Ano 13, No. 93, Abril de 2019
André Medici
Introdução
Recentemente
o renomado médico e jornalista, Dr. Drauzio Varella, postou um video onde alerta
sobre o risco da não realização ou corte de informações do Censo Demográfico de
2020 para o setor saúde. Segundo o respeitado médico, não realizar ou cortar o
Censo Demográfico deixaria o país sem informações fundamentais para planejar
programas sociais e de saúde. Ele e muitos outros acadêmicos fazem parte de um
movimento que inclui desde funcionários do IBGE até professores universitários
e jornalistas que criticam a intenção do governo de cortar em até 25% o
orçamento do Censo Demográfico de 2020 por motivos associados aos ajustes nos
gastos públicos.
Respeito
muito a opinião do Dr. Drauzio Varella, dos profissionais do IBGE e de alguns
acadêmicos, em defesa das estatísticas oficiais do Brasil. Como ex-Diretor
Adjunto da extinta Diretoria de População do IBGE, nos anos 1980, sou um dos
primeiros a defender o sistema estatístico nacional e a necessidade de melhorar
a qualidade de nossas estatísticas e garantir os recursos necessários ao seu
financiamento.
Mas
gostaria de colocar a discussão de ajustes no censo demográfico brasileiro num
âmbito mais técnico e tirá-la momentaneamente da discussão sobre o corte do
orçamento federal, que tem sido a tônica dos últimos governos em relação ao
IBGE e, mais recentemente, em relação ao Censo Demográfico.
Os
sistemas estatísticos mundiais, em função da informatização, da melhoria dos registros
administrativos em órgãos essenciais da administração pública e da evolução das
técnicas e pesquisas contínuas por amostragem populacional, estão abandonando a
idéia de aumentar o questionário dos censos demográficos em função de seu alto
custo e do baixo benefício em ter questões que podem ser captadas mais
apropriadamente através de pesquisas de conjuntura, como a PNAD Contínua.
Como os censos
demográficos tratam de demografia, sua
importância está em coletar variáveis socio-demográficas e domiciliares de
carater estrutural, tais como a magnitude da população, sua distribuição
por idade, gênero, condição socioeconômica, renda, educação, alfabetização, escolaridade,
religião, etnia, localização do domicílio, tamanho e densidade de habitantes
por domicílio, acesso a água e saneamento básico, coleta de lixo, etc. São
dados que podem e devem ser pesquisados através dos censos demográficos,
devendo ter suas séries históricas preservadas em qualquer revisão de
questionário. Dados estruturais como esses não variam sensivelmente no curto
prazo e são os chamados quesitos pétreos
da estrutura populacional e domiciliar. Eles são essenciais no desenho e
cálculo de futuras amostras para pesquisas domiciliares representativas do
universo populacional e, portanto, devem ser pesquisados ao menor nível de
desagregação territorial possível, sendo o questionário da amostra do censo
demográfico o ideal para tais fins.
Mas a
realidade é dinâmica e uma pesquisa realizada de dez em dez anos não é
suficiente (e nem é o método mais adequado) para acompanhar a totalidade da
dinâmica social da população, cuja análise requer o estudo de variáveis que se alteram no curto
prazo, relacionadas ao mercado de trabalho, emprego e desemprego,
características de consumo da população, e muitas outras. Perguntar no censo,
por exemplo, quantas pessoas tem telefone celular ou acesso a internet, ou como
as pessoas se deslocam nas áreas urbanas, não nos ajudará muito após dois anos
de sua realização. Uma pesquisa amostral como a PNAD Contínua, que fornece
informações mensais, trimestrais, anuais ou periódicas para temas especiais,
tem muito mais a dizer sobre estas e muitas outras variáveis do que o censo
demográfico, onde determinadas informações não-estruturais envelhecem no ano
seguinte.
Muitos
vão argumentar que a PNAD Contínua não chega aos pequenos municípios ou ao
nível intra-municipal, mas para isso, os registros administrativos da RAIS,
CAGED, etc., podem mostrar a evolução do emprego e desemprego do setor formal a
estes níveis de menor desagregação. A evolução das técnicas de amostragem
permite que pesquisas domiciliares possam ter desenhos amostrais mais
eficientes e, mesmo com amostras menores que o questionário da amostra do censo,
a própria PNAD Continua poderá se dedicar a fornecer dados para conjuntos de
municípios fora das capitais e regiões metropolitanas quando necessário,
através do aperfeiçoamento do seu desenho e de seus métodos amostrais.
Portanto
o Censo Demográfico é importante para delimitar variáveis demográficas e
socioeconômicas estruturais e que podem ser projetadas anualmente, ao longo da
década (ou de cinco em cinco anos), a partir de tendências passíveis de serem
previstas por modelos demográficos que utilizem seus dados para gerar
informações precisas nos espaços local e regional. As informações do Censo
Demográfico (e projeções a partir delas) são relevantes para distribuir os recursos do
fundo de participação dos estados e municípios, calcular o número de crianças a
serem vacinadas, alfabetizadas e em idade escolar nos municípios, calcular as
necessidades loco-regionais de oferta de serviços de saúde pública e calcular o
número de eleitores para eleger deputados ou vereadores. Dados estruturais como esses são elementos
essenciais para o planejamento diário dos estados e municípios.
No
entanto, o Censo Demográfico no Brasil, nos últimos anos, ficou refém de um
certo atraso metodológico, ao incorporar, por pressões de corporações e
movimentos sociais, quesitos que seriam melhor investigados em pesquisas de
menor periodicidade por amostragem. Não resta dúvida que consultar a sociedade
sobre o que incluir no censo é um exercício de cidadania, o qual tem sido
realizado pelo IBGE nos últimos anos, mas que deve se pautar também por
critérios de custo-benefício e custo-efetividade. Qual são os custos e os
benefícios, ao longo de uma década, de incluir um quesito adicional no Censo
Demográfico que poderia ser estimado através de uma PNAD Contínua ou de uma nova
pesquisa amostral? Esta é a primeira pergunta que se deve fazer antes de
aumentar o questionário do Censo. Ademais, é internacionalmente reconhecido que
um quesito a mais aumenta o cansaço do entrevistado, o custo das entrevistas e,
principalmente, reduz a qualidade das respostas (pela extenção das horas trabalhadas
pelos recenseadores, tempo de processamento, etc.), podendo gerar informações
que ao serem divulgadas já estejam defasadas e tenham sua credibilidade
questionada, além de gerar disperdício dos recursos públicos.
O que acontece em outros Censos Demográficos?
Em
recente entrevista à jornalista Miriam Leitão, o ex-presidente do IBGE Simon
Schwartzman deixou claro que há uma rediscussão do censo demográfico em todo
mundo. Para exemplificar, o Censo Demográfico Norte-Americano de 1990 tinha
sete quesitos sobre população e sete quesitos sobre domicílios, no questionário
da não-amostra, e 23 quesitos no questionário da amostra. Já o Censo
Demográfico de 2000 tinha oito quesitos no questionário geral e 45 no questionário da amostra, aplicado em um
de cada seis domicílios. Este aumento do número de quesitos do Censo Norte-Americano
e a necessidade de informações mais conjunturais que variam a curto prazo, levou o Bureau of Census a
realizar uma verdadeira reengenharia
em seu processo de recenseamento populacional.
Assim, o
Censo Demográfico Norte-Americano de 2010 passou a ter um único questionário,
para toda a população, com 10 quesitos. O questionário da não-amostra foi
extinto e seus quesitos passaram a ser investigados através de uma pesquisa
anual por amostragem contínua chamada American
Community Survey. Esta pesquisa levanta anualmente informações de todas as
comunidades do país, através de um painél rotativo e permite gerar dados
representativos para comunidades com mais de 20 mil habitantes (o que significa
1800 counties e 900 distritos em cidades de médio e grande porte). Para áreas
com menos de 20 mil habitantes, estimativas a cada cinco anos vêm sendo
realizadas.
No caso
do Canadá, onde o censo demográfico é realizado com menor periodicidade (de
cinco em cinco anos, embora o útimo tenha sido em 2016 e o próximo sairá a
campo em 2021, com teste previsto para maio de 2019), o questionário da não-amostra do censo de 2016 tinha
apenas 10 quesitos e o da amostra (que no caso é maior do que a brasileira: 25%
ao invés de 10%) tinha 53 quesitos. Apesar de ser um país bem mais rico do que
o Brasil, o Canadá tem problemas similares de vazios populacionais ao Norte que
exigem cuidados especiais na coleta de dados.
Na França,
o último censo geral de população foi o de 1999. Desde então foram realizados
dois censos por amostragem, um em 2004 e outro em 2008. O Censo de 2008 tinha
30 quesitos no questionário individual e 13 quesitos no questionário
domiciliar. A partir de 2008 o país deixou de realizar censos demográficos no
sentido tradicional. Dados populacionais, socioeconômicos e domiciliares são
coletados a partir de pesquisas anuais e, a cada cinco anos, a média dos
resultados dos últimos cinco anos é validada como base para as estatísticas
socioeconômicas da população. No entanto, a França tem registros administrativos
e bases de dados institucionais muito mais avançadas, que fazem com que a
realização de censos demográficos, no sentido tradicional, não seja mais
necessária. Outros países, como a Alemanha eliminaram o censo demográfico e contam,
para suas estatísticas populacionais e socioeconômicas, com registros
administrativos e pesquisas domiciliares. Na Inglaterra, o último Censo
Demográfico se realizará em 2021 e a Espanha, desde o início do presente século,
vem reduzindo o número de perguntas de seus censos demográficos e passando a
utlizar mais seus registros administrativos.
E o Brasil?
Comparando
o Brasil com os países citados, o questionário da não-amostra do Censo
Demográfico do IBGE em 2010 tinha 37 quesitos e o da amostra 112 quesitos,
valores muito superiores aos encontrados nos demais censos internacionais mencionados. O próprio IBGE
já tem apresentado propostas para cortar o número de quesitos do Censo Demográfico
de 2020, mas essa é uma questão técnica
que deve partir de uma discussão bastante criteriosa para garantir e preservar
a essência do Censo Cemográfico, ou seja, o dimensionamento populacional e o
perfil da população brasileira. Para tanto, o IBGE organizou um grupo de
trabalho e convidou o economista Ricardo Paes e Barros – um experiente
profissional em análise de dados e pesquisas domiciliares – para presidi-lo,
com todas as condições de trabalho atendidas, com ampla participação do
qualificado corpo técnico do IBGE e com a total autonomia institucional baseada
nos princípios fundamentais das estatísticas oficiais (ONU) visando alcançar
uma revisão do questionário sem perda de consistência e qualidade.
Voltando à
questão do corte de 25% do orçamento do Censo Demográfico, se pode dizer que não
apenas a redução do número de quesitos poderá gerar economia. Muitos países (como
o Canadá, por exemplo) realizam censos enviando os questionários para o chefe de
domicílio por internet, e dando assistência por telefone, quando necessário, ao
preenchimento dos dados requisitados (o Ministério da Saúde faz uma pesquisa de
vigilância epidemiológica por telefone – a Vigitel - e os resultados melhoram a cada dia).
Formas de organização dos traçados para visitar os domicílios também podem
economizar muitos recursos e até mesmo processos administrativos e de coleta
dos dados através de meios eletrônicos. Portanto, existe muito a se pensar em como
viabilizar o corte dos recursos no orçamento do Censo sem prejudicar sua
essencialidade, o que é necessário considerando a excepcionalidade da crise
fiscal que o Brasil vive desde 2014.
Mas,
começamos esse artigo mencionando o vídeo publicado pelo Dr. Drauzio Varella e devemos voltar a ele. O grande apreço que o Dr. Varella tem pela relevância e
qualidade do Censo Demográfico, do meu ponto de vista, será preservado. Especialmente porque os temas estruturais de população (quantas crianças,
mulheres, idosos e até deficientes físicos vivem em cada bairro, assim
como domicílios precários, coleta de lixo, etc.) e que são a base para o planejamento das
ações de saúde ao nível local não serão cortados do questionário por serem a razão de ser de um Censo Demográfico.
Mas o Dr.
Varella tem um ponto importante que poderia ser expandido, que é a necessidade
de melhorar os registros administrativos do setor saúde do Brasil,
especialmente aqueles produzidos pelo DATASUS, que não tem garantido informação
suficiente para um adequado planejamento do SUS. Faltam informações sobre os custos
dos tratamentos e sobre a produção de serviços de saúde cruzados com as
características socioeconômicas dos pacientes, bem como dados sobre a eficácia
dos tratamentos, que não devem, por motivos técnicos, serem incorporados em qualquer
Censo Demográfico. Quantas pessoas o SUS tem curado? Quantas pessoas morrem por
erros médicos ou por falta de condições adequadas dos estabelecimentos de saúde?
Qual a qualidade da saúde que tem sido entregue à população brasileira e o que
poderia ser feito para melhorar sua eficiencia: temas que vão muito além da discussão monotônica de
que falta financiamento para o SUS? Se o Dr. Varella se refere a esses pontos
como necessidades de informação para o setor saúde, aí sim, estou de pleno
acordo com ele. Entretanto, a incorporação destes temas deve ser feita no aprimoramento dos registros administrativos e não numa operação censitária,
ainda mais premida pela crise fiscal do Estado brasileiro.
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