Ano 14, Número 109, agosto de 2020
Os efeitos da
Covid-19 afetaram muitas vidas em todas as suas dimensões, mas certamente uma
das dimensões onde o impacto parece ter sido maior foi a da educação. O ano de
2020 parece ter sido perdido em termos de progressos educacionais. Será verdade?
Pode-se dizer que nem tanto ao mar e nem tanto à terra. É o que revela a
entrevista de Cláudio Moura Castro.
Suas atividades
como professor incluíram várias universidades como a PUC-Rio de Janeiro,
Universidade de Chicago, Universidade de Brasilia, Univeristé de Geneve e
Université de la Borgnone. No Brasil, liderou várias instituições como o Centro
Nacional de Recursos Humanos (CNRH) do IPEA e foi Diretor da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) do Ministério Educação.
Passou um longo
tempo de sua vida no exterior, inicialmente como Chefe da Unidade de Políticas
de Formação da Organização Internacional do Trabalho em Genebra (Suiça),
mudando-se depois para Washington, onde foi economista da educação do Banco
Mundial e posteriormente, Assessor-Chefe de Educação no Banco Interamericano de
Desenvolvimento.
Ao retornar para
o Brasil, na primeira década do milênio, Claudio foi assessor de grupos
privados de educação superior, como o Pitágoras e Positivo e atualmente atua na
consultoria Eduqualis e também como colunista da Revista Veja e do jornal
Estado de São Paulo. Tem cerca de 50 livros e 300 artigos acadêmicos publicados
em temas como educação, políticas sociais, saúde, ciência e tecnologia. Tem
também interesse e publicações em áreas como turismo-aventura, arquitetura,
ofícios manuais, marcenaria, mecânica, e expedições de aventura. Um livro que
congrega parte dessas aventuras e é uma leitura imperdível é “Meio Século no
Limiar do Perigo”, publicado em 2005 pela Editora Record.
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Monitor de
Saúde (MS) - Uma das principais estratégias
de combate a Pandemia do Covid-19 foi o distanciamento social, que inclui um
conjunto de várias medidas, dentre as quais a primeira tomada na maioria dos
países (ainda no início de março) foi o cancelamento das aulas presenciais em
quase todos os países desenvolvidos, mas também nos países em desenvolvimento
afetados pela pandemia. De acordo com dados da UNICEF para fins de julho de
2020, 1,7 bilhões de estudantes estavam temporariamente sem aulas, afetando 98%
da população estudantil no mundo. Quais estratégias os países estão utilizando
para evitar que haja uma perda, não só no ano letivo, mas principalmente, nos
níveis de aprendizado dos estudantes?
Cláudio de
Moura Castro (CMC) - Para início de conversa,
ensino a distância (EAD) não é novidade. Em 1728 foi anunciado um curso pela
Gazeta de Boston, oferecendo material para ensino e tutoria por
correspondência. Em 1829, cria-se na Suécia, o Instituto Líber Hermondes, que
ofereceu cursos à distância para mais de 150.000 pessoas. Essa modalidade dá um
grande salto com a invenção do selo de correio, em meados do século XIX.
Portanto, começando com o ensino por correspondência, o caminho do EAD vem
sendo trilhado por mais de dois séculos.
No Brasil, em
1904, o Jornal do Brasil registra um anúncio oferecendo profissionalização por
correspondência para datilógrafos. No ano de 1939, surgiu em São Paulo o
Instituto Monitor, seguido do Instituto Universal Brasileiro. Ambos ofereciam
cursos profissionalizantes. Estima-se em vários milhões de brasileiros
aprenderam assim a consertar rádios.
Em meados dos
anos 50, aprendi também reparação de rádios, cursando o Monitor. E aprendi
melhor por correspondência os assuntos equivalentes ao ensinado no nível médio.
Os avanços
digitais tornaram as comunicações no ensino a distância amplamente mais rápidas
e eficientes do que pelo correio. Mas a ideia é a mesma. Nada de novo. De
resto, no ensino superior, antes da pandemia, a matrícula no EAD brasileiro já
se aproximava da presencial.
O que há de novo
e nem tão bem-vindo é o uso do EAD no ensino básico. Está longe de ser uma
solução satisfatória, pois a presença física é essencial nesse nível. Porém, é
a distância ou nada.
Por ser uma
solução antes inexistente para este alunado, a transição sofreu com o inevitável
atropelo e com a inexperiência de operar nesse nível. Não obstante, foi
extraordinário o esforço para vencer essa barreira inicial. Considerando o
formidável desafio, não se pode dizer que a escola fracassou.
MS - Os dados mostram que muitos países, especialmente os países mais
avançados, têm utilizado tecnologias digitais, como a tele-educação, para
manter a regularidade das classes nas escolas. Estas estratégias são
eficientes, no sentido de cobrir a totalidade dos conteúdos transmitidos em aulas
presenciais? Há alguma avaliação de que a qualidade da educação não está caindo
pela troca de experiências presenciais por experiências digitais?
CMC - Mesmo países como o Brasil usam a Internet, Blackboard,
YouTube, Zoom e múltiplas outras ferramentas. Não há nada de essencial que não
esteja sendo usado dentre nós. Inexiste uma diferença significativa no que se
adota nos nossos melhores sistemas de ensino, em comparação com, digamos, os
Estados Unidos. O grande fosso é entre categorias de escolas. As melhores
privadas embarcaram rapidamente e incorporaram todo o repertório tecnológico.
Mas daí, é morro abaixo. A disponibilidade de computadores e banda larga cai,
quanto mais pobre a escola – e inevitavelmente, os alunos. Dependendo de como
se define 'disponibilidade de tecnologia', entre metade e 90% dos alunos têm
alguma coisa que lhe permite o acesso às redes. Quando nada, um smartphone.
Mas há uma diferença enorme entre os extremos. E note-se, uma família com cinco
alunos, mesmo de classe média, não tem cinco computadores em casa. No limite
inferior, algumas redes distribuem e recolhem materiais escritos nas casas dos
alunos mais desprovidos. Está longíssimo do desejável, mas é melhor do que
nada.
Diante desse
quadro tão variado, os resultados não são menos díspares. Milhões de alunos
perdem pouco ao frequentar o novo sistema. E há quem ganhe, pois as discussões
digitais são mais eficazes para certos perfis psicológicos. Na outra ponta da
distribuição, há muitos alunos a quem nada é oferecido ou que, desencorajados
com a má experiência, abandonam o curso.
MS - Ainda que haja o uso de estratégias digitais para substituir as
aulas presenciais, nem sempre isso é possível dado que nem todos os alunos tem
disponibilidade de tecnologia (computadores e internet) para aulas digitais.
Nas economias avançadas, as escolas buscam levar aos estudantes mais carentes
os computadores e a conexão para evitar estas perdas. Mas isto não ocorre nos
países em desenvolvimento e de renda baixa. Qual o impacto que isto poderá trazer
no aumento da inequidade de oportunidades futuras, para usar a linguagem de
Amartya Sen, dado que a desigualdade educacional está na raiz das futuras
inequidades sociais e na dinâmica do desenvolvimento econômico? É possível ter
estratégias alternativas para evitar estas nefastas consequências?
CMC - Há respostas divergentes para duas questões paralelas. Na primeira,
consideremos que a educação sempre serviu para arrumar as pessoas dentro de uma
hierarquia econômica – que a curto prazo a pandemia não afeta. Quem tem mais e
melhor educação, já começa em um galho mais alto. E vice-versa. Como todos
estão sendo prejudicados, pode-se imaginar que esta ordenação não vai mudar
muito. Na segunda questão, todos sofrem por receber uma educação improvisada.
Porém, é pior para os mais pobres. Esta perda subtrai do já limitado capital
humano que tem nossa sociedade. É um grande prejuízo, mas é de longo prazo e
não temos como medi-lo de forma confiável.
MS - Como a Covid-19 tem afetado o desempenho da educação pública no
Brasil? Por exemplo, na área de educação básica, os municípios estão dando boas
respostas para evitar perdas de aulas e conteúdos educacionais na escola
pública? Como os Estados estão enfrentando isso na educação secundária. Como o
governo federal enfrenta a questão na educação superior?
CMC - Uma coisa é certa: o COVID-19 precipitou uma revolução
tecnológica no ensino formal. Quem se persignava diante de um computador ou
seus aplicativos, de um dia para o outro, passou a usá-los em tempo integral.
Esse talvez seja o lado positivo mais espetacular da crise, uma vez que as
tecnologias digitais podem trazer grandes benefícios, se bem usadas. Difícil
imaginar que, ao fim da crise, tudo será abandonado.
Todavia, a
qualidade do que acontece segue linhas quase previsíveis. Os estados sulinos,
de São Paulo para baixo, reagiram rapidamente e estão se saindo tão bem quanto
se poderia esperar. Algumas secretarias estaduais se organizaram seriamente
para apoiar suas escolas. Filantropias como a Leman Foundation e o Instituto
Unibanco montaram programas para ajudar as secretarias.
No resto do país
a situação é muito variável. No Fundamental, os municípios mais estruturados e
com educação melhor parecem mostrar dinamismo e capacidade de reação. Em outros, já precários no seu ensino
tradicional, não se pode esperar muito.
O MEC,
mergulhado no maremoto das incessantes mudanças de equipe, pouco pôde ou soube
oferecer para ajudar estados e municípios. O mais óbvio seria financiar
tecnologia para escolas e alunos mais pobres. Mas sua ação tem sido tíbia. Com
o novo Ministro, parece que vai mover-se nesta direção.
MS - Há no Brasil alguma diferença entre as estratégias, recursos e
processos de enfrentamento da crise do Covid-19 na educação entre os setores
público e privado de educação?
CMC - Monumental! O sistema privado, seja no Básico ou no Superior, em
semanas ou dias se baldeou para a EAD. Claro, instituições alertas como o INSPER
e FIA-USP andaram rápido e bem. Outras menos, mas não consta que alguma ficou
paralisada, em qualquer nível.
Já no lado
público, há duas situações fundamentalmente distintas. Praguejando, lamentando
e sofrendo, o ensino básico foi arrastado para o EAD, algumas redes mais rapidamente
do que outras. Não estavam preparadas e não tinham os meios financeiros e
intelectuais para a transição. Mas a fizeram.
Em contraste,
quase todas as universidades federais, simplesmente, empacaram. Segundo sua
explicação, como nem todos os alunos têm acesso pleno à tecnologia, passar os
cursos para EAD seria prejudicá-los, aumentando a desigualdade. Mas note-se
que, segundo a Fundação Leman, quase todos os alunos do ensino médio têm, pelo
menos, um smartphone. É de se
imaginar que, no ensino superior, quase todos tenham também computadores. E,
não nos esqueçamos, o correio funciona. Seja como for, pela lógica das
universidades públicas, é preferível prejudicar a todos do que apenas a uma
pequena minoria. A se registrar, algo como meia dúzia das federais embarcaram
no EAD (e vale notar, USP e Unicamp também).
MS - Quais são as diferentes modalidades de enfrentamento da crise da
educação em escolas e universidades públicas e privadas?
CMC - Escolas tecnologicamente mais bem equipadas usam aplicativos como
o Zoom para continuar com as aulas, seguindo o mesmo modelo do presencial. É a
fórmula que menos terremotos provoca. E funciona. No nível superior, o EAD já é
uma realidade consolidada em muitas instituições. Nessas escolas, seja com
materiais escritos, seja com clipes televisivos, a única mudança é a migração
de todos os alunos para a modalidade a distância. Naturalmente, para quem já
era fraco ou não tinha EAD, as dificuldades foram maiores. Mas não nos
esqueçamos, neste nível, a maturidade dos alunos e seus meios econômicos já são
bem superiores. E como mostram os resultados do ENADE - pré-pandemia - entre
distância e presencial não há diferenças significativas em favor de uma ou
outra alternativa.
No nível Básico,
a situação é muito mais incerta. Para começar, embora inevitável, não é uma boa
solução suprimir a convivência com pares e professores.
A experiência
norte-americana mostrou o enorme potencial de usar projetos, mais do que aulas
expositivas regulares. Mas não tenho informações sobre esta prática no Brasil.
Um problema novo
é que o aluno do ensino básico requer muito mais apoio pessoal. Necessita
sentir-se parte de um grupo social e pode precisar atendimento personalizado
para vencer as barreiras que vão aparecendo. Mas não creio que tenhamos
informações adequadas sobre o desempenho das escolas nesse tópico.
MS - Um dos problemas associados a pandemia do Covid-19 é a sua
instabilidade dada pelo risco de retornos ao crescimento de contaminados e
novas ondas pandêmicas. Vários países estão passando por esse processo
recentemente, como a Nova Zelândia, levando a ameaças de fechar novamente as
escolas. Mesmo que as escolas não fechem, a insegurança dos pais deixa de levar
as crianças às escolas. Nesse processo de incertezas, é possível fazer com que
o modelo de educação digital passe a ser uma regra permanente e não uma exceção
associada a crise?
CMC - Qualquer solução única para todos seria um desastre. Dado o maior
grau de maturidade dos alunos do ensino superior há indicações de que o híbrido
seja amplamente melhor do que o presencial tradicional. Ou seja, em casa mais
leitura e mais escrita. E menos tempo ouvindo preleções. Fica o presencial para
discussão e socialização. Mas quem olha para o mapa do Brasil logo vê que as
distâncias impedem muitos de viver próximo a um curso. Portanto, o EAD puro é
inevitável.
Nos primeiros
doze anos de ensino, não pode estar em cogitação manter o ensino a distância,
uma vez superados os riscos da pandemia. Além do que já foi mencionado, esse
regime exige mais disciplina e responsabilidade pessoal, o que é uma capacidade
mais precariamente distribuída entre os mais jovens e, em particular, entre os
mais pobres.
Porém, à margem
das rotinas presenciais, a nova tradição de reuniões a distância tem boas
razões para ser mantida. Por exemplo, não seria mais fácil reunir-se com os
pais por esta forma? Igualmente, muitos usos da tecnologia, impostos pela
distância, podem ser mantidos no futuro.
Quando voltarão
as aulas presenciais? O pior cenário seriam voltar todas no mesmo dia, pois em
cada lugar a pandemia tem a sua dinâmica própria. Seja como for, lamento
confessar que não saberia dizer quando deve começar o lento processo de volta
às aulas. De fato, é particularmente ambígua, mesmo a literatura técnica mais
séria sobre esse assunto.
MS - No caso da educação superior, o modelo digital de @learning tem sido
utilizado por muitas universidades e cursos digitais, especialmente ao nível de
pós graduação, antes vistos com maus olhos, passam agora a ser encarados
seriamente e muitas universidades de grande porte, como as Ivy-Leagues
norte-americanas (Harvard, Stanford, Berkeley) estão utilizando este modelo
como principal em muitas áreas. É possível que esse modelo passe a acontecer
com maior frequência em outros níveis educacionais?
CMC - Entre a realidade e a imagem há uma distância. Ou como já dito, o
fato vale menos do que a versão. Quando Sir Walton of Perry recebeu a
missão de criar a Open University, logo procurou Oxford e Cambridge. Mas
foi rechaçado sumariamente. Hoje já se viu que um bom EAD deixa pouco a desejar
diante do presencial. E o híbrido, além de mais barato, mostra rigorosamente o
mesmo resultado.
Com quinze anos
de idade, morando no interior das Minas Gerais, ao fazer o curso do Monitor,
achava que estava sendo muito bem servido. Era melhor e mais prático do que a
escola local. Paradoxalmente, o curso por correspondência tinha mais atividades
concretas e com as mãos do que a escola. Mais de meio século depois, pesquisas
rigorosas mostram que minha percepção juvenil não estava equivocada.
Na Rússia, na
década de 30, uma boa proporção dos estudantes de Engenharia estudava por
correspondência. Nos fins de semana, iam praticar nos laboratórios e oficinas
da escola.
Mas números nem
sempre enfrentam com êxito as mitologias arraigadas. Persistiu um ceticismo
arrogante por décadas, desqualificando o ensino a distância. A pandemia veio
mostrar a infantilidade de tais preconceitos.
Façamos um
exercício intelectual singelo. Tomemos dois cursos fracos, um presencial e
outro EAD. No primeiro, os alunos passam vinte horas semanais sentados diante
de um professor que fala sem parar. Ou seja, a interação é mínima. Apenas para
ouvi-lo, como é o caso, pouca diferença faria se estivesse em Tóquio, com o
Zoom. Mas como aulas expositivas de 50 minutos não funcionam no EAD, para
cumprir a carga horária, os cursos são obrigados a mandar os alunos lerem,
escreverem e resolverem problemas. Ora, essa segunda solução é mais próxima do
'ensino ativo', amplamente mais eficaz que o 'passivo', que consiste em ouvir
preleções. Ou seja, pela natureza do processo de ensino, o EAD é obrigado a
usar uma pedagogia superior.
MS - Quais as tendências que podem ser estabelecidas para a educação no
mundo pós-pandêmico dos próximos anos?
CMC - Obviamente, espera-se mais uso de modalidades a distância. Podem
ser cursos inteiros, como já ocorre na graduação e na pós-graduação lato
sensu. Ou então, reduzindo a carga presencial de outros. O que é para ler e
escrever, será feito em casa. Para os laboratórios e discussões, se preservará
o espaço físico da faculdade.
A pandemia
reforça a tendência recente de usar mais metodologias ativas na sala de aula.
Quebrado o encanto da velha aula expositiva, tudo fica mais fácil. E ao se
experimentar novas fórmulas, facilita-se o diálogo, em vez do tradicional
monólogo.
Rompido o tabu
das tecnologias digitais, entra em cena o LMS, como Blackboard e Moodle.
E mais vídeos, prontos ou feitos pelo professor. Mais aulas invertidas –
apoiadas no YouTube. Mais discussões e chats a distância. Mais celebridades
acadêmicas falando para turmas imensas.
Haverá mais
pragmatismo e menos superstição, diante das escolhas de como conduzir um curso
e suas tecnologias.
E como
consequência, haverá também mais poder para aqueles encarregados de lidar com
as tecnologias.
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