domingo, abril 04, 2010

Judicialização, Integralidade e Financiamento da Saúde

Ano 5, No. 10, Abril 2010


André Cezar Medici



1. Introdução

As relações entre direito e saúde apresentam grandes desafios para o futuro dos sistemas de saúde, não só no Brasil, mas em grande parte do mundo. Dado que o setor saúde necessita de permantente regulação para resolver imperfeições de mercado, o poder judiciário passa a ser, por excelência, o campo de aplicação para a solução de conflitos entre as necessidades e direitos instituidos e as instituições públicas e privadas de saúde. Lenir Santos, advogada especializada em direito sanitário e coordenadora de projetos do IDISA(1), recentemente organizou uma coletânea de artigos intitulada Direito da Saúde no Brasil(2), publicada pela Saberes Editora, que trata de distintos temas como a relação entre direito à saúde e qualidade de vida, integralidade da assistência, normas sanitárias, financiamento à saúde e política de sangue e hemoderivados.

Neste artigo, procurarei tratar de alguns temas discutidos no livro e aprofundar alguns aspectos associados aos dilemas entre judicialização, integralidade e financiamento da saúde, no Brasil e no contexto internacional.

A implementação dos princípios do SUS deve ser feita com cautela de modo a não ferir sua sustentabilidade. Numa sociedade desigual e com recursos escassos, o princípio da cobertura universal pode nem sempre estar em harmonia com o princípio da integralidade do acesso, a depender de como este princípio se encontra definido. O Ministério da Saúde(3), por exemplo, num texto escrito em 2006, demonstrou que se fossem atendidas as necessidades de uso de interferon meguilado para todos os portadores de hepatite C, estimados em 1% da população brasileira, teriam sido gastos R$25 bilhões, ou seja 64% do Orçamento do Ministério da Saúde naquele ano.

Em qualquer país do mundo, o aumento da cobertura em saúde é desafiado pelos limites do que se deve cobrir, especialmente nos dias de hoje, quando a saúde é o setor que produz mais inovações tecnológicas, as quais representam muitos bilhões de dólares que se adicionam anualmente ao gasto do setor. A avaliação e o controle, baseados em evidência, sobre o uso de novas tecnologias são aspectos fundamentais para se decidir sobre a incorporação de novos procedimentos, terapias, exames, tecnologias e medicamentos.

No Brasil, o Ministério da Saúde vem definindo implicitamente, através de seus protocolos e tabelas de pagamento do SUS (AIH, procedimentos ambulatoriais e outras), listas positivas de medicamentos, exames, procedimentos hospitalares, ambulatoriais e terapias que são custeadas pelo SUS. Mas mesmo assim ele tem sido alvo de crescentes cobranças judiciais para o pagamento de procedimentos, medicamentos e terapias de alto custo. Em muitos casos, os pedidos são justificados, dado que se trata de medicamentos, procedimentos, exames e terapias contemplados pelas listas do SUS e sua negação está infringindo direitos protocolarmente instituidos. Em outros casos, são pedidos medicamentos, terapias e procedimentos que não constam das listas do SUS, seja porque não foram testados e não tem eficácia comprovada, seja porque são demasiado caros para estarem inseridos nestas listas, e para os quais existem alternativas mais custo-efetivas usualmente empregadas.

Este problema tem ocorrido em vários países do mundo, e a reação tem sido diferenciada. Nos países europeus, onde o direito coletivo à saúde prevalece sobre o direito individual, procedimentos, medicamentos, exames e terapias que não fazem parte dos protocolos oficiais de saúde não são cobertos pelos sistemas públicos ou seguros privados de saúde, dado que ao serem contemplados, consumiriam recursos adicionais dos orçamentos públicos de saúde que faltariam para cobrir o direito à saúde de outros. Assim, na Europa, os advogados de familias ou empresas nada podem fazer para responsabilizar o Estado ou os seguros de saúde pelo pagamento de coberturas que não são reconhecidas oficialmente como efetivas e eficazes. Em contrapartida, os protocolos reconhecidos oficialmente estão sendo constantemente redefinidos e aperfeiçoados através de instituições que praticam a medicina baseada em evidência ou fazem testes para identificar a eficácia e a relação custo-efetividade dos procedimentos, terapias, exames e medicamentos.

Na Inglaterra, por exemplo, instituições como a Cochrane Collaboration estão constantemente fazendo revisões sistemáticas e meta-análises sobre a eficácia relativa de novos procedimentos, medicamentos, exames e terapias, dando o sêlo de garantia ou reprovando as mesmas para que possam ser publicamente autorizadas. Instituições como o National Institute for Health and Clinical Excelence (NIHCE) complementam estes processos com análises de custo-efetividade para validar estas alternativas quando são comprovadamente melhores que as correntemente existentes.

Nos Estados Unidos, onde a lógica que prevalece é a dos planos de saúde e as demandas judiciais relacionadas à saúde representam largas proporções dos gastos setoriais, o que vale é a cobertura definida nos contratos individuais. No entanto, com a perspectiva de aprovação da Reforma de Saúde proposta pelo Presidente Obama no Congresso, a qual já passou pelo Senado, deverão ser definidas algumas regras de cobertura mínima para todos os planos como parte das novas regulações do setor saúde.

A análise do que se deve considerar como cobertura integral em saúde deveria passar, portanto, pelo teste de algumas perguntas do tipo: A cobertura solicitada faz parte das listas positivas de medicamentos, procedimentos ou terapias existentes? Existem alternativas nas listas existentes ao tipo de cobertura solicitada? Caso não existam, existe alguma evidência dos organismos públicos, como o INCQS ou a ANVISA(4), que recomendem esta cobertura como efetiva ou eficaz? Haveriam cuidados paleativos, prévios a realização do procedimento solicitado, que garantissem sua efetividade? Qual é o custo dos procedimentos solicitados e como afetariam o orçamento para o financiamento de outras ações prioritárias de saúde de natureza coletiva?

2. A Judicialização da Saúde e a Integralidade

Nos últimos anos, as côrtes judiciais no Brasil tem interpretado o tema da integralidade de forma distinta do conceito utilizado pelo Ministério da Saúde. Para o Ministério, a integralidade deveria ser garantida por um conjunto de bens e serviços de saúde de eficácia comprovada no tratamento dos principais problemas epidemiológicos da população brasileira. Mas em grande parte das demandas judiciais, o que acaba ocorrendo é a exigência de se tratar certa doença com o uso de determinado produto farmacêutico, procedimento ou terapia não incorporado pela evidência médica disponível, mesmo que o tratamento desta doença já esteja contemplado no SUS através de alternativas terapêuticas comprovadamente mais eficazes pelos parâmetros disponíveis.

O crescimento das demandas judiciais em saúde, com base no artigo 196 da Constituição de 1988, que garante a integralidade das ações de saúde, é fenômeno conhecido como judicialização da saúde no jargão do Direito Sanitário. Ele sido um dos principais fatores recentes que potencializa a iniquidade financeira entre ricos e pobres no acesso ao SUS. Os fatos geradores dessa iniquidade estão: (a) no caráter difuso do conceito de integralidade e; (b) na ruptura do financiamento público às prioridades epimemiológicas de saude. A assimetria na informação e acesso aos meios jurídicos para impetrar ações contra o Estado para a cobertura ou ressarcimento de ações de saúde negadas pelos gestores públicos do SUS acaba favorecendo aqueles que podem pagar por advogados ou que conhecem os meandros jurídicos para levar adiante ações contra o Estado.

2.1 – A necessidade de explicitar o conceito de integralidade

Dada a complexidade dos temas envolvidos na regulamentação da prestação de serviços de saúde, a falta de explicitação de um conceito de integralidade que dê suporte técnico às decisões judiciais sobre reclamações quanto a cobertura do SUS passa a ser funcional para as intensões de segmentos da sociedade que buscam tirar vantagem do conceito difuso de integralidade no bojo da gratuidade do SUS ou no bojo das deficiências na legislação dos planos de saúde, no caso de demandas privadas. Com isto, recursos públicos ou de gestão coletiva privada passam a ser drenados para o financiamento de ações de saúde questionáveis sob a base de preceitos técnicos e de ética coletiva em sua utilização.

Este processo, batizado pelo sanitarista brasileiro Gilson Carvalho por integralidade turbinada beneficia produtores e mercadores de equipamentos médicos, medicamentos e materias de saúde e suas redes de lobistas que utilizam muitas vezes as associações de pacientes, o corpo clínico de corporações médicas e universidades e a mídia como forma de garantir o financiamento público para inovações tecnológicas ainda não testadas ou aprovadas pelas instâncias nacionais de avaliação de tecnologia em saúde. O tempo decorrido para validar estas inovações, muitas vezes demasiado longo, faz com que a indústria procure buscar atalhos permitidos pelo processo de judicialização para a colocação em massa de seus produtos no mercado. A população, uma vez que não tem informação suficiente para aceitar ou não os produtos e terapias sugeridos, não tem outra saída senão confiar nos profissionais de saúde que sugerem o novo tratamento, passando a ser atores para acionar o sistema judicial reclamando a cobertura pública destes bens ou serviços.

O carater difuso do conceito de integralidade leva a necessidade de explicitar e buscar um consenso sobre este conceito. Este deveria, no mínimo, estar delimitado por temas como a regulação da incorporação de tecnologia com base nos princípios de medicina baseada em evidência, da atenção protocolizada, da desmedicalização possível e da indicação correta dos medicamentos, da discussão de quando e em que circunstâncias se deve fazer exames, da sequência correta de cuidados baseados em hierarquização dos serviços, com ênfase na atenção primária, e da especial atenção aos casos que estão fora de possibilidade terapêutica.

2.2 - A necessidade de garantir o financiamento às prioridade epidemiológicas

A regra de ouro para garantir a efetividade no financiamento público a saúde reside no suposto de que o orçamento público financia um conjunto integral de prestações ordenado por prioridades epidemiológicas. Portanto, ainda que o financiamento seja integral, a regra de ouro é financiar primeiro o que é mais prioritário, ou seja, o conjunto de ações de saúde que beneficiaria o maior número possível de beneficiários.

No entanto prioridades epidemiológicas (e na ausência de informação, preferências subjetivas sobre o que financiar em saúde) são distintas segundo os diferentes grupos sociais. Na medida em que os grupos de maior renda (ou aqueles protegidos por associações de pacientes) tem mais acesso à informação e ao financiamento e custeio de ações judiciais, o processo de judicialização da saúde acaba beneficiando aqueles que tem maior informação, educação, renda e estão inseridos em redes sociais. Os recursos para financiar as ações judiciais destes grupos acabam saindo de recortes nos orçamentos públicos de ações de saúde prioritárias na epidemiologia dos mais pobres, como as de promoção e prevenção de saúde, com impactos negativos no aumento da iniquidade e na qualidade de vida dos que detém menos recursos. Tal fato decorre, também nas palavras de Gilson Carvalho, da existência de uma integralidade partida pela iniquidade na distribuição de recursos para saúde no Brasil.

Mas este é um tema que não tem encontrado soluções em prol da equidade no âmbito da judicialização da saúde no Brasil até o presente momento. Como diz Eduardo Appio, juiz federal e pós-doutor em direito constitucional, “o direito à saúde, como qualquer outro direito social, deve ser suportado pelo orçamento público. Os custos são suportados pelos tributos cobrados de todos. Todos pagam, mas apenas alguns poucos pacientes têm acesso efetivo a medicamentos de última geração na rede pública de saúde, muitos dos quais amparados em liminares judiciais. Não são pessoas de baixa renda. O impacto dos tributos nas camadas mais pobres da população é mais intenso do que nos estratos superiores. Ainda assim, os juízes vêem o orçamento público como uma fonte inesgotável de recursos. A eficiência alocativa é uma ambição de qualquer administrador público responsável por gerir recursos escassos em um ambiente de grande demanda”(5).

Embora não existam estudos sobre a origem sócio econômica dos indivíduos que demandam ações judiciais contra o Estado para a aquisição de medicamentos, serviços ou terapias, parece haver uma certa dicotomia na natureza destes pedidos. Minha hipótese, não testada, é a de que os grupos de menor renda ainda que sejam vítimas da integralidade partida, são os que menos impetram ações contra o SUS. Quando o fazem, normalmente suas queixas estão associadas à cobertura de ações que estariam dentro dos procedimentos constantes nas listas implícitas ou explícitas do SUS. Já os grupos de maior renda procurariam demandar o SUS em ações que não estão cobertas dentro das listas implícitas do SUS. Normalmente estas demandas, são secundadas por advogados ou associações de pacientes que tem uma boa assessoria jurídica.

3. Impactos Financeiros da Judicialização da Saúde no Orçamento Público

O crescimento do processo de judicialização da saúde se baseia no artigo 196 da Constituição Federal, que considera a integralidade da saúde (independentemente de ser ser turbinada ou partida, para usar as palavras de Gilson Carvalho) um direito da população e um dever do Estado. A Justiça Brasileira tem acatado de forma maciça esse argumento. Em grande parte do país, o Ministério da Saúde e as secretarias estaduais e municipais de saúde têm lutado contra essa realidade, dadas as limitações impostas em seus orçamentos que levam à distorção das prioridades epidemiológicas financiadas pelo orçamento público. As inúmeras ações que tramitam no Judiciário restringem a liberdade do Governo Federal, dos Estados e dos Municípios em alocar recursos públicos em saúde segundo prioridades pactuadas, devido aos bloqueios judiciais realizados no orçamento. Vamos a alguns exemplos

Segundo a Agência Brasil, as compras de remédios por ordem da Justiça consumiram R$ 526 milhões nas esferas federal, estadual e municipal em 2007. Somente no Ministério da Saúde os gastos com ações judiciais para a compra de medicamentos aumentaram vinte vezes entre 2005 e 2008, passando de R$2,5 milhões para R$ 52 mihões, valor sufiente para realizar 5,2 milhões de consultas pré-natais e 130 mil partos normais num país que ainda sofre com elevadas taxas de mortalidade materna. Nos Estados, a situação não é diferente.

• Em Minas Gerais foram processadas 1.744 açoes judiciais em 2005, comprometendo R$ 40 milhões somente com o pagamento de medicamentos reivindicados por meio destas ações.

• O Rio de Janeiro tem fechado acordos com a Defensoria Pública - que são parte em cerca de 90% dessas ações judiciais - para que, em casos que pleiteiam medicamentos que estão na lista do SUS, o órgão oficie a Secretaria antes de tentar a via judicial. Ainda assim, os gastos com ações judiciais continuam a aumentar. Em 2005, o órgão usou R$ 5 milhões para esse fim, enquanto que em 2008 a previsão foi de R$ 30 milhões. Com estes recursos poderiam ser abertas 25 unidades de pronto-atendimento 24 horas, destinadas a casos mais graves.

• A Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul adota uma estratégia similar a do Rio de Janeiro para reduzir a ´´judicialização´´ na saúde. O Estado gasta uma média de R$ 6,5 milhões por mês com o cumprimento de decisões judiciais. Em 2007, o Estado enfrentou 7,9 mil ações judiciais e em meados de 2008 (junho) estas já chegavam a 4,5 mil.

• Ao que se sabe São Paulo é o Estado que mais gasta com o fornecimento de remédios pela via judicial. Desde 2002 foram ajuizadas mais de 25 mil ações para pedidos os mais diversos. Entre 2002 e 2008, por exemplo, foram gastos cerca de R$ 500 milhões com ações judiciais, ainda que entre 2007 e 2008 o número de ações tenha se reduzido 22% - de 3996 para 3098 (6). Há centenas de processos pedindo o fornecimento de fraldas, que além de além de não serem iténs de gasto em saúde, e sim de higiene pessoal, não estão nas listas do SUS. Se estas ações prosseguissem, o SUS deveria começar a pagar sabonetes, detergentes e outros produtos de limpeza.

Em 2007, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu liminar que determinava ao Estado de Alagoas a aquisição de medicamentos para pacientes transplantados renais e renais crônicos não fornecidos pelos SUS em seus programas. Algumas associações de pacientes alegaram que esta decisão feria o princípio da integralidade, mas o STF foi instruido que o SUS oferecia alternativas ao medicamento demandado e que não haviam testes nacionais que comprovassem a eficácia do medicamento solicitado. Em casos similares, as pressões foram tantas que juizes so supremo tribunal voltaram atrás em decisões tomadas nos Estados do Amazonas e do Rio Grande do Norte (7).

Assim, enquanto os Estados alegam que há uma ´´judicialização´´ excessiva, algumas associações de pacientes reclamam que não há medicamentos disponíveis e que por meio de ações junto às secretarias estaduais tem sido possível regularizar o fornecimento de medicamentos e forçar a criação de leis estaduais com essa finalidade.

4. Formas de solucionar alguns temas associados à judicialização

Os temas associados à judicialização da saúde no Brasil vieram para ficar. Em geral suas soluções estariam associadas a três temas: (a) a explicitação do conceito de integralidade; (b) a harmonização dos interesses econômicos com as reais necessidades da população e; (c) a prevalência do direito coletivo sobre o direito individual, quando os recursos são limitados.

4.1 A explicitação do Conceito de Integralidade

A integralidade deve ser funcional a resolução dos problemas de saúde da população brasileira. Neste particular ela deve propiciar todos os usos possíveis dos recursos, mas evitar os abusos que normalmente surgem pelo fato de não haver regras explícitas do que deve estar contido no contexto da integralidade. Qualquer país tem como princípio definir explcitamente o que vai e o que não vai financiar em saúde dentro de seu conceito de saúde integral. Caso não o faça, o exercício da subjetividade poderá fazer com que as demandas de saúde sejam infinitas e representem, não só o que é necessário, mas também a soma de todos os desejos e prazeres da humanidade.

Mas qual a metodologia que deveremos utilizar para definir o conceito de integralidade. A maioria dos países tem utilizado o método das listas positivas, a partir de estudos de carga de enfermidade. Os estudos de carga de enfermidade, se baseiam em dados de mortalidade e morbidade, onde se poderá listar a totalidade dos anos de vida perdidos por mortes e por doença segundo as causas que levaram a estas perdas. No entanto, nem sempre os países tem boas estatísticas de mortalidade e morbidade. Um passo importante, portanto, seria melhorar a qualidade das estatísticas para realizar estes estudos e fazê-los com uma dada periodicidade (8). Assim se definiria a lista hierarquizada de prioridades de saúde.

Para esta lista, se construiría um conjunto de protocolos baseados em regras de custo-efetividade, onde estariam elecandos os melhores procedimentos, medicamentos, exames e terapias, de acordo com o conhecimento disponível no país, para prevenir, tratar ou curar as causas listadas. A construção desta lista exigiria que instituições e grupos de trabalho se dedicassem, com o reconhecimento e suporte do Estado, sobre a construção de protocolos baseados em evidência. O apoio de instituições como a Centro Cochrane do Brasil na multiplicação destas estratégias seria essencial(9). Também seria fundamental o uso de critérios de custo-efetividade na montagem das listas positivas e sua revisão. No Brasil não existem instituições como o NIHCE, na Inglaterra, que esteja realizando este trabalho de forma sistemática. Portanto, seria altamente recomendável que se buscasse a assessoria técnica desta instituição neste processo (10).

Dado que protocolos em saúde envelhecem por obsolescência técnica e o setor incorpora constantemente novos processos de tratamento mais eficazes (em muitos casos mais baratos) é necessário que se crie um processo de revisão sistemática das listas positivas e de seus protocolos, a fim de evitar que a população brasileira não deixe de incorporar os processos administrativos e tecnológicos (especialmente aqueles de baixo custo e de alto impacto, como vacinação, combate a doenças transmissíveis, estratégias de promoção e prevenção) que melhoram as condições de saúde. Mas isto deve ser feito sempre com um olho no orçamento disponível e outro nos resultados alcançados na melhoria do estado em saúde.

Explicitar o conceito de integralidade é também acordar os critérios técnicos para que esta definição seja sustentável e promova a melhoria da saúde ao longo do tempo.

4.2 A Harmonização dos Interesses Econômicos com as Reais Necessidades da População

Não se pode negar nem evitar que existam interesses econômicos daqueles que produzem inovações na produção de diagnósticos, equipamentos, medicamentos e terapias em saúde. Além de válidos e legítimos, a existência destes interesses tem levado o setor saúde a um incomparável progresso na melhoria das condições de vida da população nos últimos 150 anos. No entanto, como a inovação gera vultosos recursos econômicos, há que disciplinar, através de processos de validação e normatização pública, sua difusão e comercialização para que esta se baseie em princípios éticos que garantam a eficiência, a eficácia e a efetividade de seu uso em benefício da população.

Neste sentido, é necessário estabelecer meios para que os protocolos aceitos como custo-efetivos nas listas positivas sejam normatizados e licenciados por instituições acreditadas, sejam elas públicas ou privadas. A incorporação de novos procedimentos e tecnologias nos sistemas de saúde deve se basear em critérios de necessidade, oportunidade, razoabilidade, conveniência e essencialidade para a garantia da saúde, em seus aspectos coletivos e individuais.

Um novo medicamento, por exemplo, só deveria ser licenciado quando a sua eficácia e segurança são comprovadas por meio da apresentação, pelo fabricante, dos resultados dos ensaios clínicos realizados. Essa medida visa garantir que os medicamentos disponíveis (e licenciados pelo poder público) sejam capazes de fazer o que se propõem e que sua ação não causará danos aos pacientes. Mas o simples licenciamento não dever ser considerado para como único critério para o seu financiamento público. É necessário, além dos atributos de segurança, efetividade e eficácia, que os novos medicamentos sejam a melhor alternativa de custo, porque assim se possibilitaria que mais pessoas possam ter acesso e que os recursos economizados pelo Estado se destinem a outros usos de interesse público.

É com base nestes critérios, no caso do Brasil, que foi construida a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) associada aos remédios regularement disponíbilizados pelo SUS. Se adiciona também a lista de medicamentos excepcionais, utilizados para o tratamento de doenças raras. Portanto, o Brasil tem elementos suficientes para que a Justiça considere que medicamentos deverão ou não ser financiados pelo sistema público e a Justiça deveria tomar isto em conta nas decisões consideradas pelas cortes de justiça.

No entanto, os processos que envolvem desde o licenciamento de um medicamento, procedimento ou tecnologia, até sua incorporação pelo setor público podem demorar muito tempo e, neste caso, a empresa ou instituição inovadora poderá perder recursos até que o Estado siga todos os passos necessários. Muitas empresas (especialmente aqueles menos éticas) procuram atalhos pouco transparentes para o uso de suas inovações e a judicialização pode ser um desses atalhos. Nestes casos, se devem realizar investigações (em alguns casos criminais) para avaliar se uma Associação de Pacientes (em geral desprovida de informação para checar os argumentos de eficácia clínica) foi influenciada, por uma determinada empresa, ao demandar do Estado a compra e financiamento público de seus produtos ou tecnologia.

Por outro lado, cabe ao Estado agilizar os processos e protocolos de geração de tecnologia, a fim de evitar que as inovações que valem a pena demorem a ser incorporadas e que o país perca os benefícios e incentivos da inovação, assim como os registros de patentes. Ao que parece, o Brasil necessitaria rever os tempos para registrar, licenciar e comercializar novos produtos. Muitos autores indicam que o país apresenta baixo desempenho no processo de geração de patentes no setor saúde, dada a desarticulação entre o Estado e o sistema de inovação no setor (11).

4.3 – A Prevalência do Direito Coletivo sobre o Individual(12)

Os sistemas de saúde que atualmente se configuram a nivel mundial podem ser classificados em dois tipos: aqueles onde predominam os seguros de saúde privados, baseados em contratos entre pessoas e empresas, onde prevalecem as regras de direito individual (como é o caso dos Estados Unidos) e aqueles que se pautam por coberturas universais, seja através da oferta pública, seja através de seguros coletivos financiados com recursos públicos ou para-públicos, como os da seguridade social, onde prevalecem as regras de direito coletivo. Este é o caso dos países europeus e em certa medida do Brasil.

No primeiro caso, boa parte do financiamento da saúde é feito através de familias ou empresas, enquanto no segundo o financiamento se realiza através de impostos gerais e contribuições sociais, onde as regras públicas substituem os contratos individuais. Nos contratos individuais as reclamações se resolvem com base nas coberturas explicitadas nos contratos, ou em jurisprudência sobre o tema, e muitas vezes não necessitam chegar aos tribunais, dado que ouvidorias ou serviços de atenção ao consumidor das próprias empresas dão conta do recado. Nos contratos de direito coletivo, as coberturas são aquelas constantes nas listas positivas e os recursos estão assegurados no orçamento. Casos previstos nestes contratos são cobertos, enquanto que casos não previstos são negados.

Na maioria dos países, inclusive nos desenvolvidos, o Estado dispõe de limitada capacidade para financiar as prestações reconhecidas de direitos fundamentais sociais e do mínimo existencial. Mas o Estado, por outro lado, também deve ter a capacidade jurídica de dispor, sem o qual de nada lhe adiantam os recursos existentes que são alocados no orçamento público. Em virtude destes aspectos, a sustentação dos direitos sociais, como o acesso universal à saúde, depende de uma reserva do possível que defina a existência ou ausência de recursos indispensáveis ao cumprimento destes direitos pelo Estado.

A construção teórica do argumento da reserva do possível (Der Vorbehalt des Möglichen) tem origem na Alemanha dos anos 1970. Assim, a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos. A reserva do possível passou a traduzir a idéia de que os direitos sociais a prestações materiais dependem da real disponibilidade de recursos financeiros por parte do Estado, disponibilidade esta que estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e parlamentares, sintetizadas no orçamento público. Assim, se poderia sustentar, sob o argumento da reserva do possível, que não haveria como impor ao Estado a prestação de assistência social a alguém que efetivamente não faça jus ao benefício, por não estar este definido nas regras de direito coletivo de acordo com as normativas vigentes. Este tem sido o principal instrumento jurídico utilizado pelos países europeus para vetar ações judiciais associadas solicitando o financiamento e cobertura pelo Estado de procedimentos, exames ou medicamentos não previstos nas regulações públicas.

O uso do argumento da reserva do possível nos tribunais pode ser uma solução para muitos problemas associados a judicialização da saúde no Brasil, tais como: (a) vetar uma prestação que não está incluída na tabela procedimentos, medicamentos, órteses, próteses e materiais do SUS; (b) negar o acesso aos recursos públicos de uma pessoa protegida por um plano ou seguro saúde onde a prestação requerida está contratualmente garantida por este plano, segundo o contrato e as normas vigentes na ANS e; (c) bloquear o acesso de um pedido de financiamento a serviços não essenciais ou supérfluos pelo erário público, sob o argumento de que não são necessários para a saúde de um indivíduo. Estes seriam casos clássicos onde se estaria protegendo o direito coletivo à saúde expresso no orçamento público.

No entanto, ha que se ter cautela. O uso da reserva do possível pode ser considerado um problema quando é utilizado para: (a) vetar uma prestação garantida pela tabela de procedimetos, medicamentos, órteses, próteses e materiais do SUS; (b) negar o acesso de uma pessoa sem recursos ou sem outras formas de proteção a saúde (como a saúde suplementar) à esta prestação, ou; (c) vetar a transferência de recursos de um determinado nível de governo para outro para o financiamento de serviços essenciais que não tem possibilidades de ser custeados pelo orçamento vigente no nível de governo correspondente.

Em sociedades em desenvolvimento como a brasileira, a garantia dos direitos coletivos em saúde deve prevalecer sobre os direitos individuais, mas a distância entre direitos coletivos e individuais tende a se reduzir na medida em que aumentam os recursos disponíveis para o financiamento da saúde, permitindo atender a um maior gradiente de necessidades de saúde coletivas, mesmo que estas se expressem de forma pouco frequente em termos individuais. Portanto, a garantia de recursos estáveis para o financiamento da saúde e a redução das brechas de equidade, seja através da ampliação das fontes de financiamento, seja através da melhoria da eficiência no uso dos recursos, serão sempre determinantes de parte das conquistas futuras que permitirão a aproximação entre as perspectivas individuais e coletivas em matéria de direito sanitário.

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NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) O Institituto de Direito Sanitario Aplicado (IDISA) é uma Instituição vinculada a Universidade Estadual de Campinas, em São Paulo.

(2) Santos, L. (org), O Direito a Saúde no Brasil, Editora Saberes, Campinas (SP), 2010. O livro tem artigos de Lenir Santos, André Evangelista de Souza, André Medici, Cármino Antonio de Souza, Dimas Tadeu Covas, Fernando Aith, Gilson Carvalho, João Agnaldo Donizeti Gandini, Marcelo Addas-Carvalho, Marlon Alberto Weichert e Samantha Ferreira Barione. Click a página web http://www.idisa.org.br/site/img/direito_saude_brasil1.jpg

(3) Vieira, F.S. (2008), Ações Judiciais e Direito à Saúde, Ed. Ministério da Saúde, Brasilia (mimeo.), 2008.

(4) INCQS significa Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde. É um órgão da FIOCRUZ que atua como referência nacional para as questões científicas e tecnológicas relativas ao controle da qualidade de produtos, ambientes e serviços vinculados à Vigilância Sanitária. ANVISA é a Agencia Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, cuja finalidade é promover a proteção da saúde da população por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados.

(5) Ver Appio, E (2009). Os Pobres devem Pagar as Contas dos Ricos? In JusBrasil Noticias, extraído de Espaço Vital, 15 de maio de 2009. http://www.jusbrasil.com.br/noticias/1062714/os-pobres-devem-pagar-as-contas-dos-ricos.

(6) Dados constantes em materia publicada na Folha de São Paulo de 17 de fevereiro de 2009 intitulada Políticas Públicas de Medicamentos no Estado de São Paulo. De acordo com esta reportagem, para o governo paulista, a queda nas ações está diretamente relacionada a uma operação policial que, no ano passado, prendeu nove pessoas sob a acusação de forjarem receitas médicas para obrigar à Secretaria do Estado, por meio de demandas judiciais, a comprar remédios para 15 pessoas com psoríase (doença inflamatória da pele). A estimativa da secretaria é que em torno de 50% dos casos de ações obrigando o fornecimento de drogas que não constam na lista do SUS tenham algum desvio de finalidade.

(7) Este tema é relatado no artigo de Vieira, F.S (2008).

(8) Estudos de carga de doença costumam ser caros e, uma vez realizados, não apresentam grandes variaçães no curto prazo, a não ser quando se observa melhorias nos sistemas de informação. Portanto, se realizados de 5 em 5 anos poderão dar conta das necessidades de definição dos rankings de doenças que devem ser atacadas prioritariamente, de acordo com variáveis como Região, idade e gênero, durante algum período fixo de tempo.

(9) Informações sobre o trabalho do Centro Cochrane do Brasil em temas associados a medicina baseada em evidência, avaliações sistemáticas de procedimentos clínicos, terapeuticos e medicamentos e meta-análises associadas pode ser encontrados em http://www.centrocochranedobrasil.org.br/

(10)Sobre o trabalho desenvolvido pelo NIHCE, consultar a página http://www.nice.org.uk/

(11) Ver Gadelha, C.A.G & Quental, C. (2003), Saúde e Inovação: Uma Abordagem Sistêmica da Indústria de Saúde, In Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(1):47-59, jan-fev, 2003.

(12) Para uma visão mais completa deste tema e sua relação com a integralidade em saúde ver apresentação que realizei na seguinte pagina: http://www.ibedess.org.br/imagens/biblioteca/406_Andre%20Medici.pdf

sábado, janeiro 23, 2010

A Saude em Casa e os Planos de Saúde

Ano 5, No. 9, Janeiro de 2010


André Cezar Medici



O último artigo que escrevi neste blog, e que versou sobre a vida e obra do Dr. Juljan Czapski, recebeu alguns comentários sobre as condições que o levaram a sua morte como paciente terminal de cancer. Entre estes comentários está o de Mario Lobato Costa, destacando que, em matéria publicada na Folha de São Paulo de 19 de janeiro de 2010 na seção de cotidiano, foi comentado o fato de que seu Plano de Saúde negou a solicitação de internação domiciliar (home care) feita pela família do Dr. Czapski e por seu médico particular.

Na minha opinião, a solicitação era procedente por dois motivos: primeiro, porque o home care melhoraria a qualidade de vida do paciente, deixando-o em contacto com seus entes queridos enquanto tratado e lhe propiciando uma atenção mais personalizada e adequada aos cuidados paleativos que necessitava, podendo até mesmo prolongar um pouco sua expectativa de vida. Segundo, porquê a opção de home care é atuarialmente muito melhor em casos como esse, dado que envolve potencialmente menores custos (evitando internações hospitalares caras e desnecessárias) que deixariam de ser repassados aos preços pagos pelos usuários de planos de saúde.

O significado do home care

A saúde em casa (ou home care) é uma modalidade assistencial, geralmente destinada a pacientes em condições crônicas, terminais ou de longa permancência, que oferece cuidados, tratamentos, produtos, equipamentos, serviços especializados e específicos para cada paciente, num ambiente que poderia ser a casa, hotéis, resorts, casas de apoio aos idosos ou outros que tem em comum o fato de não serem caraterizados como instituições de saúde.

Segundo o Dr. Edvaldo Leme, em seu site que indicaremos ao final deste artigo, a vantagem do home care consiste no fato de que a condição clínica ou enfermidade do paciente torna-se parte de um plano de tratamento global integrado, cuja finalidade é a ação preventiva, curativa, reabilitadora e/ou paliativa especializada. Poucos serviços de saúde têm estas características. Na modalidade de home care, a metodologia integrada envolve todos os fatores que contribuem para a saúde física, social, espiritual e psicológica do paciente e de quem o cuida. O home care utiliza uma metodologia adequada de questionamento, avaliação, planejamento, implementação, acompanhamento e finalização, de um conjunto de ações diretamente relacionadas com metas de saúde individualizadas e implementadas por uma equipe multidisciplinar.

As Vantagens do Home Care

A literatura que dispõe sobre os benefícios do homecare é vasta e abrangente. Entre as principais vantagens se destacam aquelas de ordem assistencial, econômica e atuarial. No que se refere às vantagens de ordem assistencial geralmente atribuidas ao home care se destacam:

(a) o atendimento às necessidades especiais de paciêntes crônicos, notadamente de terceira idade, reduzindo a exposição a tratamentos invasivos e o estresse propiciado pelo ambiente hospitalar, aumentando sua qualidade de vida. O homecare, no entanto, não substitui o internamento hospitalar, quando o paciente tem uma indicação clínica que necessite dos recursos físicos e profissionais de um hospital, pois nesses casos, o melhor ambiente para ele é sem dúvida, o hospital;

(b) a oferta de um atendimento humanizado e próximo do paciente, sem que essa se distancie do afeto e cuidados de parentes e entes queridos, propiciando um clima psicológico e espiritual mais propenso a recuperação ou à extensão da vida de pacientes terminais em condições normais (sem uso de instrumentos artificiais de prolongamento da vida), através de uma transição mais suave e natural para situações de falecimento;

(c) o aumento das acões promocionais e preventivas em saúde, dado que o sistema de Home Care oferece a oportunidade de intervir beneficamente, na prevenção e tratamento precoces de várias patologias e suas seqüelas, por intermédio da metodologia de capacitação em programas de prevenção para os pacientes e acompanhantes;

(d) a utilização racional de tecnologias, insumos e medicamentos, permitindo uma melhor administração do cuidado, combinada com uma atenção personalizada propiciada por pessoal especializado e dedicado exclusivamente ao paciente sem as complicações, erros das equipes de saúde e infecções hospitalares que normalmente costumam ocorrer em ambientes onde a atenção se dá a inúmeros pacientes em simultâneo;

(e) a transferência de informação sobre o paciente para a família, de forma mas fácil e coordenada, permitindo reduzir a assimetria de informação entre aqueles que representam o paciente e aqueles que representam os serviços de saúde, ao mesmo tempo em que se reduz a perspectiva de erros associados ao desconhecimento dos familiares sobre o estado de saúde do paciente.

Entre as vantagens de ordem econômica e atuarial trazidas pelo home care se destacam:

(a) a redução do custo fixo e variável dos pacientes nos ambientes hospitalares que são internados sem necessitar necessariamente de cuidados hospitalares e que representam, tanto para os planos e seguros de saúde, como para os pacientes e suas famílias, gastos catastróficos e consomem parte considerável dos recursos dos planos e poupanças familiares.

(b) o aumento da competitividade dos planos de saúde que oferecem esta modalidade, não somente por seu impacto na redução dos custos assistenciais, mas também por oferecer uma modalidade cada vez mais reconhecida, valorizada e demandada no mercado de planos de saúde e;

(c) a possibilidade, para os governos, de reduzir gastos públicos em saúde e com isso oferecer os cuidados médico assistencias de forma a aumentar a cobertura, a qualidade e a satisfação dos usuários dos sistemas de saúde com maior satisfação e reconhecimento das ações de saúde oferecidas pelo governo por parte da população beneficiária.

Origem e Desenvolvimento Internacional do Home Care

Segundo distintas fontes de informação, o home care não é uma modalidade assistencial nova, nem no mundo nem no Brasil, mas em países desenvolvidos, como os Estados Unidos, teve seu apogeu na década de 1920, quando a carga de enfermidade se caracterizava mais por doenças transmissíveis, voltando novamente a crescer das décadas de 1950 e 1960 até hoje.

Sintetizando a linha do tempo do home-care, traçada pelo Dr. Edvaldo Leme, em 1796, uma organização filantrópica norte-americana (Boston Dispensary) já prestava serviços aos pobres enfermos ao invés de hospitalizá-los. Na Inglaterra, o Hospital St. Catherines Royal provia serviços desta natureza em 1848. Missões religiosas na cidade de New York em 1877 prestavam serviços domiciliares de enfermagem aos doentes em suas residências e em 1885 se organizou uma agência de cuidados voluntários em Buffalo (Estado de Nova York) para prestar serviços gratuitos de home care. Na Australia esses serviços são oferecidos desde 1885, especialmente por organizações de enfermeiras.

No inicio do século vinte já se contavam centenas de instituições voluntárias oferecendo serviços de home care nos Estados Unidos, a maior parte associado a cuidados de enfermagem. Em 1912 a Cruz Vermelha dos Estados Unidos passa a oferecer esses serviços, também de forma voluntária, em comunidades rurais norte-americanas e entre 1914-1920, o Plano de Saúde Metropolitan Life tornou disponível para 90% de seus beneficiários nos Estados Unidos e Canadá serviços de home-care.

A relação entre as companhias de seguro e os serviços de home-care começam nos Estados Unidos em 1923, quando a Visiting Nurse Association (VNA) de Wilmington assina contratos com companhias de seguro para receber reembolso por serviços de assistência médica e de enfermagem prestados ao nível domiciliar.

Nas décadas de 1930 e 1940, vários fatores como a rápida redução da mortalidade por doenças transmissíveis, a transição demográfica, a grande depressão seguida pela 2ª. Guerra Mundial e o processo de urbanização fizeram com que a atenção domiciliar declinasse sua importância e os hospitais passassem a aumentar seu escôpo na atenção médica nos Estados Unidos. Mas com o final da guerra e a melhoria das condições de acompanhamento de pacientes crônicos idosos, o homecare volta a ganhar importância no cenário assistencial norte-americano. Seu baixo custo e seu caráter mais humanizado aumentavam sua preferência entre as instituições públicas e privadas de saúde. Em 1952, por exemplo, a VNA assina um convênio com o Social Security Department dos Estados Unidos para serviços de home-care oferecidos a pacientes e em 1956 o Hospital de Delaware contrata a VNA para serviços de home care como parte de reduzir os custos médios com seus segurados em planos assistenciais e desobstruir a demanda por leitos de internação para casos que poderiam ser cuidados por modelos alternativos de cuidado ao paciente.

O renascimento dos serviços de home care nos EUA, durante os anos cinquenta e sessenta, foi fortemente impulsionado pelo fato de que o tratamento baseado no hospital havia se tornado muito caro para os Planos de Saúde e a transição demográfica e epidemiológica levava ao crescimento das doenças crônicas crônicas associadas à terceira idade. Nesse sentido, modalidades mais especializadas de home care começam a surgir como o homecare baseado no hospital, o homecare baseado na comunidade e os serviços de apoio ao lar.

A estratégia de homecare foi um dos principais pilares de sustentação do primeiro programa público de saúde nos Estados Unidos – o MEDICARE, criado em 1966. Funcionando como um seguro de saúde público para populações maiores de 65 anos de idade, que passaram a contribuir compulsoriamente à folha de salários, junto com a contribuição das empresas, a legislação do Medicare prevê benefícios relacionados com o homecare aos seus usuários, principalmente cuidados especializados de enfermagem e terapias de natureza curativa ou de reabilitação para os cidadãos da terceira idade.

No princípio, o credenciamento para o MEDICARE era reservado apenas às instituições sem fins lucrativos e Departamentos de Saúde dos Estados e Condados (Counties), oferecendo terapeutas, auxiliares de enfermagem e pessoas que auxiliavam nos serviços diários do lar. Assistentes sociais e nutricionistas começaram a fazer parte da equipe de homecare, como um serviço coberto pelos benefícios do Medicare e também do Medicaid, um serviço de assistência médica universal para a população abaixo da linha de pobreza, criado em 1974. A lei do idoso nos EUA tem um programa desenhado para prestar assistência e manter os americanos da terceira idade em seus lares e comunidades, evitando-se a hospitalização desnecessária e de alto custo para o governo. Seguindo a experiência pública norte-americana, muitas empresas de planos de saúde, como a Kaiser Permanente e a Blue Cross- Blue Chield passaram a incorporar as estratégias de home care.

Na década de 1970, o homecare já era visto como uma das melhores estratégias para redução de custos e aumento da qualidade de vida para pacientes de terceria idade e deficientes físicos. As estatísticas de home care nos anos 80 refletem claramente o crescimento desta modalidade: (a) o número de agências credenciadas junto ao Medicare para prestar este tipo de assistência alcançava quase cinco milhares em 1989 e; (b) A percentagem de segurados do Medicare recebendo homecare aumentou de 9% para 18% entre 1981 e 1985.

Esforços para padronizar e criar estándares de qualidade para esses serviços se iniciam com a criação da National Association for Home Care (NAHC) nos anos oitenta e em 1987, o Congresso formou uma comissão de parlamentares que, com apoio de grupos de proteção ao consumidor e da NAHC, definiram políticas e procedimentos de qualificação e pagamento de serviços, permitindo aos programas de homecare prover níveis adequados e regulares de prestações, não somente aos usuários do Medicare, mas também aos dos planos privados de saúde. Os serviços passavam a abranger desde enfermagem até terapias ocupacionais, respiratórias, fonoaudiologia, assistencia social, nutrição, serviços de laboratório, farmácia, exames de imagem e transporte, entre outros.

No entanto, este esforço de padronização e tentativa de melhorar a qualidade do mercado freiou temporariamente a expansão do homecare nos Estados Unidos. Em 1996 a modalidade homecare no interior do Medicare era prestada por 10 mil entidades certificadas para uma população de idosos beneficiários de 3,6 milhões. Em 2000 o número de entidades certificadas se reduziu para 7,1 mil e o de beneficiários para 2,5 milhões.

Mas entre 2000 e 2007 a modalidade de homecare volta a crescer. O número de entidades certificadas chegou a 9,2 mil em 2007 e o número de beneficiários cobertos pelo Medicare cresceu para 3,3 milhões novamente. Os gastos com homecare no Medicare, entre 2000 e 2007, aumentaram de US$ 7,3 bilhões para US$ 14,0 bilhões, acompanhando a tendência geral de crescimento dos custos de saúde nos Estados Unidos que já alcançavam 16% do PIB em 2007. A regulação que levou a melhoria da qualidade trouxe portanto, uma fase de ajuste onde a modalidade homecare reduziu sua oferta, mais a qualidade de vida trazida aos pacientes e o baixo custo que ela representa logo trouxeram novamente sua expansão.

Dado seu baixo custo e sua alta resolutividade, o homecare tem sido também intensivamente utilizado no Medicaid. Entre 1995 e 2004, o número de beneficiários do Medicaid recebendo benefícios de homecare aumentou de 1,6 para 8,4 milhões e os gastos com este programa se expandiram de US$ 9,4 para US$ 37,2 bilhões.

Em 2007, somente no que se refere aos programas públicos, o Estados Unidos gastava mais de US$ 50 bilhões para atender uma população beneficiária que beirava os 12 milhões de indivíduos. Isso representa um gasto percapita anual por beneficiário de pouco mais de US$ 4 mil, comparado à um gasto médio percapita por habitante que, no caso norte-americano, é quase o dobro ao se considerar a totalidade das modalidades assistenciais e a totalidade das pessoas enfermas e sãs.

Os gastos com a modalidade de homecare nos Estados Unidos, tanto nos programas públicos (Medicare e Medicaid) como nos planos de saúde tem permitido o uso de sistemas de pagamento prospectivo e capitação como forma de orientar provisões mais precisas de custos associadas a utilização desta modalidade assistencial. Por todos essas vantagens, a estratégia de homecare – especialmente nos programas públicos – tem sido preservada na reforma de saúde proposta pelo Presidente Barack Obama, assim como tem sido propostos incentivos para sua expansão nos programas privados de seguros e planos de saúde.

O Desenvolvimento do Homecare no Brasil

Serviços similares ao homecare no Brasil começaram a ser oferecidos ao final dos anos sessenta, ainda que restritos a certos temas de vigilância epidemiológica e saúde materno-infantil, no âmbito da Fundação Serviço Especial de Saúde Pública (SESP). Alguns hospitais publicos como o Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo, iniciaram pioneiramente atividades de visitação em domicílio. A primeira agência de homecare no Brasil (Geriatrics Homecare) foi fundada no Rio de Janeiro em 1986.

A reforma sanitária brasileira, a Lei 8080 de 1990, cria as bases para a regulamentação da assistência médica domiciliar no Brasil. Assim, nos anos noventa, várias empresas de homecare começam a ser fundadas no Brasil, destacando-se a Medical Personnel Pool, PRONEP e Dal Ben (1992), ADS homecare, Saudelar e Home Istead (1994), Coopenfint e ABEMID (1995) e NADI (Associado ao Hospital das Clínicas da USP em 1996) entre outras. Em 1998 se realiza o primeiro simpósio brasileiro de assistencia domiciliar (SISBRAD) e em 1999 as modalidades de homecare passam a ser oferecidas por planos de saúde como a UNIMED.

Em 2002 o Conselho Federal de Enfermagem aprovou, em sua resolução 270, a regulamentação das empresas de enfermagem que prestam cuidados sob a modalidade de homecare, seguindo-se em 2003 a resolução 1668 do Conselho Federal de Medicina que dispõe sobre os mesmos temas. Em janeiro de 2006 as regras gerais de homecare (assistência médica domiciliar) são regulamentadas pela ANVISA (Resolução FDC 11).

Em 2006 , de acordo com um levantamento feito pelo Núcleo Nacional de Empresas de Assistência Domiciliar (NEAD), o setor contava com 170 empresas especializadas em saúde domiciliar, com um movimento de atendimento mensal médio de 30 mil pacientes. A maioria destas empresas se situava no estado de São Paulo e cerca de 73% dos clientes provinha de planos de saúde. Estima-se que o setor tenha movimentado em 2005 cerca de 240 milhões de reais e o crescimento médio anual do faturamento da modalidade seja de 15%.

Homecare e Programas Públicos de Saúde no Brasil: o PACS e o PSF

O governo federal brasileiro promulgou, em março de 1998, a Portaria 2416, que dispõe sobre internação domiciliar no SUS, reconhecendo que a internação domiciliar proporciona a humanização do atendimento e acompanhamento de pacientes cronicamente dependentes do hospital, e a adequada desospitalização proporciona um maior contato do paciente com a família favorecendo a sua recuperação e diminuindo o risco de infecções hospitalares. No entanto, pouco se têm avançado no uso de homecare pelo SUS nos últimos anos. Mesmo assim, o NEAD estimou que 20% das internações domiciliares prestandas pelas empresas brasileiras de homecare foram pagas pelo SUS.

A estratégia mais próxima do homecare que vem sendo desenvolvida pelo setor público brasileiro, desde o início dos anos noventa, para comunidades de menor renda são os Programas de Agentes Comunitários da Saúde (PACS) e de Saúde da Família (PSF). Eles se caracterizam como estratégias de reorganização da atenção à saúde baseadas em um modelo centrado no usuário, demandando das equipes a incorporação de discussões acerca da necessidade de humanizar a assistência e os cuidados de saúde no Brasil.

Estes programas, que atualmente já alcançam mais da metade da população brasileira, tem sido, na avaliação de muitos, um dos principais responsáveis pela redução da mortalidade infantil e melhoria dos indicadores de acesso e resultado da saúde no Brasil.

No entanto, sómente nos últimos anos eles tem incorporado atividades de acompanhamento de pacientes crônicos de terceira idade, dado que sua prioridade ao início estava nas ações de corte materno infantil e de redução das doenças transmissíveis que são mais presentes entre as populações de menor renda e nas regiões mais pobres do país.

Com o rápido envelhecimento da população e a pobreza urbana da terceira idade nas metrópoles brasileiras, eles terão que concentrar progressivamente sua atenção no atendimento das necessidades destes pacientes e temas como internação domiciliar deverão ser pensados como forma alternativa e custo-efetiva para a substituição das necessidades hospitalares de pacientes crônicos, quando justificável e necessário.

Homecare e Planos de Saúde no Brasil

Já no caso dos planos de saúde, a regulamentação existente na Agência Nascional de Saúde Suplementar (ANS) não tem sido abrangente e precisa sobre o tema. Seria necessário que esta pudesse avançar nos aspectos de regulamentação dos planos e seguros de saúde, permitindo aos contratos serem mais explícitos sobre a necessidade de homecare e sobre os critérios de quando esta modalidade deve ser justificadamente prestada, para os pacientes. Esta brecha tem permitdo aos planos de saúde praticarem diferentes procedimentos relativos a modalidade de homecare em seus contratos.

Muitos planos de saúde dizem que o homecare não faz parte dos contratos, mas poderiam ser oferecidos voluntariamente pelos planos, caso se justifique, do ponto de vista econômico e assistencial, mas sem definir claramente quais os critérios utilizados para sua inclusão nem as formas de assistência.

Nos Estados Unidos, a melhoria da regulação do homecare para os programas do Medicare em 1996, levou a uma redução da oferta desta modalidade por alguns anos, mais depois o setor, dado seus méritos assistenciais, retomou a sua expansão a partir de 2001.

No caso do Brasil, caberia à ANS, que regula as normas que regem planos de saúde, por princípios de racionalidade e benefício à coletividade, estabelecer regras claras de acesso, inclusão e elegibilidade ao homecare para os beneficiarios dos planos de saúde, bem como suas formas e modalidades de prestação e critérios de remuneração. O uso da capitação entre os contratos de empresas de homecare e planos de saúde poderia beneficiar a todos aqueles que necessitam desta modalidade assistencial, especialmente a população de terceira idade que começará a aumentar rapidamente nos próximos anos.


Sites para consulta

Homecare no Brasil - http://www.portalhomecare.com.br e http://www.homecareplus.com.br/

Homecare nos Estados Unidos - http://www.nahc.org/

sexta-feira, janeiro 15, 2010

Juljan Czapski: O Cavaleiro da Saúde (1925-2010)

Ano 5, No. 8, Janeiro 2010


André Cezar Medici




Finais dos anos cinqüenta. O país vivia a febre da segunda etapa da industrialização. A economia brasileira crescia a taxas razoáveis, após ser castigada pela relativa estagnação do Governo Café Filho. O Presidente Juscelino Kubitschek havia lançado a sua bandeira: crescer 50 anos em cinco e com isto atrair muitos capitais – nacionais e estrangeiros – para instalar um parque industrial novo e dinâmico. Muitos novos e bons empregos já estavam sendo criados.

A competição para absorver os melhores recursos humanos aumentava e as empresas passavam a oferecer algo mais além dos salários e parcos benefícios assistenciais. Não haviam opções públicas para prestar serviços médicos de qualidade. A assistência à saúde oferecida pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP) era antiquada e deficiente. Não dava conta das necessidades dos empregados nas empresas modernas que se instalavam no país. Os serviços médicos tinham que estar próximos às empresas e dar uma resposta rápida e de qualidade para a recuperação da saúde dos empregados. Além disso, deveriam dar-lhes a certeza de que suas famílias também estariam protegidas quando necessitassem cuidar de sua saúde. Muitas empresas passaram a organizar seus próprios serviços de saúde – especialmente as maiores. Mas a que custo? E as pequenas e médias empresas, como poderiam participar, sem as economias de escala necessárias?

Enquanto isso, um imigrante polônes – Juljan Czapski – fugido do holocausto da 2ª. Guerra Mundial para o interior do Paraná nos anos quarenta com seus pais e irmãos, havia recém terminado o curso de medicina na Universidade de São Paulo. Começou a trabalhar como residente no Hospital das Clínicas sob a supervisão do Professor Ulhoa Cintra. Como o pagamento era pouco, complementava seu salário como médico na Ultragáz – uma das empresas que se perfilava à nova estrutura moderna de benefícios de saúde.

Em 1956, uma greve na Ultragáz levou os donos a cortar os benefícios de saúde. Juljan, como alternativa à perda de emprego e graças a sua grande engenhosidade e capacidade de relacionamento, ofereceu ao dono da Ultragás e a outros empresários que conheceu, uma solução prática e de menor custo para manter a assistência médica de seus empregados: trocar os serviços médicos prestados dentro das empresas, que representavam um alto custo fixo e reduziam a flexibilidade empresarial, pela contratação de uma empresa médica para prover, simultaneamente, serviços de saúde à várias empresas tendo como remuneração um pré-pagamento mensal por empregado.

Como este tipo de empresa ainda não existia no Brasil, e sem saber da existência de experiências similares no exterior, Juljan criou, em 1956, a Policlínica Central – a primeira empresa de medicina de grupo no Brasil, similar em funcionamento às Health Mantainance Organizations norte-americanas que começaram a se estruturar na década de 1930.

O modelo da Policlínica Central no Brasil tem historicamente uma certa equivalência, ao modelo da Kaiser Permanente na California. O número de empresas afiliadas à Policlínica Central cresceu rapidamente. Clientes maiores, como Volkswagen, Chrysler, Simca, Briquedos Estrela e Alcan, passaram a fazer parte da carteira da Policlínica. Logo apareceram outras empresas médicas que foram criadas, seja para competir neste mercado, seja para oferecer os serviços em outras áreas fora do Estado de São Paulo, através de modelos consessionais. Este foi o caso da Policlínica de Porto Alegre, que utilizou o mesmo modelo da Policlínica Central, pagando uma franquia. No início dos anos sessenta, a Policlínica Central já prestava atenção médica a 30 mil vidas.

Ao nascimento da medicina de grupo, se seguiram muitas outras opções de atenção médica gerenciada no Brasil, tais como as cooperativas médicas e os seguros de saúde. Nos anos sessenta e setenta, se estrutura uma oferta de assistência médica que cumpria a grande função de atender às empresas mais bem estruturadas com uma medicina de melhor qualidade para os trabalhadores, funcionando não somente como um benefício importante mas também como um fator de regularidade do trabalho numa economia em crescimento.

Juljan Czapski foi um dos fundadores da Associação Brasileira de Medicina de Grupo de Empresa – ABRAMGE, em 1966, e foi seu primeiro presidente por 10 anos. Outras associações surgiram para consolidar as instituições de seguro de saúde, as cooperativas médicas (UNIMED) e as próprias empresa de grande porte que não aderiam ao modelo de medicina de grupo, mas mantiveram seus sistemas próprios de saúde.

Ao vender a Policlínica Central, no final dos anos sessenta, Juljan passou a atuar como provedor de saúde (Diretor do Hospital São Jorge) e fez importantes contribuições a várias outras entidades das quais não só fundou, como também promoveu, desde do Sindicato dos Hospitais de São Paulo (SINDHOSP), até a Federação Nacional de Estabelecimentos de Saúde (FENAESS). Participou ativamente das negociações que deram origem a CNS – Confederação Nacional de Saúde, esta última já nos anos noventa.

A debilidade do sistema público de saúde no Brasil levou Juljan a ser um dos negociadores, nos anos sessenta, de convênios entre as empresas e a Previdência Social, após a unificação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPS) no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) em 1967 que depois se converteram, após a criação do INAMPS - o braço de saúde da Previdência em 1974 – nos convênios INAMPS-EMPRESA. Através destes convênios, as empresas poderiam descontar parte da contribuição à saúde que pagavam para a Previdência e utilizar os recursos na compra de uma saúde de melhor qualidade que a do INPS, como a oferecida pelas distintas opções de atenção médica gerenciada já existentes no mercado.

Mas sua contribuição foi muito além do campo específico da medicina de empresa no Brasil. Sempre com um pé na geração de conhecimento e outro na busca de soluções práticas, Juljan realizou seus estudos de pós-graduação (mestrado e doutorado) na Faculdade de Saúde Pública da USP nos anos sessenta. Seu interesse por temas de saúde envolvia questões de prevenção e promoção, levando-o a defender a medicina preventiva e a atenção primária como forma de dar uma atenção à saúde de baixo custo, boa qualidade e passível de ser universal. Ele foi o único profissional do Brasil a participar na Conferência Mundial de Saúde de Alma Ata, em 1978. A declaração de Alma Ata defendeu a atenção primária como porta única de entrada dos sistemas de saúde.

As preocupações de Juljan iam também para outros temas, como o de sustentabilidade ambiental. Nos anos oitenta ele criou, em Itú (São Paulo), município onde passava os fins de semana, a Associação Ituana de Proteção Ambiental (AIPA) onde promoveu junto à comunidade, questões de educação ambiental e desenvolvimento sustentável, gastando de seus próprios fundos para pôr em prática idéias e gerar soluções que só vinte anos depois estariam no seio das preocupações coletivas.

Num momento onde o Estado não respondia adequadamente pelo setor saúde – como os anos sessenta e setenta – a medicina de empresa e sua fusão com as estratégias de assistência médica da Previdência foi fundamental para aumentar a massa crítica e a qualidade da assistência médica no Brasil. Juljan sempre defendeu o SUS, mas seu espírito crítico fazia com que ele buscasse soluções efetivas e racionais no âmbito deste sistema. Por muitos anos fez parte do Conselho Nacional de Saúde onde contribuiu definitivamente no processo de implementação do SUS.

Conheci Juljan no final dos anos oitenta e nos tornamos muito amigos. Aprendi com ele muita coisa e conheci e compartilhei muitas de suas realizações, sonhos e batalhas. Nos últimos anos de sua vida, Juljan se dedicava a inúmeros temas, dentre eles, a organização do Congresso Latino-Americano de Serviços de Saúde – CLAS-SAUDE, que se realiza anualmente na Feira e Forum Hospitalar, em São Paulo. Também participava ativamente dos Conselhos Estadual e Municipal de Saúde no Estado e Cidade de São Paulo, respectivamente.

Juljan morreu em 12 de janeiro de 2010 aos 84 anos, com muitos ideais e sonhos por cumprir, em uma fase ainda bastante ativa de sua vida. Mas, afinal de contas, sonhos e ideais não envelhecem. As últimas conversas que tivemos passavam, pela viabilização da universalização da saúde e por planos para tornar permanente a contratação de profissionais para dar assistência médica nas regiões desprovidas e remotas, como as áreas rurais, ribeirinhas e indígenas da Amazônia. É imperativo levá-las adiante.

Por tudo o que fez, por seu espírito crítico e atuação estratégica, Juljan Czapski foi uma espécie de Cavaleiro da Saúde no Brasil. Seu carater inovador, suas realizações e capacidade de liderança no setor abriram alas para que a infantaria da saúde, nos setores públicos e empresariais, pudesse passar e conquistar os espaços abertos. Quem mais se beneficiou de suas ideais e atuação foram as classes trabalhadoras num momento crucial da história brasileira, onde a inexistência de uma solução pública para a assistência médica poderia trazer grandes dificuldades à consolidação do mercado de trabalho e do crescimento econômico dos anos cinquenta aos anos setenta.

Links: http://www.hospitalar.com/noticias/not4264.html

segunda-feira, novembro 02, 2009

Barack Obama e a Reforma de Saúde Norte-Americana

Ano 4, No. 7, Novembro 2009


André Medici



1.Um país que não recebe o que gasta em saúde

Os Estados Unidos é um país sui-generis em seus gastos em saúde. E não é de hoje. Em 1960, quando os países da (atual) OCDE gastavam em torno de 4% do PIB com saúde, os Estados Unidos gastava 5%. Em 2007, a média da OCDE já havia chegado aos 9% mas os Estados Unidos estavam nos 16%. Por outro lado, enquanto os demais países mencionados alcançaram a cobertura universal de saúde para sua população, cerca de 16% dos norte-americanos (46 milhões de pessoas) se declaravam sem cobertura naquele mesmo ano e a cobertura não tem aumentado nos últimos quinze anos.

Olhando mais de perto, de um conjunto de seis países da OCDE que inclui os Estados Unidos, verifica-se que os norte-americanos, gastando em saúde uma média percapita de US$6,102 dolares anuais, dos quais US$878 somente em medicamentos , sofriam com o pior desempenho nos indicadores de qualidade, acesso, eficiência, equidade, além de vidas mais curtas e menos produtivas, quando comparado com países que gastavam entre US$ 2,083 (Nova Zelândia) e US$ 3,165 (Canadá) per capita-ano em saúde.

Mesmo pagando mais por saúde, os norte-americanos tinham pior acesso. Em 2008, os pacientes crônicos dos Estados Unidos compartilhavam com os canadenses o fato de que somente 26% conseguiam marcar consultas para o mesmo dia, porcentagem que variava entre 60% e 36% na Holanda, Nova Zelândia, Alemanha, França e Austria. Considerando o mesmo conjunto de países, os norte-americanos tinham mais dificuldades em conseguir atendimento noturno ou nos fins de semana e foram os que declararam maiores problemas associados a coordenação do cuidado, a erros em conduta médica e a problemas na administração de medicamentos aos pacientes. Somente 28% dos médicos tinham fichas clínicas eletrônicas de seus pacientes, comparados com percentagens superiores a 80% na Holanda, Nova Zelândia, Inglaterra e Austria. Em suma, 54% dos norte-americanos com doenças crônicas declararam ter problemas de acesso aos cuidados médicos em função dos altos custos e limitações administrativas, percentagem que não ultrapassava os 30% nos outros países mencionados da OCDE.

Como resultado, além de gastar muito e ser pior atendido, o norte-americano morre um pouco mais cedo do que seus pares nos países da OCDE. A esperança de vida ao nascer nos Estados Unidos em 2006 era de 78,1 anos, comparada com 78,9 em média nos demais países da OCDE . Paises como Australia, Canada, França, Islandia, Itália, Japão, Nova Zelândia, Noruega, Espanha, Suécia e Suiça tinham neste mesmo ano esperança de vida ao nascer superior aos 80 anos. A taxa de mortalidade infantil também é maior nos Estados Unidos do que ná média dos países da OCDE (6,7 por mil comparada com 5,1 por mil). As taxas de mortalidade por causas que poderiam ser postergadas por melhores cuidados a saúde alcançaram 110 por 100 mil habitantes nos Estados Unidos, valores superiores aos encontrados em pelo menos 14 países da OCDE .

Os Estados Unidos Unidos gasta 49% dos dispêndios mundiais de saúde, mas sua população é somente 5% da população mundial e mesmo assim, esse atendimento está atrelado a todos os problemas anteriormente mencionados. Entre os países da OCDE, é o que apresenta a maior participação do gasto privado e do gasto familiar sobre o total das despesas de saúde.

A queda de cobertura de saúde se explica por uma série de motivos: a) sendo o seguro de saúde voluntário para a maioria da população norte-americana, há aumentado o número de pessoas sem capacidade financeira de ter acesso aos planos de saúde cujo custo aumenta a cada ano em proporções superiores à inflação; b) o número de empresas que ofertam benefícios de saúde aos seus empregados tem diminutido com o tempo; c) os mercados individuais de planos de saúde limitam a cobertura de condições pré-existentes e as operadoras de planos de saúde podem rejeitar pacientes com base em seus riscos individuais .

Como resultado, os seguros de saúde se tornaram muito caros aos indivíduos (e também as pequenas e medias empresas) e 62% das bancarrotas familiares em 2007 estiveram associadas a custos relacionados à saúde nos Estados Unidos.
Entre os fatores que estão associados aos altos custos da saúde nos Estados Unidos se pode enumerar: (a) altos custos administrativos (7,4% comparados aos 4,4% na média da OCDE ); (b) altos salários e remunerações dos médicos; (c) alta utilização de profissionais e procedimentos especializados ou de cuidado intensivo como porcentagem dos serviços de saúde prestados e; (d) baixo uso de processos redutores de custo ou compartilhadores de risco como os pagamentos por capitação.

2.O que pode ensinar a experiência internacional?

O grande desafio dos Estados Unidos é alcançar maior cobertura e qualidade com menos gasto. Tal situação vem despertando discussões em muitos países. Uns chegam a dizer que podem ensinar aos americanos a sair do atoleiro e outros culpam, uma vez mais, o capitalismo selvagem e o modelo privatizante pelo fracasso na saúde norte-americana. Mas a realidade está muito longe disso.

Do ponto de vista econômico, a saúde é um setor singular e desde os escritos do premio nóbel Keneth Arrow nos anos sessenta, economistas da saúde vem destacando as peculiariadades econômicas deste setor que o fazem diferir dos demais. Os gastos em saúde são relativamente inelásticos e os custos do setor crescem basicamente em função de fatores externos (nível de renda e envelhecimento populacional) e internos (uso de tecnologia médica e modelos de gestão) ao setor.

Por todos esses motivos, alguns páises aprenderam que sem regulação adequada não há chances de aumentar a eficiência econômica do setor saúde. Esta regulação é cada vez mais complexa e deve atuar não apenas no sentido de reduzir falhas de mercado, mas também evitar importantes falhas de Estado, decorrentes do monopólio da provisão pública. Neste contexto, vale a pena separar o que os demais países eventualmente teriam a ensinar aos Estados Unidos, segundo seu grau de desenvolvimento

a)Os Países Desenvolvidos

Os países europeus, o Japão, a Austrália, o Canadá e a Nova Zelândia, não costumam dizer aos norte-americanos o que fazer. Na verdade, seus sistemas de saúde tem sido aprimorados também pela importação de inovações geradas pela experiência norte-americana de gestão em saúde (como os Grupos Relacionados de Diagnótico – DRG - e a separação da gestão de saúde da provisão de serviços), de modo a permitir que seus modelos estatizantes corrijam suas falhas de Estado através de mais concorrência regulada. Estes países (talvez com exceção do Canadá), depois de verem seus modelos de welfare state patinarem no gigantismo estatal, aprenderam que a gestão empresarial tem suas vantagens e procuraram dosar seus objetivos de cobertura universal, equidade e oferta pública com os incentivos e a gestão moderna de mercado.

Do ponto de vista da regulação, os países desenvolvidos tem usado os incentivos de mercado e a concorrência administrada para evitar as falhas de Estado no setor saúde. Apreenderam como usar o pooling de risco e os incentivos para controlar custos e preços e negociar melhor as compras públicas de serviços com distintos provedores. Trabalham de forma mais estruturada com os sistemas de tecnologia de informação para racionalizar o uso de pessoal, materiais e recursos de infra-estrutura clínica.

Os países europeus, por exemplo, tem como critério básico a regulação do mercado de seguro de forma a assegurar uma concorrência administrada e ajustada ao risco. Muitos fazem com que a cobertura seja compulsória e não voluntária e provêem subsídios para aqueles que não podem pagar por um plano de seguros.

Os países desenvolvidos, onde uma importante excessão é os Estados Unidos, tem tido melhores resultados em utilizar a saúde pública, a atenção primária e modelos de promoção e prevenção como forma de evitar gastos catastróficos em doenças crônicas. Promovem com mais eficiência mudanças no comportamento de risco de suas populações, incentivando-as a praticarem hábitos mais saudáveis, a reduzir o sedentarismo e vários outros fatores que levam ao aumento dos custos de atenção médica. Países como o Chile, por exemplo, após a ditadura, conseguiram estabelecer uma opção pública de cobertura para planos de saúde e regulação adequada para evitar descremes e recusas de cobertura por parte dos planos de saúde.

A maioria dos países desenvolvidos também tem utilizado modelos de atenção médica mais integrados, através de redes de saúde, como mostra o exemplo de médicos de família na Inglaterra e o uso frequente de regulação nas redes de saúde, facilitada pelas tecnologias de informação e pela regulação e controle dos processos de referência e contra-referência em saúde.

Por fim, mas não em menor importância, os países desenvolvidos tem avançado muito no uso da epidemiologia e na percepção dos usuários sobre seu estado de saúde na definição de prioridades sanitárias, a partir dos estudos de carga de doença. Ao definir prioridades de saúde, definem também os protocolos, as linhas de cuidado e os mecanismos de entrega destes serviços, estudam seus custos básicos e estabelecem mecanismos de compra pública ou privada de serviços que se baseiam nestes parâmetros.

Muitos destes estudos, processos e formas de integração do cuidado médico, ainda que tenham sido desenvolvidos e testados por instituições e universidades norte-americanas, não se encontram difundidos naquele país e lá são aplicados pontualmente e de forma voluntária (como pode ser visto na exitosa experiência da Kaiser Permanente na California). Nos demais países desenvolvidos, onde a regulação pública do setor está mais presente e fortalecida, este desenvolvimento tem sido acelerado nos últimos anos.

b)Os Países em Desenvolvimento

Alguns países em desenvolvimento, orgulhosos de seus modêlos, dizem que podem ensinar aos norte-americanos o que fazer, mas na verdade, o sucesso destes países está condicionado à passagem de situações sem cobertura para uma oferta razoável de serviços básicos de saúde. Seu desafio, portanto, não foi reduzir custos com melhorias na cobertura e qualidade, mas ao contrário, aumentar gastos para cobrir uma população amplamente carente de serviços. Grande parte da luta dos chamados “movimentos sanitários” dos países desenvolvidos está em aumentar e não reduzir gastos em saúde.

Os países em desenvolvimento, especialmente na América Latina, apresentaram grandes avanços em aumentar a cobertura, reduzir a mortalidade materno-infantil, estruturar modelos de atenção primária e equipes interdisciplinares de saúde e, através disso, melhorar o quadro da atenção básica nos últimos vinte anos. Mas seus indicadores de saúde (com algumas exceções como o Chile) ainda estão muito aquém da realidade dos países desenvolvidos. O desafio da qualidade e o fôsso de desigualdade no acesso ainda são maiores na América Latina do que nos Estados Unidos.

Os modelos inovadores de gestão pública, iniciados ha pouco tempo, e que conseguem baratear e melhorar a qualidade da oferta pública de serviços de saúde (como é o caso das Organizações Sociais ou Fundações Estatais no Brasil), são ameaçados ou entorpecidos pela atuação da justiça e dos movimentos sindicais dos profissionais de saúde que atuam contra os interesses da população mais pobre. Estes, em nome de lutar contra o fantasma da privatização da saúde, acabam privatizando de fato os recursos públicos nas mãos do corporativismo dos profissionais de saúde, levando o sistema público a trabalhar menos e beneficiar os que tem mais acesso à informação. Acabam defendendo (mesmo implicitamente) o uso das instituições públicas de administração direta em favor do interesse privado destes grupos, e não em favor das necessidades públicas dos grupos mais carentes da população.

Algumas estratégias exitosas de atenção primária e visitação em saúde em áreas remotas e modelos de asseguramento mais regulados utilizados nos países em desenvolvimento, podem se constituir em experiências transferíveis para os Estados Unidos, permitindo uma maior cobertura e uma melhor regulação da oferta. No entanto, dadas as diferenças epidemiológicas entre os Estados Unidos e estes países, temas como qualidade e capacitação teriam que ser retrabalhados no contexto norte-americano para que estas experiências visessem a apresentar bons resultados.

3.A reforma proposta pelo Presidente Barak Obama

O Presidente Barack Obama não tem sido o primeiro a propor uma grande reforma no sistema de saúde norte-americano. Outros presidentes norte-americanos já o fizeram, incluindo mais recentemente Bill Clinton.

O Plano Clinton, entre as iniciativas anteriores de reforma de saúde, foi o que chegou mais perto de um processo efetivo de atacar os desafios da inequidade e falta de acesso à saúde nos Estados Unidos, mas as resistências de vários setores da sociedade não permitiram que o plano sobrevivesse. No entanto, ele foi o embrião de várias iniciativas de reforma e extensão de cobertura iniciadas ao nível dos Estados norte-americanos, destacando-se a de Massachussets – a primeira iniciativa estadual a propor um plano de cobertura universal de saúde com responsabilidade mútua do Estado, dos empregadores e das famílias. Estas reformas estaduais, nos últimos anos tem cimentado o consenso, ainda que de forma parcial de que algo deveria ser feito e algumas experiências exitosas – tanto no setor público como no setor privado – tem sido capazes de demonstrar caminhos que poderiam ser traçados para lograr maior cobertura e qualidade a custos menores.

A atual proposta de reforma de saúde norte-americana tem sido apresentada no debate público pela necessidade de enfrentar cinco desafios: (a) extensão de cobertura para todos; (b) organização do cuidado em torno do paciente; (c) incentivos financeiros para reduzir custos; (d) atenção médica eficiente e de qualidade; (e) regulação pública e integração entre os sistemas públicos e privados.

a)Extenção de cobertura acessível para todos

O desafio neste caso é extender (de forma mandatória) a cobertura para todos, incluindo os 46 milhões de norte-americanos que não tem um seguro de saúde. Para que este desafio seja solucionado, algumas medidas estão sendo propostas pelo Governo e discutidas pelo Senado Norte-Americano. Abaixo se descreve o resumo das propostas vigentes até outubro do presente ano.

• Quanto aos indivíduos, incentivos fiscais, como deduções de até US$750 por pessoa coberta no imposto de renda seriam aplicáveis. Ao mesmo tempo, multas individuais de até US$750 por pessoa também seriam aplicáveis no caso de não haver cobertura, excluindo aqueles que por falta de renda não tivessem condições de pagar por um seguro;

• Quanto as empresas, a proposta original apresentada pelo Governo diz que aquelas com mais de 50 empregados, terão que pagar, a partir de 2013, uma multa por trabalhador não coberto por plano de seguro de saúde. As pequenas empresas (com menos de 50 empregados) receberão incentivos (deduções) fiscais para afiliar seus trabalhadores a planos de saúde. O Senado propôs, como alternativa, que empresas com mais de 25 empregados pagariam 60% do valor do prêmio por empregado e que as multas por trabalhador de tempo parcial não coberto seriam de somente US$375 por empregado por ano. As pequenas empresas, ao invés de ter deduções fiscais receberiam subsídios públicos para afiliar seus empregados.

• Quanto ao Mercado de Seguro Saúde, seriam aplicados processos regulatórios para disciplinar os planos privados e oferecer novas opções, extendidos também ao setor público e às cooperativas. Os planos deverão ter um conjunto mínimo de benefícios que serão reembolsados por valores entre 70% e 95% dos seus custos atuariais estimados. Os planos deverão ser diferenciados por grupos de idade (três a quatro grupos, incluindo na proposta do Senado, uma apólice especial para jóvens adultos) e deverão ter portabilidade, de modo a permitir opções de troca de operadoras de planos pelos pacientes sem perdas de direitos de cobertura.

• Quanto ao Estado, seria oferecida uma opção pública, isto é, a criação de uma agência governamental que ofereceria planos de saúde, tendo a capacidade de captar aquelas pessoas não incluidas ou aceitas nos planos privados de saúde, porque não podem pagar ou porque, dado seu nível de risco, seriam recusadas pelas operadoras. Esta agência não subsidiaria o preço dos planos, mas buscaria eficiência e evitaria abusos praticados pelos planos na busca por pacientes que representam lucro fácil pelas operadoras, por terem menor risco. Assim como o Medicare, esta agência não proveria diretamente serviços de saúde, mas contrataria provedores privados. Isto poderia evitar que parte dos 46 milhões de pessoas sem cobertura tivessem alguma opção para seus problemas específicos de saúde, mesmo que rechaçados por operadoras existentes no mercado privado .

b)Organização do Cuidado em Torno ao Paciente

A proposta neste caso consiste em criar estímulos para aumentar as medidas de cuidados de prevenção e comportamento saudável dos pacientes e estimular os serviços de atenção básica. No primeiro caso, o Governo Federal propõe o desenvolvimento de uma estratégia nacional de promoção e prevenção em saúde, investindo e dando recursos de doação para o apoio a programas preventivos junto às comunidades, assim como incentivos financeiros aos indivíduos e planos de saúde para o cumprimento de estratégias de promoção e prevenção.

Alguns elementos da proposta são: (a) eliminar o co-financiamento do usuário para as ações de promoção e prevenção comprovadamente necessárias em programas públicos como o Medicare , (b) estimular a mesma prática em planos privados de saúde e (c) criar rotinas incentivadas de visitas anuais para prevenção e avaliação de risco de saúde.

No caso dos serviços de atenção básica, a proposta é aumentar o valor da remuneração dos médicos de atenção primária no Medicare em proporções superiores que as remunerações recebidas pelos especialistas. Dado que grandes volumes de serviços curativos a pacientes crônicos idosos representam gastos crescentes no Medicare, essa proposta estimularia maior promoção e prevenção de modo a reduzir o gasto no programa público mais caro de saúde norte-americano. Algumas das emendas propostas pelo Senado são a criação de bonus aos médicos de atenção primária em até 10% sobre os valores faturados durante os cinco primeiros anos da reforma, ao lado de cortes nos pagamentos aos demais serviços médicos especializados em 0,5%.

c)Incentivos Financeiros para Reduzir Custos

Nesta área, as propostas do Governo e as emendas do Senado vem trabalhado em projetos pilotos de pagamento de provedores inovadores. As inovações no sistema de pagamento aparecem através de propostas de clínicas de familia (medical homes), organizações de prestadores mais transparentes (accountable care organizations) e hospitais de contra-referencia e atenção pós-agudos (bundled hospital and post acute care).

Estas inovações permitem testar formas mais baratas e integradas de pagamento a provedores que, uma vez que se provem funcionais, seriam aplicadas em massa em sistemas públicos como o medicare e medicaid. Para aumentar os incentivos a estas experiências, o governo poderia estabelecer fundos especiais (grants) para seu financiamento.

d)Atenção Médica Eficiente e de Qualidade

As propostas relacionadas a este campo estariam estruturadas como melhorias na produtividade do sistema, análises comparativas de efetividade clínica e melhoria da qualidade dos serviços.

• Melhorias na produtividade poderiam surgir alinhando incentivos financeiros aos procedimentos mais custo-efetivos, atualizando permanentemente protocolos médicos e sistemas de pagamento prospectivo de acordo com estes princípios e compondo a cesta de procedimentos recomendados por estes critérios;

• Análises Comparativas de Efetividade seriam possibilitadas através da criação de Centros de Pesquisa que permitissem avaliar os resultados clínicos de diferentes tipos de intervenções em saúde, permitindo a seleção daqueles que comprovadamente demonstrassem melhores resultados por custo incorrido.

• Melhorias na Qualidade dos Serviços seriam alcançadas através da criação do Centro para Melhoria da Qualidade (Center for Quality Improvement) de forma a identificar, desenvolver, avaliar, disseminar e implementar as melhores práticas clínicas, estudar e definir as prioridades nacionais em saúde para melhorar o desempenho das instituições de saúde e definir indicadores e medidas de qualidade em saúde. Para tal, também se discutem fundos públicos para apoiar experiências inovadoras para melhorar a eficiência dos serviços. A proposta ainda contempla o estabelecimento de uma estratégia nacional, regulada pelo Estado, para o desenvolvimento da qualidade em saúde.

e)Regulação Pública e Integração entre os Sistemas Públicos e Privados

O Mix público-privado de serviços de saúde nos Estados Unidos existe desde o momento em que programas públicos como o Medicare e Medicaid passaram a utilizar, nos anos oitenta, planos privados de saúde, em alguns contextos, para executar os serviços, seja através da contratação por risco (capitação) seja através da compra direta (fee for service).

No entanto, o Plano Obama vai um pouco mais além desse processo, quando estabelece regulações nos mercados de saúde, define novos estandares de serviços, obriga planos de saúde e provedores de serviços a divulgar resultados e performance. O Plano Obama também cria a opção pública de seguro como forma de balizar o mercado de acordo com as expectativas do Governo e forçar as empresas privadas a terem um desempenho próximo ao que se estabelece no novo arcabouço de regulação do sistema.

4.Impactos financeiros e perspectivas de aprovação

Embora a reforma ainda não tenha sido definida a totalidade dos elementos que irão compor a Reforma de saúde proposta pelo Presidente Obama e muitas mudanças ainda podem vir a modificar o atual desenho do projeto, estudos preliminares estimam que a Reforma permitiria reduzir o número de pessoas sem cobertura de 50 para 17 milhões entre 2012 e 2019. Também se espera uma redução no rítmo de crescimento dos custos per-capita do sistema.

Sem as reformas, os gastos totais em saúde norte-americanos, estimados em US$2,5 trilhões em 2009, poderiam variar entre US$4,4 e US$ 5,0 trilhões em 2020 (baseado em tendências de crescimento anual de 4,4% a 6,5% ao ano), o que implicaria um incremento anual de despesas em saúde entre US$ 173 e U$227 bilhões, representando mais de 20% do PIB em 2020.

Com as reformas, num cenário otimista, os gastos em saúde nos Estados Unidos a valores médios poderiam reduzir-se em US$ 81 bilhões entre 2009 e 2020 (US$7 bilhões por ano) ou aumentar apenas US$239 bilhões no mesmo período (US$ 22 bilhões por ano) . Com isto, o gasto per-capita em saúde poderia estagnar-se ou até mesmo reduzir-se, considerando-se como cenário de base uma moderada recuperação da economia norte-americana no mesmo período.

Mais importante do que isso, seria o fato de que, ao lado da redução dos gastos, haveria uma melhoria da saúde da população, aumentando a cobertura, a qualidade, a satisfação e os resultados sanitários e re-colocando o país nos trilhos de um rápido aumento da expectativa de vida, como vem ocorrendo em outros países da OCDE.
No entanto, existem muitas resistências da sociedade norte-americana às reformas de saúde:

a. Resistência da população (ou parte substancial da classe média) que acredita num modêlo onde a liberdade de escolha é um valor inquestionável e que estaria disposta a pagar mais para mantê-la. Reformas de saúde costumam limitar a liberdade dos clientes em escolher profissionais e unidades de saúde de sua preferência;

b. Resistência dos médicos e outros profissionais liberais em saúde que preferem um modêlo que não padronize seu saber e que lhe dê também liberdade para ofertar tratamentos alternativos e diferenciados, cobrando livremente por isto. A força e o poder corporativo da classe médica norte-americana faz com que estes manejem muito bem a autonomia de sua profissão fazendo com que linhas de cuidados, protocolos, DRGs e avaliações clínicas estejam longe de suas aspirações, especialmente na costa leste do país;

c. Resistência das empresas médicas, por motivos similares aos dos médicos, e também pela necessidade de atuar livremente no mercado de venda de serviços, tendo a liberdade de recusar contratos com seguradoras de saúde ou mesmo com corporações;

d. Resistência das companhias de seguro ou gestão de saúde (HMOs) que não querem se submeter à regulação pública de vários aspectos que afetam negativamente as finanças em saúde, tais como tarifas ou prêmios de seguro, uso de co-pagamentos, uso de pre-existências para limitar o conjunto de serviços ofertados ou mesmo à possibilidade de recusar pacientes quando estes atuariamente não compensam;

e. Resistência das empresas de advocacia de saúde que querem manter um mercado livre de negociação de mandatos judiciais (e sua livre interpretação pela corte) quando pacientes se sentem lezados pelas consequências físicas, morais e psicológicas dos erros médicos.

O conjunto dessas resistências vale trilhões de dólares e se torna cada vez mais difícil administrar o orçamento público e as finanças familiares para custear o volume de recursos que elas representam. O resultado tem sido o aumento do deficit público em função do desfinanciamento progressivo de programas públicos como o medicare e o medicaid, mas também o desfinanciamento das famílias e empresas que não conseguem mais custear os planos de saúde, reduzindo a cobertura e a qualidade dos serviços entregues pelos planos de saúde.

Mas existem expectativas de que as reformas propostas possam passar no Congresso e, neste momento, vários segmentos conservadores da sociedade norte-americana, inclusive republicanos, já se posicionam favoravelmente. Tal fato se associa ha algumas características especiais da reforma. Ela mantém o espírito de que a saúde dever preservar o pluralismo e a concorrência, bem como a liberdade de escolha num sistema capitalista como o americano. No entanto, ressalta a função do Estado como regulador de um tema onde é notória a assimetria da informação , intensificando o cumprimiento dos direitos humanos básicos e implementando a subsidiaridade aos grupos socialmente mais frágeis.

Em seu discurso de posse presidencial, Barack Obama disse que não foi o primeiro presidente norte-americano democrata a tentar uma reforma de saúde, mas afirmou que será o primeiro a não desistir de que essa reforma seja feita durante o seu mandato. O que hoje se espera, não só nos Estados Unidos, como em todo o mundo, é que essa promessa se cumpra. Ao ser cumprida e mostrar bons resultados, quem sabe, se os países em desenvolvimento que ainda mantem a inequidade, seja pelo conservadorismo, seja pela enganação social e pelo ilusionismo fácil do populismo, poderiam renovar seu arsenal de soluções para um sistema de saúde efetivo e adequado às sociedades emergentes do século XXI?

Notas


1. Economista Senior do Banco Mundial (LCSHH) em Washington (email amedici@worldbank.org)

2. Os países são Australia, Canada, Alemanha, Nova Zelândia, Inglaterra e Estados Unidos. Os dados foram obtidos no trabalho de K.Davis et alii, “Mirror, mirror on the wall: An International Update on the Comparative Performance of American Health Care”: The Commonwealth Fund, May 2007.

3. Por outro lado, os norte-americanos tem mais rápido acesso a medicamentos de última geração que a população dos demais países da OCDE.

4. O economista e demógrafo Cassio Turra, professor do CEDEPLAR-UFMG, enviou-me a referência de um recente artigo de Preston e Ho que trata do tema da eficiência do sistema de saúde norte-americano em reduzir a mortalidade nos pacientes que não tem comportamento de risco. (Ver http://www.nber.org/papers/w15213).
Os autores mostram que, comparativamente a outros paises, o sistema americano tem sido mais eficiente na reducao da mortalidade por causas que tem pouca relação com comportamentos de risco. No entanto, o sistema tem falhado em admitir pacientes que tenham maior risco. Esta posição reduz as chances de pacientes sem cobertura prévia e com pré-existência de doenças crônicas serem admitidos pelos planos de saúde, aumentando sua chance de mortalidade precoce.

5. França, Japão, Australia, Espanha, Italia, Canada, Noruega, Holanda, Suecia, Grecia, Austria, Alemanha, Finlandia, Nova Zelândia, Dinamarca, Inglaterra, Irlanda e Portugal em ordem crescente.

6. Ver E. Docteur et. Alii, “The U.S. Health System: Assessment and Directions for Reform”, OECD Economics Department Working Paper, 2003.

7. Entre os países da OCDE, somente México e Luxemburgo tem custos mais elevados que os Estados Unidos.

8. As taxas adicionais a serem cobradas, na proposta modificada pelo Senado em 22 de Setembro de 2009 se iniciariam com US$ 200 em 2014; US$400 em 2015; US$600 em 2016 até chegar a US$ 750 em 2017.

9. Sobre a experiência chilena e a defesa da opção pública, ver Mesa-Lago, C. ; “Don´t fear health-care lessons: government insurance has worked well in Latin-America”, in Post-Gazette, October 28, 2009 - http://www.post-gazette.com/pg/09301/1008727-09.stm?cmpid=news.xml#ixzz0VLhFBjSF

10. Atualmente, os cidadãos abaixo do nivel de pobreza, beneficiários do Medicaid, não precisam co-pagar ou co-financiar ações preventivas e promocionais, mas a presença destas ações nestes programas não é muito frequente, assim como é baixa a coordenação entre ações públicas do Medicaid com os programas de prevenção de doenças transmissíveis e crônicas do Center for Disease Control (CDC) – orgão responsável pela vigilância epidemiológica e estratégias de saúde pública do governo norte-americano. Programas como o Healthy People (Gente Saudável), implementados pelo CDC deveriam permear os programas ofertados, não somente pelos planos públicos (Medicare e Medicaid), mas também pelos planos privados de saúde.

11. Estimativas preliminares do coordenador da Comissão Financeira do Senado Norte-Americano de 7 de outubro de 2009.

sexta-feira, maio 08, 2009

Uma avaliação detalhada das reformas da previdência e da saúde na América Latina


Ano 4, No. 6, agosto 2009


André Medici
 

Reassembling Social Security – A Survey of Pensions and Health Care Reforms in Latin America, Carmelo Mesa-Lago, New York, Oxford University Press, 2007.

Carmelo Mesa-Lago é um dos mestres no tema de economia da seguridade social na América Latina. Nos últimos 40 anos, suas idéias, livros e artigos têm influenciado muitas gerações de economistas, cientistas sociais e gerentes públicos especializados em temas de previdência social e saúde na Região.
O presente livro traz evidências, análises de processos e dados comparativos sobre as reformas da seguridade social nos países da Região ocorridas entre 1980 e 2001.A obra busca responder, em suas quase 500 páginas, a muitas perguntas polêmicas: Como as reformas de pensões e de saúde na América Latina nos anos noventa buscaram resolver problemas estruturais acumulados pela crise dos antigos sistemas de seguridade social? Que princípios as orientaram? Elas ampliaram a cobertura, a equidade e atenderam as necessidades acumuladas das populações? Houve privatização no contexto das reformas? Se houve privatização, seus impactos foram positivos ou negativos? Como as organizações internacionais e multi-laterais reagiram a estas reformas? Como as reformas atacaram os temas de sustentabilidade da seguridade social a longo prazo? Os objetivos de equilíbrio atuarial e financeiro preconizados pelas reformas foram alcançados? E se foram, prejudicaram os alcances sociais dos sistemas de saúde e de pensões? Como elas tem enfrentado o rápido processo de transição demográfica na América Latina? Poderiam estar ameaçadas pelo contexto da evasão fiscal, da informalidade do trabalho e pelo fechamento da janela de oportunidade demográfica na Região?
A primeira parte do livro analisa os princípios que orientaram as reformas nos marcos das mudanças que ocorrem a partir da considerada década perdida dos anos oitenta. O pioneirismo da reforma chilena – controversial pelo fato de ter ocorrido num contexto ditatorial, onde os atores relevantes não puderam ter voz, mas eficiente em seus resultados, foi o embrião de transformações que levaram organismos internacionais e muitos governos latino-americanos a adotar novos princípios de gestão das políticas de previdência social e saúde nos anos noventa.Os países que sairam na frente alcançaram os estandares mínimos de cobertura, qualidade e eficiência, mas do total de países da Região, cinco não alcançaram os estándares nos temas de pensões e dez não alcançam os mínimos requerimentos de cobertura de saúde. Além do mais, os sistemas de saúde e pensões acabaram se estratificando, acentuando desigualdades de acesso e qualidade a benefícios e serviços que são injustificáveis quando comparados aos recursos gastos.
Sistemas baseados em privilégios (como os de militares, legislativo e judiciário) continuaram a existir e a ser financiados com recursos gerais de impostos pagos por toda a sociedade.Ainda que o princípio da solidariedade permeie o discurso de todas as reformas, na prática, os sistemas tem se tornado progressivamente mais regressivos e estratificados. Os benefícios pagos e serviços prestados pelos sistemas de seguridade social públicos acabaram tendo um impacto regressivo nas sociedades latino-americanas. Esta estratificação acabou sendo acompanhada por um pluralismo institucional marcado por forte descoordenação e duplicação, reduzindo a eficiência dos sistemas de pensões e de saúde. Neste contexto, a atuação do Estado, acabou falhando e a gestão pública tem gerado altos custos administrativos. Deficits públicos crescentes ameaçam a sustentabilidade dos sistemas de pensões, especialmente os que optaram por manter a gestão baseada em repartição simples.
Mas os sistemas de capitalização individual também tem gerado efeitos negativos como o pagamento de benefícios menores que os esperados. A manutenção de elevados custos administrativos em sistemas compulsórios de capitalização individual, e a ausência de risco associado à gestão financeira dos recursos, faz com que estes sistemas remunerem regiamente as empresas gestoras, mesmo em momentos onde as taxas de retorno líquidas das aplicações são negativas para os assegurados.
A segunda parte do livro analisa os efeitos das reformas de pensões descrevendo sua taxonomia das reformas, metas e o papel dos atores principais. Temas como a cobertura universal, políticas de igual tratamento, solidariedade, elegibilidade, o papel regulador do Estado, a sustentabilidade financeira, a eficiência e a participação social são abordados de forma comparada.Poucas evidências existem nos países da Região sobre o papel positivo atribuido aos sistemas privados compulsórios de capitalização individual no aumento das taxas de poupança nacional e melhoria no desempenho dos mercados de capitais. Debilidades na regulação, falta de coordenação dos atores envolvidos e a ausência de monitoramento e avaliação têm dificultado a existência de bons resultados financeiros nesses sistemas.
A terceira parte do livro, analisa as reformas nos sistemas de saúde quanto a universalização da cobertura, equidade, integralidade do acesso, aos papéis dos setores público e privado, gestão de custos, eficiência, participação social e resultados alcançados. Também são feitas considerações sobre a sustentabilidade futura desses sistemas, frente às metas propostas e aos recursos disponíveis para seu financiamento. Comparando as reformas nos sistemas de saúde e pensões, o autor conclui que que avaliar o impacto das primeiras é mais difícil, dadas a existência de maior diversidade e complexidade nos desenhos, a falta de análises comparadas sobre seus resultados em distintos países e sua formulação mais recente em relação às últimas.
As metas de alcançar cobertura universal em saúde não foram logradas até o momento, mas a inequidade na cobertura diminuiu. Temas como a qualidade percebida dos serviços são também analisados em sete países da região. Apesar dos esforços, poucas reformas alcançaram uma padronização da cobertura e a eliminação ou coordenação do pluralismo institucional previamente existente, mantendo os sistemas fragmentados e as desigualdades no acesso.Baseado na análise das duas partes anteriores, o autor dedica a última parte a recomendações para aprimorar a seguridade social na Região.
Poucos livros lograram atingir tão ambiciosos propósitos e foram tão bem documentados. A presente obra de Carmelo Mesa-Lago é uma leitura obrigatória para acadêmicos, gerentes e profissionais em temas de políticas de previdência social e saúde. Dada a complexidade e dispersão das evidências existentes na América Latina, este livro, mais do que uma fonte de informação, é um poderoso instrumento de navegação para pensar o futuro desta complexa e enevoada área de conhecimento na Região.

sexta-feira, novembro 23, 2007

Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e o Acesso a Medicamentos Essenciais

Ano 2, No.5, Novembro de 2007
André Medici
O acesso a medicamentos essenciais é um dos principais fatores que garante a efetividade dos serviços de saúde. Medicamentos são, para os processos de prevenção, tratamento e rehabilitação de enfermidades, tão importantes como as vacinas são para os processos de imunização. Uma consulta médica raramente alcança o resultado positivo esperado quando o paciente não tem acesso aos medicamentos prescritos.

Dada sua relevância, a universalização do acesso a medicamentos essenciais foi considerada como uma das metas associadas aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM)[1]. A Meta 17 dos ODM compromete os governos dos países desenvolvidos, entre 1990 e 2015, a “proporcionar, aos países em desenvolvimento, em cooperação com as empresas farmacêuticas, acesso aos medicamentos essenciais a preços razoáveis”.

Não há como negar a contribuição que reuniões como essa tem trazido à história recente da humanidade. Em geral, elas funcionam como algumas leis promulgadas pelos congressos nacionais. Se definem compromissos institucionais que, muitas vêzes, não tem um alcance viável nos prazos estabelecidos, mas que funcionam como mecanismos de pressão para o progresso social[2]. Mas para que estas reuniões ganhem credibilidade junto a população, se deveria, ou postular objetivos e metas mais realistas, ou aumentar a capacidade de fazer cumprir os compromissos estabelecidos.

A primeira dificuldade em cumprir a meta 17 dos ODM está em encontrar uma definição operacional sobre o que são medicamentos essenciais. A segunda dificuldade, uma vez resolvida a primeira, consiste em definir os mecanismos de cooperação entre empresas farmacêuticas e govêrnos para que se encontre algum nível de compromisso com a obtenção do que se chama de “preços razoáveis”. A terceira dificuldade consiste em mobilizar os recursos humanos, financeiros e logísticos, ao nivel de cada país, para facilitar o acesso aos medicamentos essenciais. Tal mobilização não depende das indústrias farmacêuticas, mas sim dos governos nacionais que, na maioria dos países em desenvolvimento, não encontraram até hoje mecanismos razoáveis de regulação e gestão que combinem a extensão de cobertura dos serviços de saúde com o acesso regular a medicamentos essenciais, especialmente nas localidades onde vivem os mais pobres e excluídos.

O conceito de medicamentos essenciais é, ao mesmo tempo, simples e complexo. Simples pela sua definição. Complexo pela dificuldade de aplicação ao contexto específico de cada país ou região. Vejamos o que diz a definição dada pela Organização Mundial de Saúde (OMS): “Medicamentos essenciais são aqueles que satisfazem as necessidades prioritárias de saúde da população. Eles são selecionados de acordo com sua relevância em saúde pública, segundo evidências de sua eficácia e segurança e em conformidade com a melhor relação custo-efetividade. Medicamentos essenciais devem estar sempre disponíveis para atender às necessidades dos sistemas de saúde, nas proporções e dosagens adequadas, com qualidade assegurada e informação adequada, e a um preço que os indivíduos e as comunidades possam pagar[3].

Sabemos que as necessidades de saúde não são as mesmas para cada tipo de nação ou região. Portanto, os medicamentos essenciais que deveriam estar disponíveis para os países como Rwanda não são os mesmos que deveriam estar disponíveis na Finlândia. Necessidades de saúde estão associadas, basicamente ao ranking de patologias que formam a carga de enfermidade, tanto associada à mortalidade como a morbidade, atribuível a cada país.

É por este motivo que a OMS elabora, desde 1977, uma lista de medicamentos essenciais, a qual é constantemente atualizada através de consultas aos países membros. A primeira lista continha cerca de 200 medicamentos e a atualmente vigente conta com cerca de 310. No entanto, pouco tem avançado, em termos práticos, a possibilidade de alcançar a disponibilidade e acesso a estes medicamentos na maioria dos países.

Entre os ODM, podemos encontrar cinco metas específicas associadas ao setor saúde: a meta 2 (associada à redução da fome e da desnutrição); a meta 5 (associada à redução da mortalidade de crianças menores de 5 anos); a meta 6 (associada à redução da mortalidade materna); a meta 7 (associada à redução da incidência de HIV-AIDS) e a meta 8 (associada a redução de malária e outras doenças transmissíveis). Ao nivel global, se tem defendido que estas metas deveriam ser àquelas para as quais se deveria priorizar a produção de medicamentos essenciais. Esse tem sido o entendimento que se tem levado a cabo nos acordos comerciais associados à produção de medicamentos, onde as empresas farmacêuticas, organismos internacionais e mega-entidades filantrópicas privadas como a Fundação GATES tem buscado meios para tornar acessível o acesso aos medicamentos essenciais associados ao alcance destas metas.

Se observarmos quanto os ODM representam da carga de doença (medida em anos de vida saudáveis – AVISA - perdidos) de cada Região Mundial vamos descobrir que existe uma grande discrepância entre as metas do milênio e as prioridades de saúde de cada Região. Enquanto as metas de saúde associadas aos ODM representam mais de 95% da carga de doença (AVISA perdidos) da África Sub-sahariana, eles representam somente 6% da carga de doença dos países de industrialização avançada, 11% da do Leste Europeu e Ásia Central e 17% nos países da América Latina e Caribe, respectivamente.

Portanto, os medicamentos essenciais para a África Sub-Sahariana, onde a mortalidade infantil, a desnutrição e as doenças infecciosas respondem pelo grande déficit de AVISA, não deveriam ser os mesmos para cobrir as necessidades da América Latina e Caribe, onde a maioria dos AVISA perdidos se associa a doenças crônicas e a causas externas, e onde os mais pobres morrem precocemente pela falta de acesso aos medicamentos caros para o tratamento de fatores de risco como pressão arterial, colesterol elevado ou diabetes.
Uma versão completa deste artigo, com dados e evidências sobre os medicamentos essenciais na Região, pode ser encontrada na Revista Saúde em Debate, No. 72, junho-abril de 2006, Ed. CEBES. Abaixo pode ser encontrado o link da Revista
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[1] Os ODM foram estabelecidos através de acordos entre os países em diversas reuniões internacionais, realizadas entre 1996 e 2002. A Declaração do Milênio das Organização das Nações Unidas (ONU), realizada em setembro de 2000, consensuada por 189 países, pactuou um conjunto de 8 objetivos, desdobrados em 18 metas que seriam essenciais para a redução das disparidades globais e aceleração do desenvolvimento dos países mais pobres e deveriam ser atingidas até o ano 2015. Estas metas foram rediscutidas na Conferencia de Monterrey, em março de 2002, onde se consensuou a responsabilidade dos países ricos em mobilizar recursos para o desenvolvimento e na Conferência de Johannesburg, realizada em setembro de 2002, onde se enfatizou o compromisso global com a redução da pobreza.

[2] Um interessante exemplo foi dado pela Organização Panamericana de Saúde que, nos anos 80, definiu como lema para a América Latina, a meta “Saúde para todos no ano 2000”. Ao participar de uma reunião nesta mesma entidade no ano 2000, fui testemunha ocular de um interessante discurso, quando, ao deparar-se com a realidade dos indicadores de saúde regionais, as autoridades presentes redefiniram a meta como “Saúde para todos no prazo mais curto possível”.
[3] WHO (2002), “The Selection and Use of Essential Medicines”. Report of the WHO Expert Committee, including the 12th Model List of Essential Medicines. WHO Technical Report Series No.914.

quarta-feira, agosto 01, 2007

Responsabilidade Social, Meio-Ambiente e Saúde

Ano 2, No.4, Agosto de 2007
André Medici

Os resquícios do passado
Nos últimos 30 anos, a preocupação com a aceleração do processo de degradação ambiental, antes restrita a cientistas, militantes de movimentos ecológicos ou a grupos mais bem informados, ganhou dimensões sociais mais amplas. Movimentos internacionais mobilizam milhões de pessoas em todo o mundo na defesa de soluções para reduzir os efeitos negativos do atual processo de desenvolvimento ao ponto de promover uma sociedade ambientalmente sustentável. Projeções baseadas em estudos científicos e evidencias estatísticas mostram que os efeitos do aquecimento global serão maiores e irreversíveis se não mudarem os atuais modos de produzir, consumir e utilizar os recursos naturais renováveis e não renováveis existentes no planeta.

O desenvolvimento das sociedades de consumo modernas trouxe muitos benefícios para a humanidade. Os últimos 250 anos marcaram um progresso sem precedentes na disponibilidade de bens, na redução da pobreza relativa, na cura de doenças transmissíveis e não transmissíveis e no prolongamento da vida. Como conseqüência deste padrão de desenvolvimento, a população mundial passou de 700 milhões a 6,1 bilhões de habitantes no ano 2000, podendo chegar aos 8,9 billhões em 2050. Cerca de 90% desta população estará vivendo em países em desenvolvimento, como o Brasil, e a maioria delas vivera em áreas urbanas.

Da mesma forma como podemos atribuir aos países desenvolvidos os benefícios trazidos pelo processo de desenvolvimento global, dada a capacidade destes na geração de ciência e tecnologia associada ao progresso das condições materiais da humanidade, podemos dizer que os problemas ambientais globais seriam resultado, majoritariamente, do padrão de consumo desses mesmos países. A globalização, ao aumentar a inter-dependência produtiva internacional, tem reduzido a sustentabilidade ambiental ao aumentar a divisão internacional do trabalho baseada em vantagens comparativas e intensificar o rítmo de exploração de recursos naturais, energia e produção de poluentes e emissões que reduzen a disponibilidade de recursos naturais renováveis e contribuem com o aquecimento global e a mudança climática. A escala crescente e cumulativa das atividades humanas tem provocado impactos ambientais de caráter mundial, como a diminuição da camada de ozônio, a redução da biodiversidade, e o aumento da desertificação e da seca (chamados "males públicos globais"), os quais afetam interesses comuns que extrapolam perspectivas nacionais.

Os países em desenvolvimento também tem sua cota de responsabilidade dado que, nos anos mais recentes, tem contribuido com atividades que acentuam o desmatamento, a desertificação e a redução dos mananciais hídricos, intensificando os problemas emergentes anterioremente mencionados. Países de industrialização recente que se incorporaram massivamente à produção para o consumo mundial, como a China e a Índia, intensificam ainda mais esse processo, dadas suas elevadas taxas de crescimento e o uso de processos tecnológicos condenados por sua alta contribuição aos fatores que causam a inseguridade ambiental contemporânea. Nestes países, dada a imensa desigualdade social, as consequências da degradação ambiental são sofridas diretamente pelas populações mais pobres, onde questões como a falta de saneamento e condições inadequadas de moradia são intensificadas pelo esgotamento de recursos naturais (água, solos, etc.) e pela má qualidade ambiental.

Portanto, não se pode atribuir o atual grau de degradação ambiental global apenas ao crescimento da população, mas principalmente aos padrões de produção e consumo. O futuro da problemática ambiental mundial dependerá basicamente da evolução do grau de incorporação de países atualmente em desenvolvimento aos padrões de uso de recursos naturais que progressivamente passam a prevalecer nas sociedades industrializadas e do ritmo de desenvolvimento e adoção de tecnologias que permitam padrões de produção e consumo mais condizentes com o bem-estar ambiental, tanto nos países atualmente desenvolvidos, como naqueles que deverão se desenvolver nos próximos anos.

Saúde e Meio Ambiente nos Municípios Brasileiros

As questões ambientais que afetam de maneira mais direta o quotidiano da maioria da população brasileira deverão ser resolvidas no âmbito de espaços urbanos e ao nivel do desenvolvimento local, e não em espaços naturais ou intocados. Dado o crescimento vertiginoso da urbanização no Brasil, que alcança quase 90% da população do país, as cidades mal administradas são as maiores fontes de problemas, mas também os principais espaços para soluções eficientes aos problemas ambientais brasileiros.

O crescimento econômico das cidades leva a necessidades crescentes de energia e combustível, mas políticas energéticas ineficientes e poluentes, inadequadas políticas de transporte e desperdício de energia lançam desnecessariamente grandes quantidades de gases tóxicos para a atmosfera. Com isso, aumenta a incidência de doenças respiratórias, responsáveis pela morbidade e mortalidade de milhares de crianças e pessoas idosas nas cidades brasileiras de médio e grande porte. Ao mesmo tempo se reduz a possibilidade de realização de atividades esportivas em áreas verdes, dada a má qualidade do ar, aumentando a probabilidade de incidência de doenças crônicas pelo sedentarismo e a falta de atividade física da população adulta.

A falta de infra-estrutura ambiental urbana básica na maior parte das cidades brasileiras canaliza uma torrente de dejetos e esgotos não tratados para os rios, lagos e zonas costeiras, prejudicando os ecossistemas e ameaçando a produtividade e segurança dos corpos d'água. Este processo, associado a falta de condições básicas de saneamento, água e esgôto nos domicilios mais pobres, aumenta a incidência de doenças transmissíveis por veiculação hídrica, a desnutrição, a mortalidade por diarréia e a insegurança em consumir alimentos frescos de origem vegetal.

Os governos locais não dispõe, em muitos casos, de recursos financeiros, físicos e humanos necessários para fazer frente a estes desafios. Dada a dificuldade em obter apoios e parcerias dos governos estaduais e federal, torna-se necessária a busca de soluções alternativas que possibilitem parcerias entre a população organizada, os governos municipais e as empresas que investem e que fazem parte da comunidade em cada localidade.

O papel da consciência social e a responsabilidade coroporativa

A consciência ambiental no Brasil emergiu na primeira metade da década de 1970, por meio de algumas poucas associações que realizavam campanhas de denúncia e conscientização pública de âmbito local, mas que obtiveram mínima repercussão na opinião pública. Até meados da década de 80 os movimentos ambientais brasileiros se baseavam em agências públicas federais (SEMA) e estatais (FEEMA, CETESB, etc.) e grupos de base que atuavam esparçamente na área de conservação ou defesa ambiental. Ainda sem muita expressão, reivindicavam apenas o controle da poluição urbana-rural e a preservação dos ecossistemas naturais. Não havia ainda a preocupação ambiental global.

Ainda que se tenham desenvolvido inúmeros instrumentos legais durante os anos setenta, oitenta e noventa, a questão ambiental continua a ser tratada de forma pouco efetiva, não só no âmbito governamental mas, principalmente, pelos atores sociais que muitas vêzes ignoram os direitos e deveres que lhes competem. A visão antropocêntrica do meio ambiente, ligada aos princípios do poluidor-pagador e usuário-pagador, é a que prevalece na legislação brasileira e de fato, poucos incentivos tem sido criados para que aumente a eficácia da proteção ambiental face à nova realidade de busca pelo desenvolvimento sustentável.

A mudança de paradigmas se faz necessária. E, é neste tocante que se poderiam incluir dois conceitos novos: o de responsabilidade social corporativa (RSC) e o de uma nova filosofia de incentivos como a compensação por serviços ambientais (CSA).

a) Responsabilidade Social Corporativa (RSC)
Dada as limitações dos Estados modernos em prover os meios necessários para o desenvolvimento econômico e social das populações, o comportamento de empresas nos últimos anos tem abandonado a visão de Milton Friedman de que o objetivo da empresa se esgota na maximização do lucro. Se por um lado o setor privado tem cada vez mais lugar de destaque na criação de riqueza; por outro lado, é bem sabido maiores poderes implicam também em maiores responsabilidades. Em função da capacidade criativa já existente, e dos recursos financeiros e humanos já disponíveis, as empresas têm uma responsabilidade social latente. Caberia aos municípios e a população organizada cobrar destas empresas para que elas passem a atuar de forma mais efetiva en transformar essa responsabilidade social em responsabilidade efetiva.

Ainda que seja recente, a ideia de RSC se incorpora ao cotidiano das empresas, da mesma forma que o surgimento de novas demandas e maior pressão por transparência nos negócios. Assim, as empresas se vêem forçadas a adotar uma postura socialmente mais responsável em suas ações.

A ideia de RSC não se confunde com a de filantropia. As razões por trás desse paradigma não interessam somente ao bem estar social, mas também envolvem melhor performance nos negócios e, conseqüentemente, podem até mesmo levar a uma maior lucratividade por parte das empresas, beneficiando deste forma a todos os parceiros: a população, que passa a desfrutar de cidades mais limpas e ambientalmente saudáveis, os governos locais que minimizam seus custos em consertar os estragos ambientais e em cuidar da saúde de sua população e as empresas, que passam a ser mais respeitadas em sua comunidade, com efeitos positivos em seus negócios. A busca de RSC tem como princípios básicos o pluralismo, o associativismo, a sustentabilidade e a transparencia.

O pluralismo se expressa pelo fato de que as empresas não devem satisfação somente aos seus accionistas, mas também aos seus empregados, a mídia, ao governo e aos consumidores. Uma empresa que atua de forma plural permite um diálogo mas participativo e logra maior legitimidade social. O associativismo leva uma empresa a manter relações éticas e responsáveis com os integrantes de sua cadeia produtiva.. Seu produto final e seu processo produtivo deve ser avaliado pelos seus parceiros segundo fatores ambientais e sociais, tomando em conta o conceito de interesse comum. A sustentabilidade leva uma empresa a comprometer-se com o conceito de desenvolvimento sustentável. Uma atitude responsável em relação ao ambiente e à sociedade, não só evita a escassez de recursos evita a prevenção de riscos futuros, como impactos ambientais ou processos judiciais. Por fim, a transparencia leva a empresa a comprometer-se em divulgar sua performance social e ambiental, os impactos de suas atividades e as medidas tomadas para prevenção ou compensação de acidentes.

b) A Compensação por serviços ambientais (CSA)

As CSA´s constituem uma importante ferramenta para a geração de meios e serviços que se fazem necessários a uma sadia qualidade de vida, pois permite e incentiva a utilização da natureza de forma sustentável. Mecanismos de compensações e prêmios pela conservação e restauração de serviços ambientais podem ser importantes instrumentos para a promoção da sustentabilidade social, ambiental e econômica, sobretudo de populações que habitam áreas estratégicas para a conservação da biodiversidade, a produção de água, a proteção de mananciais e florestas, a produção de alimentos sadios e até para o exercício de atividades recreativas, religiosas e turísticas.

O conceito de CSA abandona o tipo de política ambiental baseada no princípio do poluidor-pagador ou do usuário-pagador e passa para outro que se orienta pelo princípio do protetor-receptor, através da transferência de recursos ou benefícios da parte que se beneficia diretamente da natureza para a parte que auxilia na conservação do meio ambiente. São exemplos de tais benefícios: a transferência de recursos financeiros; o favorecimento na obtenção de crédito; a garantia de acesso a mercados e programas especiais; a isenção de taxas e impostos e a disponibilização de tecnologia e capacitação, entre outros.

Dessa forma, são gerados incentivos reais para que empresas e cidades procurem ser ambientalmente sustentáveis e permitam um mecanismo instituticional de captação de recursos nacionais e internacionais de empresas que tenham responsabilidade social e de fundos internacionais comprometidos com recursos ambientais.

Conclusões

A implementação de processos que combinem uma atuação eficiente de governos locais, empresas e comunidade na defesa do meio ambiente e de melhores condições de saúde ambiental não é uma tarefa fácil. Ela exige um trabalho inter-setorial, transprofissional e fortes parcerias institucionais na busca de idéias consensuais.

Um município que deseje atuar nesta área deveria partir para o estabelecimento de três fases na construção dessas idéias que passassem por três fases: a) a construção de alianças e a consensuação de valores; b) O desenho de um plano de ação; c) O financiamento e a implementação deste plano de ação.

A primeira fase envolve um papel ativo dos governos municipais na identificação de atores na comunidade e de empresas locais que estejam interessadas nos projetos setoriais. Consultas a bancos idéias, como as existentes no Bench Marking Ambiental Brasileiro[1], ou outras nacionais e estrangeiros seriam fundamentais para identificar experiências exitosas associadas as atividades empresariais desenvolvidas ou existentes em cada município. A identificação dos problemas existentes como áreas a preservar, problemas de saúde a evitar, valores e ações coletivas a promover, mecanismos de disseminação desses valores e promoção das ações coletivas entre a comunidade seriam exemplos de atividades constituientes dessa primeira fase.

A segunda fase envolve a criação de um comitê executivo responsável pelo desenho de um plano de ação que permita planejar as ações associadas para ao alcance de metas e resultados associados aos valores estabelecidos e os mecanismos para implementar e financiar estas ações. Não somente recursos locais, mas também recursos estaduais e nacionais, assim como internacionais, poderiam ser identificados e utilizados neste processo, dado que as ações propostas certamente estarão dentro do ideário de muitos dos milhares de fundos e fontes de recursos nacionais e internacionais existentes para estes propósitos.

A terceira fase é a mais importante, dado que não só permitirá implementar o Plano de Ação, mas principalmente torna-lo sustentável a longo prazo. Tal sustentabilidade se baseará num diálogo permanente e repactuação quando necessário das metas estabelecidas entre a comunidade, o governo e as empresas locais. É necessário que todos tenham a criatividade necessária para que não percam seu espaço no curto prazo, mas também muitas vêzes abdicar dos objetivos supérfluos de curto-prazo por objetivos de sustentabilidade e qualidade de vida a mais longo prazo, e que permitam beneficiar às futuras gerações.

Para que estes passos se concretem é necessária uma filosofia de contágio. Como uma febre ou uma doença infecciosa, toda a população da cidade deverá progressivamente estar contagiada pela idéia, fazer parte dela e participar com suas contribuições no desenho e na implementação. Por isso, realizar a idéia em pequenas cidades pode ser mais fácil pela proximidade dos contatos, pela simplicidade dos problemas e pela rapidez em alcançar os resultados. Estas poderão servir de modêlo para as médias e grandes cidades.

Governos de países desenvolvidos, organismos internacionais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), através de projetos como o PROCIDADES, programas do governo federal e empresas nacionais e estrangeiras operando no Brasil poderiam financiar a curto prazo estas iniciativas. Estas últimas contariam com incentivos fiscais e melhorariam sua imagem ao realizar estes projetos.

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[1] O Programa de Benchmarking Ambiental Brasileiro é uma das grandes iniciativas que promove a responsabilidade social corporativa e ao mesmo tempo gera um banco de idéias para estratégias inovadoras de compensação por serviços ambientais, incentivando que empresas e fundos nacionais e estrangeiros possam investir no processo de desenvolvimento sustentável do Brasil. Iniciado em 2003, já premiou mais de 50 empresas brasileiras que implementaram projetos interessantes nas áreas de responsabilidade social corporativa e compensações por incentivos ambientais. Acesso eletrônico aos casos e experiências desenvolvidas pelo programa podem ser acessados em http://www.benchmarkingbrasil.com.br/.