não fossem o SUS e os corajosos trabalhadores e trabalhadoras da saúde, a irresponsabilidade do atual governo na pandemia teria custado ainda mais vidas.

 

Nos governos Lula e Dilma, a saúde foi tratada como uma política pública central, como um direito de todos os brasileiros e brasileiras e como um investimento estratégico para um Brasil soberano. Reafirmamos o nosso compromisso com o fortalecimento do SUS público e universal, o aprimoramento da sua gestão, a valorização e formação de profissionais de saúde, a retomada de políticas como o Mais Médicos e o Farmácia Popular, bem como a reconstrução e fomento ao Complexo Econômico e Industrial da Saúde.

 

Em comparação com outras áreas da campanha de Lula, a saúde foi um dos setores menos expressivos de todo o Programa Brasil Esperança[3]. Nenhuma doença específica ou desigualdade social foi apontada como alvo a ser combatido. O primeiro desses dois parágrafos destacou a situação frágil do SUS diante da pandemia de Covid-19, mas o Programa não mencionou números ou metas quantitativas para reduzir os altos níveis de carga de doenças que atingem os pobres. As iniciativas de saúde contempladas no Programa a serem implementadas após as eleições foram: (i) atendimento à demanda de saúde represada durante a pandemia de Covid-19; (ii) assistência a pessoas com sequelas de Covid-19; (iii) a retomada do reconhecido programa nacional de imunizações, (iv) a volta do Programa Mais Médicos (v) a volta da Iniciativa Farmácia Popular e (vi) a promoção do complexo econômico e industrial da saúde. Algumas dessas iniciativas foram de alguma forma implementadas durante os últimos governos Lula e Dilma em cores fortes ou suaves e merecem ser detalhadas.

O Programa Mais Médicos foi criado em julho de 2013, durante o governo Dilma Rousseff, com o objetivo de contratar 18.200 médicos (63% de Cuba) para atender os municípios mais pobres do Brasil. O Programa, feito a toque de caixa, não foi bem elaborado, uma vez que não tinha metas e objetivos claros nem uma lista bem desenhada com os municípios que seriam beneficiados. Assim, entre 2013 a 2016, o Programa teve um misto de bons e maus resultados. Relatório elaborado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em 2017 apontou que, apesar de falhas administrativas e de prestação de contas, houve aumento no número de atendimentos médicos prestados aos municípios beneficiados pelo Programa. No entanto, 26% dos municípios mais pobres não foram atendidos por médicos, ao lado de outros municípios não prioritários que receberam médicos do Programa. Diante dessa situação, o Programa Mais Médicos pouco impacto teve na redução da desigualdade no acesso à atenção básica em comparação com outras iniciativas previamente existentes que deveriam ser universalizadas, como o Programa Saúde da Família (PSF).

Alguns problemas de concepção do Programa foram corrigidos durante o governo de Michel Temer, melhorando parcialmente seu desempenho. Após a eleição de Jair Bolsonaro (presidente do Brasil de 2019 a 2022), o Programa mudou seu nome para Programa Médicos pelo Brasil, sendo reestruturado com a promessa de contratar mais 18.000 médicos. Porém, durante este governo, principalmente após a pandemia de Covid-19, o Programa Mais Médicos perdeu força e suporte financeiro, dispensando 8 mil médicos. O Programa Médicos pelo Brasil, por outro lado, nunca foi implementado pelo governo Bolsonaro.

O Programa Farmácia Popular foi criado em 2004 (Primeiro Governo Lula), com o objetivo de garantir o tratamento de doenças por meio de medicamentos gratuitos ou com desconto. A iniciativa foi bem desenhada e teve bons resultados. Através do Programa, o Ministério da Saúde paga parte do preço do medicamento (até 90% dos valores de referência) e o cidadão paga o restante, de acordo com o preço cobrado pela farmácia. No entanto, o programa apresenta falhas e dificuldades no processo de aquisição e distribuição de medicamentos e sofreu descontinuidades no Governo Bolsonaro. Em 2022, o programa Farmácia Popular atendeu cerca de 20 milhões de pessoas, o que representa 9 milhões de atendimentos a menos do que o registrado em 2015. Segundo especialistas, o orçamento do Programa para 2023 é três vezes menor que a necessidade de medicamentos da população nas modalidades de atendimento gratuito e subsidiado.

O Complexo Industrial da Saúde é constituído pelos setores industriais de base química e biotecnológica (medicamentos biológicos, sintéticos e semissintéticos, vacinas, insumos farmacêuticos ativos e reagentes diagnósticos), de base mecânica, eletroeletrônica e de materiais (dispositivos médicos) e serviços de saúde que estabelecem relações institucionais, econômicas e políticas voltadas para a inovação e produção em saúde. Desde o primeiro governo Lula existem medidas práticas para fortalecer o complexo industrial da saúde. No entanto, o governo Bolsonaro reforçou a relevância desse tema ao criar em julho de 2022 (Decreto nº 11.098) o Departamento do Complexo Industrial e Inovação em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (DECIIS/SCTIE/ MS), o qual teve como objetivo propor, implementar e avaliar políticas, programas e ações definidas pela estratégia nacional de promoção, fortalecimento, desenvolvimento e inovação do Complexo Industrial da Saúde.

No entanto, a maioria dos problemas estruturais do SUS não foram mencionados pelo Programa Brasil Esperança. Assim, as propostas de saúde do governo Lula para as eleições de 2022 não contemplaram a maioria das necessidades urgentes de reforma discutidas pelas autoridades e especialistas em saúde no Brasil[4].

 

O que o Governo Lula Implementou na Saúde nos Primeiros 100 dias de seu Terceiro Governo?

Ao longo dos primeiros 100 dias do governo Lula, findos em 10 de Abril de 2023, o Ministério da Saúde anunciou o apoio a algumas políticas de marca bem conhecidas dos antigos governos Lula e Dilma, tais como:

(a)    O relançamento do Programa Mais Médicos com perspectiva de contemplar um contingente de cerca de 28 mil médicos no Programa até o final de 2023;

 

(b) A criação de um movimento nacional de vacinação, intensificando as campanhas para aumentar a cobertura vacinal para diversas doenças evitáveis que foram reduzidas nos últimos anos;

 

(c)   A redução das filas de espera para cirurgias, exames e consultas médicas no SUS que foram drasticamente aumentadas ao longo dos anos de pandemia;

 

(d)   A intenção de retomar a política de desenvolvimento industrial da saúde, com a expectativa de produzir 70% dos equipamentos e insumos médicos demandados pelo SUS e reduzir a dependência de importações para o setor saúde – uma das maiores lutas enfrentadas pelo SUS junto à pandemia de Covid-19, até o final de seu governo, e;

 

(e)   A busca de recursos orçamentários para financiar os gastos criados pela legislação aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em 2022, que estabeleceu o piso salarial nacional para enfermeiros dos setores público e privado, em R$ 4.750, e estabeleceu que o salário-mínimo dos técnicos, auxiliares e parteiras de enfermagem será calculado com base nesse valor.

Além de tudo isso, ficou apalavrado (mas sem nenhuma medida concreta até o momento) que os gastos federais em saúde e educação seriam protegidos de eventuais crises econômicas e cortes no orçamento, garantindo uma trajetória de custeio para a expansão do SUS.

A maior parte das ações, anunciadas pelo próprio presidente Lula, visava reintroduzir programas e fortalecer políticas públicas que sofreram retrocessos durante o governo Bolsonaro. No entanto, sua implementação exigirá recursos orçamentários adicionais para o SUS, o que é bastante desafiador em 2023, considerado um ano marcado por um gigantesco déficit público, menor crescimento do PIB e maior inflação.

Há algumas ressalvas que tornam as intenções expressas pelo governo um pouco diferentes das iniciativas passadas na área da saúde tomadas pelos governos Lula ou Dilma. Primeiro, o programa Mais Médicos foi anunciado com algumas diferenças, como maior presença de médicos brasileiros, dado que eles entendem melhor a clientela do SUS, falam português e têm mais habilidades técnicas do que os médicos cubanos, por exemplo[5]. Por outro lado, os médicos estrangeiros só serão contratados após aprovação obrigatória no Exame Revalida, que é um teste para verificar habilidades técnicas e práticas para médicos que não são formados em faculdade de medicina brasileira.

Em segundo lugar, o governo parece estar interessado em destinar recursos orçamentários aos estados e municípios e, ao mesmo tempo, subsidiar o setor privado (principalmente as instituições filantrópicas) para permitir que consigam financiar os gastos com a expansão do piso salarial dos profissionais de enfermagem.

 

Quais são as brechas e o que se pode fazer?

As deficiências do SUS são estruturais e somente um novo arcabouço gerencial, com uma reforma complexa, mas necessária, poderia melhorar os atuais níveis de desempenho do sistema público de saúde no Brasil. Vários temas levantados por especialistas, como os relacionados ao lado da oferta, ao lado da demanda e as reformas gerenciais e do financiamento da saúde mencionadas anteriormente, não foram anunciados nos primeiros 100 dias e constituem lacunas urgentes a serem enfrentadas pelas reformas da saúde. Neste particular, algumas questões merecem ser formuladas:

·       Quais são os planos do atual governo para completar o acesso universal à saúde de qualidade para a população brasileira e estender o PSF à toda a população, por exemplo?
·       Quais são os esquemas para melhorar a preparação do sistema para enfrentar novas situações de pandemia?
·       Quais são os planos e estratégias para implementar modelos de redes de saúde para garantir a saúde integrada para todos, usando o mix público-privado de serviços disponíveis no país?
·       Quais são os caminhos para garantir financiamento suficiente e maior eficiência nos gastos públicos e privados com saúde e melhores resultados na prestação de serviços?
·       Qual é a estratégia de saúde digital para o Brasil, incluindo políticas públicas específicas para o desenvolvimento e disseminação da telemedicina, com vistas a aumentar o acesso nas áreas mais distantes com custos menores?
·       Como melhorar o desempenho da coleta de dados sobre a utilização de serviços, através do uso de prontuários eletrônicos, estudos analíticos e inteligência artificial, desde a alta administração até o ponto de atendimento?
·     Como melhorar a educação e a formação profissional em saúde, o treinamento em serviço e os mecanismos de remuneração associados à geração de valor para os pacientes e melhor desempenho gerencial e financeiro do sistema?

São perguntas sem resposta por enquanto. Os resultados anunciados nos primeiros 100 dias na área da saúde sinalizam apenas um retorno às prioridades do passado amarradas a uma agenda em descompasso com as necessidades atuais. As prioridades futuras, reconhecidas como relevantes pelos mais importantes especialistas em saúde do país, ainda não foram discutidas, organizadas e planejadas pelo novo governo. Será que essas prioridades serão progressivamente incorporadas ao longo do tempo pelo Governo? Só o tempo dirá.

Mas, como ponto de partida, para atender a essas expectativas, nossa recomendação é a implementação, no mais rápido prazo possível, da estrutura HSPA da OMS. Este deve ser o primeiro passo para permitir que o novo governo preencha a lacuna existente entre gastos, avaliação e resultados, identificando em detalhes os atuais gargalos de fragmentação, gestão e desempenho. Isso permitirá ao governo projetar metas, traçar estratégias e implementar, com eficácia, as reformas urgentes do SUS que os cidadãos brasileiros merecem e tanto precisam.



[1] Ver, sobre este ponto, matéria publicada no The Economist em 24 de Janeiro de 2021, intitulada Why an American president’s first 100 days matter. Link: https://www.economist.com/the-economist-explains/2021/01/24/why-an-american-presidents-first-100-days-matter

 

[2]    Banco Mundial (2017). Um ajuste justo: Análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil. Banco Mundial, Brasília, 2017, pp 109-119, Link: https://documents1.worldbank.org/curated/en/884871511196609355/pdf/121480-REVISED-PORTUGUESE-Brazil-Public-Expenditure-Review-Overview-Portuguese-Final-revised.pdf

 

 

[4] Ver ANAHP (2022), Propostas para o futuro da Saúde no Brasil: Como Criar Caminhos de Acessibilidade, Igualdade e Modernidade, Ed. ANAHP, Julho de 2022, Link: https://www.anahp.com.br/pdf/propostas-futuro-da-saude-no-brasil.pdf

 

 

[5] Nos últimos anos, a taxa de aprovação dos médicos cubanos que se submeteram ao Revalida foi de apenas 24%. Por esta razão, o Programa Mais Médicos foi obrigado a contratar médicos cubanos para o Mais Médicos na modalidade de estágio, e, por isso, estes não eram autorizados a realizar formalmente muitos dos procedimentos tradicionais de atenção primária realizados regularmente pelos médicos de família ou outros profissionais formados no Brasil.

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